Tiros da Margiela e silêncio da Fendi são opostos que se atraem
Alta-costura de Galliano faz barulho com linguagem audiovisual em conto de terror, enquanto Kim Jones homenageia Japão à moda europeia.
“Bang bang, ele me derrubou, bang bang, eu bati no chão, bang bang, aquele som horrível, bang bang, meu amor atirou em mim.” “As estações vieram e mudaram o tempo.” “Lembra quando costumávamos brincar?”
Os versos de Nancy Sinatra em “Bang Bang”, trilha do filme Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino, não embalaram a Maison Margiela Artisanal nesta semana de alta-costura em Paris, mas estavam lá, implícitos na peça de teatro montada por John Galliano para que ele contasse seu conto de terror vestível.
Em vez da passarela, foi o tablado do Théâtre National de Chaillot, em Paris, que serviu de palco para a companhia britânica Imitating the Dog encenar o espetáculo de alta-costura “Cinema Inferno”, obra que funde as linguagens audiovisual e teatral para emoldurar looks de apelo performático, verve desse designer desde os tempos em que dirigia o estilo da Christian Dior.
Galliano hoje é um sujeito raro em um sistema cada vez mais preocupado em oferecer soluções práticas para o cotidiano, porque suas roupas conversam com os sonhos – desta vez, algo mais próximo de um pesadelo – e não guardam obrigações com o sentido de realidade.
Por isso, a performance, iniciada com tiros disparados por um bando de fantasmas trajados com visual de faroeste, foi idealizada fora da caixa de aparente funcionalidade que deu a tônica de grande parte desta temporada de alta costura de inverno 2023. Vale a pena ver.
Maison Margiela Artisanal 2022 Collection
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A história de amor e terror escrita pelo estilista foi contada como um road movie, no qual um casal apaixonado viaja por estradas desertificadas enquanto relembra fatos da relação, com direito a brigas trágicas com os pais da garota e uma relação conflituosa com a Igreja. Entre o fanatismo e o sonho, o conto chega ao cume quando os protagonistas entram no tal cinema infernal e outros personagens invadem as cenas para oferecer ao público visões de glamour sanguinolento.
Maison Margiela Artisanal.Foto: Divulgação
O brilho foi reservado aos trajes masculinos, muitos deles puídos e com a areia brilhante, algo que a grife já apresentou no passado. A alfaiataria de festa foi explorada em toda a desconstrução possível, com decotes, remendos e um certo pendor para o figurino. E tudo bem, a ideia era essa.
Maison Margiela Artisanal.Foto: Divulgação
Às mulheres, por sua vez, coube a mistura exuberante de técnica aplicada nos vestidos bufantes de tule, em tons calmos, e as peças lânguidas para um baile de horrores. É claro que as referências cinematográficas dialogam com esses tempos de violência gratuita, como um filme de Michael Haneke, mas Galliano envolve o terror em uma capa de beleza que, se para uns soa como mau gosto ante a barbárie da vida real, provoca no espectador um misto de sentimentos.
E é a respeito dessa confusão de ideias que trata sua obra audiovisual, o terror que ele já havia explorado no fashion film da última coleção desfilada digitalmente, mas que nesta temporada conseguiu ser materializada ao vivo. Tal qual a música, o estilista parece questionar a indústria, “lembra quando costumávamos brincar?”. Alguns tiros, certamente, romperam almas desencantadas com tanta lógica exposta nas passarelas dos últimos anos.
Maison Margiela Artisanal.Foto: Divulgação
Não que ela seja um problema, é verdade, porque nem só de sonhos vive a alta-costura, tampouco o prêt-à-porter de luxo, o varejo de repetição ou ultra-fast fashion. Kim Jones parece ter olhado para essas impressões quando decidiu levar à passarela da Fendi, na manhã desta quinta-feira (7.07), um compilado de moda europeia com referências ao Japão.
Fendi.Foto: Getty Images
Lembremos que o país asiático detém, ao lado da China, algumas das carteiras mais preparadas para consumir a alta-costura que Paris exaltou nesta semana. Jones colocou de lado as inspirações estritamente italianas da maison para fazer uma espécie de homenagem a Kyoto, cidade japonesa que é um dos centros culturais do país.
De lá, ele tirou padrões de quimonos do século 18, dos quais transfere as estampas e constrói um patchwork de seda aplicado em roupas que mesclam a alfaiataria com a estrutura dos trajes tradicionais.
Telas de cristais também forraram parte dos looks, que denotam a inspiração no art déco dos anos 1920, mais uma vez uma década utilizada nesta temporada de alta-costura. Outra referência ao Japão foi a estampa de folhagens retirada de um padrão de 1700, replicado em looks suntuosos de gala que tentam fugir da obviedade dos comprimentos longos.
Quase como uma oposição ao ruído projetado magistralmente por Galliano, ele preferiu jogar com um teor algo minimalista, cujas linhas funcionais encontram eco na atual costura japonesa, fundindo as referências de tal forma que suas roupas, mesmo quando rebuscadas com vários bordados e texturas de brilho, transmitem silêncio.
Fendi.Foto: Getty Images
Em uma semana em que se viu o esforço das marcas, e da própria federação de moda local, em deixar em panos limpos sobre do que é feita a alta-costura, tanto a Maison Margiela quanto a Fendi soaram como ímãs, as faces positiva e negativa dessa indústria, que no fim se atraem. Caberá ao leitor, e, obviamente, ao consumidor, dar o veredicto e julgar o peso de cada uma delas em seus armários.
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