Após escândalo, Balenciaga retorna à semana de moda de Paris sem excessos e focada no design de roupas excepcionais
Com as mídias sociais colocadas para escanteio, o diretor de criação Demna retorna às origens próprias e da marca com coleção sobre construção e silhuetas.
“Eu tinha 6 anos quando meus pais me deixaram fazer uma calça com um vizinho alfaiate. Desenhei, escolhi o tecido e fiz duas provas com ele para acertar os ajustes. Esse foi o começo do meu caso de amor com as roupas: o que definiu minha relação com elas e me fez querer ser estilista.”
As palavras são de Demna, atual diretor de criação da Balenciaga, que há tempos não usa mais o sobrenome Gvasalia. O texto em primeira pessoa estava impresso em um cartão deixado sobre os assentos do desfile de inverno 2023 da marca – o primeiro após o escândalo das campanhas com imagens de crianças em contextos sexuais.
Foi uma baita crise, e gerenciada porcamente. Demorou para a empresa e seus comandantes (o CEO Cédric Charbit e Demna) se pronunciarem. Primeiro, tentaram jogar a bomba no colo de colaboradores externos. Quando perceberam que pegou mal, voltaram atrás, desistiram dos processos judiciais, mas continuaram relutantes em reconhecer o erro.
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Tava ruim, tava bom, mas parece que pirou, sabe? Quer dizer, bom mesmo só na cabeça de quem conduziu o drama. A internet caiu matando, com direito a teorias conspiratórias envolvendo rituais satânicos e comunistas comendo criancinhas.
Foi só então que veio o pedido de desculpas junto ao anúncio de medidas internas para evitar erros similares no futuro e de apoio a algumas instituições dedicadas à proteção e garantia dos direitos da criança e ao combate ao abuso infantil.
O baque foi intenso. As menções à grife despencaram nas plataformas de busca. Sempre entre as top 3 etiquetas mais desejadas da plataforma de e-commerce e pesquisa de moda Lyst, a Balenciaga caiu para a 11ª posição no último trimestre de 2022. As vendas de Natal, um dos períodos mais importantes no varejo, foram péssimas. Segundo analistas de mercado, as piores na história da marca.
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Desde então, a Balenciaga ficou muda nas redes sociais. O feed no Instagram tinha um único post, aquele da desculpa. Nenhum lançamento foi comunicado, nenhum depoimento divulgado, nada. Silêncio total. Até que veio o post com informações sobre o próximo desfile – no caso, o deste domingo (05.03) – e uma entrevista que mais parecia um release no formato pergunta e resposta.
No texto entregue aos convidados da apresentação, Demna resume o que foi postado nas redes da maison e dito na tal entrevista-release.
“A moda se tornou uma espécie de entretenimento, mas muitas vezes essa parte ofusca a sua essência, que está nas formas e volumes, nas silhuetas, na maneira como criamos relações entre o corpo e o tecido, como fazemos as linhas dos ombros, as cavas, como as roupas têm uma capacidade de nos mudar.
Nos últimos meses, precisei buscar abrigo para o meu caso de amor com a moda e, instintivamente, o encontrei no processo de confecção de roupas. Isso me lembrou mais uma vez do seu incrível poder de me fazer feliz e me expressar verdadeiramente. É por isso que a moda, para mim, não pode mais ser vista como um entretenimento, mas sim como a arte de fazer roupas.”
Após o desfile de inverno 2023, o diretor criativo comentou como se sentiu frustrado depois das apresentações de verão 2023 e inverno 2022. São as da passarelas de lama e de neve, respectivamente. Demna falou que as pessoas ficaram presas na cenografia e não prestaram atenção nas roupas. Mal falaram dela, de acordo com o georgiano.
Quem acompanha sua carreira deve lembrar que, muito antes de se tornar diretor de criação da Balenciaga, o estilista já dizia se interessar mais por roupa do que por moda. Provocação sempre teve, algumas muito boas. No entanto, peças se autossustentavam, falavam por si próprias. Por mais que houvesse um pano de fundo, uma cenografia, não era algo essencial para apreciação, entendimento e interpretações causadas pelo design, pelo produto. Era tudo sobre construção, materiais, caimento e a relação disso com o corpo e com a personalidade de cada um.
Aí veio a Balenciaga. Em 2015, Demna se tornou diretor de criação da maison e por algumas boas coleções aplicou o mesmo pensamento sob uma lente luxuosa e atrelada aos arquivos da casa. Seu processo de pesquisa era bem antropológico, no sentido de observar e estudar como grupos de pessoas usavam as roupas para se inserir em determinado ambiente e se relacionar.
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E assim, vieram coleções gerais. Uma das primeiras surgiu a partir de como executivos do grupo Kering, do qual a grife faz parte ao lado da Gucci, Saint Laurent e Bottega Veneta, se vestiam na sede da empresa. Outra explorava os trajes de famílias e turistas num fim de semana em algum parque. Teve aquela baseada no jogo de poder dos ternos de políticos e outra sobre a montação de jovens frustrados com o lockdown pandêmico.
Fez muito sucesso, de crítica e de vendas, ao ponto da coisa subir à cabeça e sair do controle. Como uma compulsão ou vício, o desejo de ver mais um produto ou coleção viralizar e desaparecer das lojas em tempo recorde ficou insaciável. O ritmo aceleradíssimo e a obsessão desmedida por milhões de like e engajamento, passou por cima de qualquer atenção, precaução e princípio fundamental, como ética, moral, respeito e até de pessoas.
Deu no que deu.
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É interessante notar como o escândalo das campanhas da Balenciaga é emblemático para o excesso, desgaste, superficialidade e cansaço provocado pelas mídias sociais e pela economia da atenção (o método para prender o leitor ou expectador por algo completamente estapafúrdio, hiperbólico ou com humor escrachado).
Nesta temporada de inverno 2023, não se fala sobre outro assunto. Até com mau exemplo a Balenciaga e principalmente Demna são influentes. Por isso, parece improvável os boatos sobre o término de seu contrato. Por mais que não esteja 100% garantido, dada sua genialidade, talento e capacidade em gerar vendas, sua demissão seria um tanto precipitada e imprudente.
Ainda assim, não há margem para erro.
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A solução inicial foi cortar os excessos, limpar a imagem e voltar a fazer o que a Balenciaga e Demna sempre fizeram: roupas excepcionais. Só elas, sem distrações, sem choque, sem polêmica, sem cenografia mirabolante, sem provação mal pensada só pelo clique, sem qualquer possibilidade de entendimento diferente dos fatos.
Daí a conversinha de que a moda não pode mais ser entretenimento. Na real, pode sim. É só fazer direito, com respeito, com consideração, com análise, estudo e escuta. Mas deixa pra lá.
No desfile, a gente vê essa ideia traduzida no cenário limpo, todo off-white, sem nenhuma distração. Nem celebridades tinha. Influenciadores, bem poucos. A trilha era menos perturbadora, o caminhar das modelos, menos agressivo. Mais simbólico do que tudo, era a ausência de logos. Não tinha nenhum à vista.
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A apresentação abre como uma série de looks de alfaiataria, todos feitos a partir de calças e suas modelagens. As jaquetas têm ombros largos, comprimentos alongados, proporções oversized, porém algo controladas, geométricas. Nas barras vemos os cós das calças que serviram de base para aquela construção. Alguns casacos têm uma espécie de cauda. São pernas extras, que se movem levemente com o balanço do corpo.
A ideia de sobreposição e inversão de tudo percorre toda a coleção. Quando a alfaiataria dá lugar ao jeanswear, é possível perceber o recurso em denim. Sai o blazer, entra a jaqueta jeans. Nesse bloco vemos ainda looks esportivos com pegada futurista, como os conjuntos monocromáticos colados ao corpo e usados com botas de cano alto de aparência rígida e pesada – um mix de motocross com uniforme militar e de astronauta.
Outras propostas mais soltinhas e interessantes são as versões deluxe do famoso duo de calça e hoodie de moletom. Aqui, ele é de veludo de seda, com ombros arredondados e um bom laço à lá anos 1950. Tem também os vestidos florais, um clássico de Demna, com comprimento mídi, drapeados, mangas alongadas e uma capa nas costas. Alguns, sem padronagem, possuem uma camada extra de tecido para cobrir um lado do corpo, inclusive a bolsa (havia pouquíssimas delas).
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Mais próximo das inovações que o diretor de criação trouxe para a Balenciaga e como uma versão atual dos experimentos com silhuetas de Cristóbal Balenciaga em si, algumas jaquetas apresentam estruturas infladas, ombros altíssimos e colarinho idem. Dá a impressão de que o modelo está tenso, querendo esconder a cabeça entre os ombros. Ou de que aquela roupa alien está engolindo a pessoa.
É a única parte do desfile que foge da imagem polida, controlada, ainda que subversiva, do atual momento da marca. Na loja, essas peças serão vendidas com uma pequena bomba de ar elétrica para o consumidor inflar e murchar os volumes como bem entender. Ah, essas formas foram inspiradas em roupas usadas no hipismo e no motociclismo, com uma tecnologia similar a de um airbag de carro. Deu para entender, né? As pancadas foram violentas, melhor se proteger.
Por fim, entra uma sequência final de vestidos de festa. Como o resto da coleção, são modelos sóbrios, sombrios, decorados com bordados brilhantes em tons escuros ou queimados. Dá para sentir um quê vintage, o apego aos arquivos. Os ombros arredondados, meio justos, por exemplo, são uma atualização do diretor criativo de um modelo criado por Cristóbal lá por meados da década de 1960.
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E acaba assim, com o último look. Não tem fila final, nem o tchauzinho do estilista. Tem sim, a lembrança de que roupa boa, não precisa de auê e pirotecnias. As narrativas mais interessantes, convenhamos, são aquelas únicas, criadas e moldadas pela personalidade e humor de cada um.
Se vai vender, se vai superar a inflexibilidade, a aversão ao diálogo e à escuta dos tribunais das redes sociais, não tem como afirmar com certeza. A seu favor, o estilista tem outro efeito colateral do sistema de espetáculos explosivos da economia da atenção: a memória curta. Se o desfile de alta-costura, marcado para julho deste ano, for um estouro ainda maior do que o inverno 2023 de prêt-à-porter, há grandes chances do escândalo ser arquivado em alguma nuvem pouco acessada. Antes, porém, precisa de demonstrações verdadeiras de reconhecimento do erro, atitudes eficazes de reparação e comprometimento com uma nova postura e visão de negócio e criação.
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