Entendendo a polêmica em torno da Balenciaga
Enquanto a resenha do primeiro desfile da marca após a campanha com imagens de crianças em contextos sexuais não vem, relembramos o caso que balançou as estruturas do mercado de luxo.
Você já deve ter visto e lido a respeito, mas não custa nada lembrar aqui, até porque, a essa altura do campeonato, já tem muita teoria da conspiração sendo repostada como verdade. Então, vamos lá: o que você precisa saber sobre as mais recentes polêmicas em torno da Balenciaga?
Para começar, os fatos:
No começo do mês, a Balenciaga divulgou a campanha Gift Shop para apresentar a nova linha de presentes de fim de ano, composta de alguns acessórios e objetos para casa. Em algumas das fotos, crianças aparecem segurando ursinhos de pelúcias com looks bondage de couro, cercadas por outros produtos. Não demorou para acusarem – com razão – a etiqueta de sexualizar menores de idade.
Comunicado postado pela Balenciaga em sua conta no Instagram. Foto: Reprodução
Na semana passada, todo o feed da marca foi apagado (prática feita de tempos em tempos), com exceção de um comunicado no qual a Kering, grupo do qual a grife faz parte, se desculpou pelo ocorrido e reiterou o repúdio a qualquer forma de exploração e abuso de menores.
Desculpas sinceras, as que interessam
O post não surtiu efeito. Quer dizer, não surtiu o efeito desejado. Sem se responsabilizar e propor uma ação concreta, as desculpas soaram mais protocolares do que sinceras. O auê continuou nas redes sociais.
A atriz Isabelle Huppert na campanha de verão 2023 da Balenciaga. Foto: Reprodução
No Twitter, alguns usuários passaram a divulgar detalhes de uma outra coleção, a de verão 2023. Um deles, foca em um livro disposto sobre a mesa, em que a atriz Isabelle Huppert apoia seus pés. É do artista belga Michael Borremans. Ainda que seu trabalho seja variado, muitos deles apresentam crianças – às vezes de maneira bem perturbadora.
Em outro zoom e em outro recorte, a bolsa Hourglass em parceria com a Adidas, está colocada sobre um monte de papéis (a foto do abre desta matéria). Uma dessas folhas, é uma cópia de uma decisão da Suprema Corte estadunidense, na qual o tribunal manteve uma lei federal que proíbe o favorecimento de pornografia infantil.
M***a no ventilador.
E aí, hein?
Na segunda-feira, 28.11, depois de alguns dias bem quietinha, Kim Kardashian, principal celebridade e estrela de anúncios da grife, se posicionou. Disse se sentir revoltada e enojada com o que viu e que está repensando sua relação com a empresa. “Como mãe de quatro filhos, fiquei abalada com essas imagens perturbadoras. A segurança das crianças deve ser considerada com a maior consideração e qualquer coisa contra ela não deve ter lugar em nossa sociedade – ponto final”, escreveu em um post na sua conta no Instagram.
Ah, sobre a demora do pronunciamento, Kim disse que estava esperando para ver como a Balenciaga reagiria.
O site The Business of Fashion havia anunciado no começo do ano que entregaria o prêmio Global VOICES de 2022 ao diretor criativo da Balenciaga, Demna (ele não quer mais que usem o sobrenome Gvasalia). No entanto, como os diretores da marca não responderam os pedidos de explicação enviados pelo veículo, o mesmo decidiu não entregar mais o prêmio ao estilista.
Noticiada na Fox News, canal de televisão sabidamente associado à ala mais conservadora da política e sociedade estadunidense, a campanha foi rapidamente assimilada ao discurso de extremistas religiosos e de extrema direita. Alguns posts, aliás, foram bem replicados por aqui e internacionalmente, sem qualquer atenção à fonte ou a alguns conteúdos fora de contexto.
Como os que envolvem a stylist Lotta Volkova, colaboradora de longa data de Demna e uma das mais requisitadas do momento. Suas fotos no Instagram não ajudam na sua defesa. Na real, são um prato cheio para os guardiões das morais e bons costumes das redes sociais. Não que ela seja santa, longe disso. A russa já foi figura central de muitos relatos de maus tratos a modelos, racismo e gordofobia. Contudo, já há algum tempo sem trabalhar para a Balenciaga, ela não tem nada a ver com a história.
Outro que foi alvo de críticas e discursos de ódio foi o fotógrafo Gabriele Galimberti, este sim responsável pela campanha Gift Shops. Sua contratação não foi por acaso, pelo contrário. Foi especificamente pela série Toy Stories. Durante um ano, o italiano visitou mais de 50 países, onde registrou crianças em suas casas ou vizinhanças com seus pertences mais preciosos: seus brinquedos. Assim como em boa parte de seu trabalho pessoal, as imagens carregam um tom de crítica social, com um tratamento visual bem plástico. São uma forma de expressão artística.
Na Balenciaga, trata-se de publicidade, com fins comerciais evidentes. Quando as críticas começaram a surgir, Gabriele logo se posicionou. Disse que não estava em posição de comentar as escolhas da marca e reforçou que não foi encarregado de escolher os produtos, os modelos e a combinação de ambos. “Como fotógrafo”, escreveu em um post no Instagram, “só fui solicitado para iluminar a cena e capturar as imagens de acordo com meu estilo”.
A gente sabe que não é bem assim que funciona. E qualquer um minimamente interessado por moda também. Como já foi bem esmiuçado em documentários e até nos filmes fashion durante os meses mais tensos da pandemia, o papel do fotógrafo é essencial na construção da imagem e narrativa nela contida. A palavra final pode até ser do contratante, mas a troca existe e é esperada.
Tanto que a direção do grupo Kering nem menciona o seu nome nos comunicados divulgados. Assim como também não menciona e até tenta eximir de culpa alguns profissionais internos encarregados de analisar e aprovar os materiais publicitários e criativos.
Na manhã da segunda-feira, 28.11, veio a público uma medida judicial da Balenciaga contra a produtora North Six, Inc. e o profissional Nicholas Des Jardins, que assina o set design da campanha de verão 2023. Segundo a notificação arquivada na Suprema Corte do Estado de Nova York, em 25.11,em 25, a marca busca “reparação por danos extensos que a produtora causou em relação a uma campanha publicitária, para a qual a Balenciaga os contratou”. O valor da indenização é de 25 milhões de dólares. E entre os argumentos, diz que Nicholas colocou documentos da decisão da Suprema Corte sem conhecimento e aprovação da maison.
Pouco provável, nada surpreendente e muito revoltante. Pouco tempo depois de ser contratado como diretor criativo, Demna ganhou plenos poderes dentro da empresa. Como foi noticiado, era ele o responsável por toda a visão e visual da Balenciaga – do interior das lojas, ao feed no Instagram e, principalmente, as imagens publicitária ou por simples necessidade de comunicação. Mas agora que deu ruim, ele, que reverte alguns milhões em vendas e lucro para a Kering, não tem nada a ver com isso.
A internet, ou melhor, os usuários dela também perceberam e não ficaram quietos. Apesar das fake news e das teorias da conspiração, tem muito conteúdo bom, com explicações bem didáticas, sobre o problema da coisa toda. Alguns profissionais da área também se posicionaram. Nicolas Ghesquière, atualmente na Louis Vuitton e ex-Balenciaga, foi o primeiro deles. Em um story, depois apagado, ele comentava sobre a falta de transparência e consideração de executivos do grupo Kering em relação a seus colaboradores.
Pegou mal, e Kering e Balenciaga voltaram a postar um outro comunicado para dizer que estão reavaliando tudo e tomarão as medidas necessárias, ó:
Na semana passada, após o anúncio da saída de Alessandro Michele da Gucci e do fim da marca da Raf Simons, escrevi sobre a desumanização em curso na indústria da moda. Desde os anos 1980, quando o conceito de luxo deixou de ter mais a ver com status e dinheiro do que com um produto feito exclusivamente, com exímio cuidado, manualmente e com materiais da melhor qualidade. Alguns escritores até argumentam que o luxo, em si, foi substituído por um aspecto luxuoso.
Acontece que essa mudança não tem só a ver com costura e confecção de roupas especiais. Ela esbarra, ainda que silenciosamente, no fator humano tão essencial à moda.
Me olha, me curte, comenta e me reposta!
Antes de assumir a direção criativa da Balenciaga, Demna já mostrava entender bem os mecanismos para fazer uma imagem e, sobretudo, uma roupa viralizar. Lembra da camiseta da DHL e da bolsa da Ikea, feitas pela Vetements? Então…
Na maison espanhola, essa lógica pôde alçar vôos mais ambiciosos e ousados. Quase todos os desfiles da marca traziam algum comentário sobre recortes do mundo em que vivemos. Teve aquele em que a sala foi decorada para parecer com o parlamento da União Europeia (verão 2020), teve a passarela inundada de água (inverno 2020) e, mais recentemente, o na Bolsa de Valores de Nova York (resort 2023), o da neve (inverno 2022) e o da lama (verão 2023).
Em todos eles, além da imagem e das mensagens subliminares da apresentação, haviam produtos caça-clique com extremo potencial de sucesso. Na temporada passada, foram as toalhas e bolsas de couro com aparência de saco de lixo. Na atual, a de verão 2023, tem as embalagens da batata Lays e os infames ursinhos fetichistas.
Discórdia rende assunto, engajamento e visualizações. Polêmicas são quase sempre bem-vindas nessa mentalidade. E, verdade seja dita, Demna foi capaz de tecer conexões entre moda e o que acontece no resto do mundo com especial perspicácia. O problema é a intensidade e velocidade da coisa toda. Atenção é algo tão escasso e de difícil acesso que a estridência precisa ser cada vez maior para prender e engajar o consumidor – para o bem e para o mal. Afinal, o que importa mesmo são os números. E logo, logo, ninguém lembra mais de nada.
Não espanta que a estratégia de marketing da tal economia da atenção, baseada em memes e viralizações com quase nenhum compromisso ético, seja bastante similar – idêntica até – à lavagem cerebral promovida por grupos extremistas e reacionários com suas fake news e surtos de desinformação. Vide algumas reações aos casos citados nesta matéria.
É assustador pensar que acharam que essa mais recente campanha não daria ruim. Ou que não teve um único ser vivo com bom senso para sinalizar o problema – ainda seja mais chocante o fato desse tipo de coisa precisar de aviso. É o que acontece quando, no dia a dia, nos bastidores, nas engrenagens do sistema, as pessoas passam a ser vistas como ferramentas, e não seres humanos.
Resta saber se toda a comoção é sinal de um real desejo de transformação ou só vontade de ver o circo pegando fogo.
ATUALIZAÇÃO: No dia 02 de dezembro, o diretor criativo da Balenciaga, Demna, publicou um comunicado em sua conta no Instagram. Na mensagem, ele se desculpa pelas imagens produzidas para a campanha Gift Shop e atesta comprometimento com medidas de conscientização e responsabilização pelos materiais com teor pedófilo. “Por mais que, às vezes, eu queira provocar algumas reflexões como meu trabalho, NUNCA tive a intenção de fazer isso com um assunto tão terrível como o abuso infantil, que condeno”, escreveu o estilista.
Na tarde da sexta-feira, 03.12, foi a vez do CEO da maison, Cédric Charbit, se manifestar. Na conta da Balenciaga no Instagram, o executivo também pediu desculpas pelo ocorrido e listou uma série de ações que devem ser tomadas em breve para evitar falhas futuras, educar seus colaboradores e profissionais e contribuir para o respeito e proteção dos direitos das crianças e, principalmente, pela luta contra o abuso infantil.
Entre as medidas elencada, está a formação de um conselho para análise e aprovação de todo material visual feito pela grife, a contratação de uma agência externa para moderar os conteúdos da marca e a desistência do processo legal contra a produtora North Six Inc.
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