Na Balenciaga, Loewe e Valentino, diferentes formas de imaginar o mundo
Cada um à sua maneira, os estilistas Demna, Jonathan Anderson e Pierpaolo Piccioli exploram as relações entre roupas, corpo e realidades nas coleções de verão 2023 desfiladas na Paris Fashion Week.
Na manhã de domingo, 02.10, quando as primeiras imagens da coleção de verão da Balenciaga começaram a aparecer nas redes sociais, ninguém imaginava que o lamaçal do cenário poderia ser uma metáfora para os resultados do primeiro turno das eleições nacionais. Pelo contrário, até se esperava que, depois de anos afundados até a cabeça na mais suja lama, poderíamos, enfim, trilhar caminhos mais dignos e humanos.
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
Em entrevistas após a apresentação, Demna se disse uma pessoa otimista. São o mundo e as pessoas com poder de decisão nele que forçam a visão pessimista. Coincidências à parte, o diretor de criação com certeza não estava pensando no Brasil quando começou a esboçar a coleção.
Existem outros motivos e conexões, mais pessoais até, para ele. O drama entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, engatilhou uma série de memórias ruins para o estilista georgiano (em 1993, ele e a família precisaram abandonar a casa onde viviam para fugir da guerra na Abecásia). Tem o caos climático, a persistente ascensão fascista e da extrema direita, ameaça nuclear, pandemia, fome, desigualdade e mais um tanto de horrores.
De certo modo, a coleção de verão 2023 da Balenciaga pode ser vista como uma continuação da coleção passada, a de inverno 2022. Com a neve derretida e um terreno destruído, não sobra muita coisa a não ser barro, sujeira e uns sobreviventes, que parecem não saber mais quem são nem para onde vão. Ah, e Kanye West.
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
Como de costume, boa parte das roupas é pensada para reproduzir alguns arquétipos sociais. Ou seja, para lembrar figuras ou personagens que habitam nosso mundo. Tem o executivo de terno e gravata, a dona de casa com seu vestido floral, o pai com jeans, camiseta e suporte para o bebê de colo, a socialite festeira com vestido longo brilhante, os aficionados por esportes, as clubbers… Só que agora está todo mundo perdido, surrado (a maquiagem simulava hematomas e ferimentos), caminhando num ambiente distópico, com cheiro de material orgânico em decomposição, goteiras e lama por toda a parte (o cenário foi assinado pelo artista espanhol Santiago Sierra).
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
Quem lembra do auê nas redes após a divulgação do tênis com aparência detonada da Balenciaga, meses atrás, vai enxergar alguns paralelos. Essa não é a primeira vez que o estilista brinca com a estética convencional de uma marca de luxo e o que se espera dela. Recentemente, a grife também comunicou a ampliação do seu programa de revenda (clientes podem levar seus acessórios usados para as lojas da etiqueta em troca de dinheiro ou créditos). O look final (na foto de destaque) era um vestido de couro feito com partes da bolsa Le Cagole.
No release, Demna disse que estava cansado de ficar explicando suas criações, que isso resultava, quase sempre, em pessoas o colocando em caixas ou estilos pré-concebidos. “É preciso ter coragem e persistência para assumir nossa real identidade e quem realmente somos”, escreveu ele. “Todo dia se torna um campo de batalha para defendermos essa identidade única. E quanto mais você tenta ser você mesmo, mais socos leva na cara.”
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
O convite para o desfile era uma carteira aparentemente usada. Dentro dela, nada de documentos ou algum tipo de identificação, só cartões, tipo aqueles de clube de desconto, crediário ou academia. Para quem curte uma semiótica, a ausência de identidade pode ser vista também na passarela, no caminhar meio sem rumo dos modelos e na forma como as roupas se mostram um tanto desprovidas de personalidade.
O fato de serem itens bem comuns no cotidiano de algumas pessoas só reforça tal interpretação. Bem como a ideia de que vivemos num mundo de consumo exacerbado, sem limites ou preocupações futuras. Demna sempre gostou desse assunto, desde a época da Vetements. A intersecção entre produto, consumo, vestimenta, cultura e sociedade é um dos motivos por trás de sua influência e da atenção que atrai. Agora, é quase uma evolução apocalíptica do I shop therefore I am (eu compro, logo existo), da artista Barbara Kruger, somado ao caos global já mencionado anteriormente.
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
Outro ponto importante é a provocação: a subversão da concepção de luxo como algo imaculado, perfeito e a ironia ou suposto humor de fazer gente rica gastar (muito) com roupa que parece suja, rasgada, velha. Em quem está a piada e quem paga a conta são perguntas válidas e bem mais complexas de responder. Aliás, elas têm sido um ponto delicado no trabalho recente do estilista.
A desconstrução e ressignificação de materiais banais em um contexto luxuoso não é o problema central (e nem novidade, como já mostraram Rei Kawakubo, na Comme des Garçons, e Martin Margiela). O que pega é a comercialização de narrativas e estéticas nada distantes das violências e sofrimentos reais de algumas milhares de pessoas.
Coleção de verão 2023 da Balenciaga, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
O comentário social faz parte do poder de expressão da moda, porém há alguns limites éticos e morais que não podem ser ignorados. Ao longo do fim de semana outras boas coleções mostraram maneiras diferentes de questionar e experimentar não só com as roupas, mas com sua relação com outros objetos, contextos e o próprio corpo.
A coleção de verão 2023 da Loewe
Durante a London Fashion Week, Jonathan Anderson apresentou uma coleção para sua JW Anderson, que falava sobre a distorção da realidade por meio da nossa dependência com a tecnologia, principalmente nossos telefones celulares. Na Paris Fashion Week e para Loewe, ele continua explorando o tema, porém de um ponto de vista mais natural – ou quase. É que, depois de algumas temporadas debruçado sobre ideias e artistas surrealistas, ele se pegou pensando sobre o jogo entre real e falso na natureza.
Coleção de verão 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images
O desfile aconteceu numa sala toda branca, com um antúrio vermelho gigante saindo de uma abertura no chão de madeira. De lá, também saíam as modelos, algumas delas com roupas na forma da tal flor de aspecto fálico. Algumas eram a própria planta meio agigantada, cobrindo quase todo o corpo com sua superfície reluzente. Outras apareciam delicadas sobre um peito, com a alça dando a volta por trás do pescoço e se ligando a um vestido de couro de corte simples. E tinha ainda aquelas nos saltos dos sapatos, quando estes não eram cobertos de bexigas murchas ou feitos de material plástico ou acrílico, como os da boneca Barbie.
Coleção de verão 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images
Tinha ainda vestidos florais que mais pareciam porcelanas vestíveis, modelos tomara-que-caia com estruturas pontiagudas e tecido drapeado, vestidos plissados com ombros e golas reduzidos, como se distorcidos por alguma lente, parkas com estrutura evasê rígida, que parecem flutuar sobre o corpo, e os tricôs geométricos que lembravam imagens pixeladas ambulantes. E sim, esses não têm nada de orgânico, mas num mundo mediado por telas e criações digitais, dá para dizer que isso já não é algo natural? São com essas loucurinhas e perguntas meio sem pé nem cabeça ou resposta que Anderson tenta evoluir estética e processualmente.
A coleção de verão 2023 da Valentino
Na Valentino, o diretor de criação Pierpaolo Piccioli chamou a coleção de verão 2023 de Unboxing. O nome não tem muito a ver com os vídeos virais nas redes sociais. Está mais ligado à questão de sair da caixa para mostrar sua própria identidade, seu verdadeiro eu. Daí o mar de looks monocromáticos, dos beges e marrons ao famoso vermelho da marca. É que sem muitas informações, como estampas e bordados, um look todo numa cor, dizem, ressalta o rosto, faz com que os olhares sejam direcionados para lá mais facilmente.
Coleção de verão 2023 da Valentino, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação
No camarim, o estilista disse a alguns jornalistas que um dos objetivos era reforçar a diversidade. Por isso, alguns looks eram compostos de duas peças, muitas delas com amarrações ou ajustes elásticos. Os acabamentos permitiam não só uma maior adaptabilidade de tamanhos e formas físicas como também diferentes maneiras de vestir. A ideia é interessante, mas morre com um casting homogêneo e com a escolha de um sapato que fez com que muita modelo não conseguisse parar em pé.
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