O que há em comum entre a saída de Michele da Gucci e o fim da marca de Raf Simons

O que os acontecimentos recentes revelam sobre o modus operandi do mercado de moda.


O estilista Alessandro Michele ao fim de um desfile da Gucci.
Alessandro Michele. Foto: Getty Images



“Fim de uma era” deve ser a expressão mais usada nas redes sociais dos amantes de moda nesta semana. E talvez seja mesmo – a mais usada e o fim de um era. Sem dúvidas, é um sinal dos tempos, da evolução e consolidação de um sistema de produção, comercialização e comunicação em curso já há alguns anos, décadas até, do qual muitos de nós fazemos partes e colaboramos de várias maneiras, meio sem querer ou fingindo não saber.

Na segunda-feira, 21.11, Raf Simons comunicou o fim das atividades de sua marca homônima. Como o comunicado foi via Instagram, sem nenhum comentário de Raf, não dá para dizer exatamente o que motivou a decisão. Não custa lembrar, no entanto, que, apesar de bem consolidada, a etiqueta do estilista belga era independente. A sobrevivência de empresas desse tipo nunca foi fácil. Depois da pandemia, piorou. E some aí o ritmo frenético das nossas vidas atualmente, a fome insaciável por novidade (um caso sério de olho maior do que a barriga) e um crescente desinteresse de boa parte das pessoas por formas de criação – e até de moda – na sua mais pura essência, sem truques e pirotecnias de marketing.

 

Aí, na quarta-feira, 23.11, a Kering confirmou a saída de Alessandro Michele do cargo de diretor de criação da Gucci. Confirmou, porque, na noite anterior, o jornal WWD já havia publicado uma matéria dando conta do que deveria ser oficializado dali algumas horas. O crescimento já não era tão intenso como antes e o interesse do público também vinha em queda.

Ao contrário do que muita gente apostou, o que mais se vendeu no pós-vacina eram o completo oposto que a Gucci vinha propondo nos últimos sete anos. Os desejos, dizem os analistas de tendência, é por roupas discretas, clássicas e atemporais. Apesar de ter uma das identidades mais fortes no mercado, a grife acabou refém de si mesma e do seu tempo. É difícil olhar para uma coleção de Michele e não lembrar de sensações ou momentos pré-pandêmicos que… Bem, não existem mais.

 

Semanas e meses antes, a gente também viu a saída de Daniel Lee da Bottega Veneta, de Riccardo Tisci da Burberry (para onde foi Lee) e a venda da marca de Tom Ford para Estée Lauder. Nada de novo no front. A dança das cadeiras já acontece há algum tempo. E é justamente aí onde a coisa pega. Na mesmice.

Recordar é viver

Lembram que, em 2020, no meio do caos generalizado e da completa falta de perspectiva, teve um monte de discursos sobre como sairíamos dessa melhor do que entramos? Com mais responsabilidade em todos os sentidos, menos consumistas, dando o devido valor ao que é, de fato, especial ou precioso e, acima de tudo, apoiaríamos profissionais mais vulneráveis aos baques da economia. Pois bem, não rolou. O de cima subiu ainda mais e o de baixo desceu, quer dizer, despencou.

Tem uma série documental rolando no Reino Unido chamada The kingdom of dreams, e o timing não poderia ser mais adequado. Eu ainda não vi, não está disponível no Brasil por enquanto, mas produção é baseada no livro Deluxe: how luxury lost its lustre, da Dana Thomas, Ettedgui e Bonhôte lay – leitura importante para quem se interessa pelo assunto. É sobre, bem resumidamente, como a lógica mercadológica obstinada em lucro contribuiu para uma série de problemas na moda: do colapso mental de estilistas ao consumo desenfreado.

Boa parte do livro e, imagino que da série também, tem como objetivo as aquisições de marcas no fim dos anos 1990 e começo dos 2000, com a nomeação de jovens talentos para os postos de direção criativa. John Galliano na Dior, Alexander McQueen na Givenchy, Marc Jacobs na Louis Vuitton e por aí vai.

Foram poucos os que não surtaram. 

É uma história, infelizmente, bem comum no meio. Depois de cada breakdown, a pessoa colapsada é prontamente substituída por uma nova. Thank you, next. E, às vezes, sem a parte do agradecimento. A prática se tornou costumeira, seja lá o motivo da troca: vendas em baixa, polêmicas envolvendo o estilista, más condutas, abusos ou assédios no trabalho.

Por volta dos anos 2010, os executivos começaram a se cansar da figura do estilista estrela, cuja fama e identidade se confundiam – e até concorriam – com a da casa onde trabalhavam. Foi quando nomes poucos conhecidos começaram a ser considerados e anunciados para o topo da pirâmide criativa. A grande maioria deles vieram da próprio empresa, então já era garantido um certo entendimento sobre aquele universo. Eram também mais adaptáveis às vontades dos donos do dinheiro.

Maria Grazia Chiuri, hoje na Dior, e Piearpolo Piccioli, na Valentino, são bons exemplos. Daniel Lee, ex-Bottega e atual Burberry idem. Mas poucos tiveram o sucesso estrondoso e em tempo recorde de Alessandro Michele, na Gucci.

Quem manda é o freguês?

Só que todo carnaval tem seu fim. Assim que as criações de Michele deixaram de atingir o resultado esperado com a rapidez dos anos anteriores, não demorou para que sua substituição se tornasse a principal aposta para retomar o interesse do público.

Curiosamente ou não, o comunicado de sua partida veio dias depois de uma polêmica envolvendo a campanha de de fim de ano da Balenciaga, também administrada pela Kering. Algumas das imagens traziam crianças em contextos e cenários inapropriados e com teor sexual.

 

Não estou falando que Alessandro levou o tiro pelo Demna, o fim de seu contrato já devia estar em negociação há meses. Porém, não é improvável que o anúncio de sua saída tenha “vazado” e, no dia seguinte, sido oficializado para desviar o foco do assunto. É uma atitude recorrente, ainda que pouco explícita.

A objetificação das crianças no anúncio repugnante da Balenciaga pode ser vista como um reflexo do que estamos falando: uma cultura e sistema que vê seres humanos como números ou ferramentas. E com a alta rotatividade de criativos normalizada, fica mais fácil e menos explícito o descarte e reposição de talentos, como se fossem peças mecânicas. Afinal, o que importa é o legado, a herança, o status. Quem está interpretando tudo isso é só… Bom, um intérprete.

A cultura e pressões dentro do ambiente de trabalho também não mudaram desde a queda daqueles grandes gênios já mencionados. Talvez o que tenha se alterado é a mentalidade dos profissionais de agora. A maioria já cresceu com esse modelo como padrão. É pegar ou largar, sabe como? Daí a perversidade. Seguir sozinho, independente, é cada vez mais difícil. Ainda mais quando muitos de nós têm dificuldades gigantescas de atenção e discernimento para além do imediato, do óbvio, do meme viral. Não à toa a tal economia da atenção é cada vez mais citada em estratégias de marketing e comunicação. Basicamente (e bem basicamente mesmo) tudo precisa ser engraçado, polêmico ou estridente para prender o olhar do consumidor.

Desde os anos 1980, o número de estilistas independentes que conseguem se manter no mercado cai vertiginosamente. O motivo é a expansão do domínio de grandes grupos de luxo. Com enorme poder de investimento, suas estratégias são de verdadeiras construções narrativas e de contexto  para muito além da passarela – e até da roupa mesmo, da moda. Importa mais o entorno do que a coisa em si. É o espetáculo na semana de moda, as ações de marketing ao redor do mundo, as celebridades e, mais recentemente e num nível bem macro, a manipulação de desejos via conteúdos das redes sociais.

Michele caiu porque não engajava mais como antes. Sim, faz parte do trabalho de um estilista entender e responder às variações de humores e vontades de seu público. Vide as últimas coleções focadas em alfaiataria e elementos clássicos até certo ponto (não dá para apagar uma identidade como aquela de uma hora para outra). Mas o que de fato é essa demanda, o quão autêntica ela é, como se transforma uma identidade tão marcante em tão pouco tempo? Pois é, não faz. Ninguém pode esperar. Porque a vida é agora, já dizia o slogan de uma campanha publicitária da Visa, a operadora de cartões de crédito. 

E Raf talvez tenha se cansado de fazer roupas, com design inteligente e conexões mil com outras camadas culturais, e morrer na praia, sem tantos likes ou comentários do que é considerado sinal de sucesso, de qualidade. Diz que é tudo que importa atualmente. E quer saber, errado ele não está. Ainda mais na sua atual posição. Melhor ter mais tempo para se dedicar a outras formas de expressão artística e intelectuais. Afinal, aproveitando o embalo de clichês, tempo é o maior luxo da vida.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes