Casa de Criadores sem filtro: Alexei, Fkawallys Punk Couture, Studio.AH e outros

No quarto dia de CdC, dividem-se os designers felizmente obsessivos e aqueles que podem deixar o potencial aflorar


Alexei. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite



Bons criativos, em geral, têm alguma dose de obsessão. Tudo bem, não precisa ser tão apaixonado assim. Os mais técnicos, por exemplo, têm como algo equivalente um compromisso intenso com a produção. É assim que o trabalho deles se destaca, porque o sujeito é muito preocupado com a costura, necessitado demais em criar imagens interessantes, incansável na expansão da sua pesquisa – seja ela temática ou material. 

Isso explica, em parte, porque o jovem designer Leonardo Alexei, da Alexei, se sobressaiu no quarto dia de Casa de Criadores. Trata-se da segunda coleção do estilista no evento. No camarim, ele explica como a literatura é uma grande fonte de inspiração, de Machado de Assis a Sylvia Plath. Ele afirma ainda que juntou lixo, como pedaços de jornal e embalagem de sucrilhos, com paninhos pintados à mão “pela irmã Rose”, além de costurar looks de jeito vintage, como ceroulas, para enganar os olhos e parecerem garimpados em brechó. O upcycling, em si, também existe, como no smoking com mais de setenta anos, e nos retalhos de tecidos bordados que ele ganha da costureira com a qual trabalha. Ela, uma especialista em moda festa, sabe que Alexei usa aquele mesmo brilho das clientes tradicionais, só que de um jeito completamente diferente. 

Modelo no desfile de Alexei.

Alexei. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

No moodboard do designer, dá para sacar vários personagens que vão cruzar a passarela, como um pierrô apaixonado, uma noiva skatista, uma dona de casa caipira, uma tia que coleciona gatos, além de uma princesa que também pode se passar por uma debutante forrada por paetê. Acontece que Alexei pode parecer muito pirado nas reuniões de ideias e materiais, mas é justamente a liberdade de se permitir viajar o que torna tudo especial. Por mais que o seu e-commerce tenha camisetas simples à venda, ele reserva algo para a passarela, uma emoção. “A gente tem que ter um motivo para estar aqui, não é mesmo?”, ele pergunta. “Para a gente sair de casa, precisa existir uma boa história para contar.” A história não só é boa, como tem desenhado um estilo identificável para a marca: quixotesco, lunático, pastel, brilhante, rural e urbano. Sem dúvidas, emocionado. 

O exemplo acima é para reforçar que a ideia de obsessão ou, pelo menos, de compromisso com a própria produção é o que tanto se espera de nomes que fazem parte da Casa de Criadores, evento este que, ao longo de seus 25 anos, se firmou na moda brasileira como o expoente criativo, berçário de designers que fogem do comum, apresentam uma identidade.

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Fkawallys Punk Couture. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

Isso rolou também com outros estilistas na mesma noite, em maior ou menor grau. Fábio Kawallys, da Fkawallys Punk Couture, coloca tachas e rebites em jaquetas de couro há tanto tempo e com tamanha obsessão que é impossível não distinguir a sua marca. A apresentação não é sobre novidade, ainda que ele diga estar mais sexy nesta temporada, com a  customização também em jockstraps. Acontece, porém, que a etiqueta mostrou alma, energia e assinatura, o que faz todo sentido a celebração. 

É uma delícia ver uma figura icônica como Bianca Exótica desfilar para o estilista, enquanto ele toca guitarra no fundo da passarela. Deu ainda mais vontade de ter uma peça sua – de tacha em tacha, ela entrou para os clássicos da roupa clubber nacional. 

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Studio AH. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

Outro destaque da noite também é de fervo. A Studio AH, de Aya Honda e Anna Operman, existe há dez anos em São Paulo. A marca já teve ateliê no Paraíso, loja na rua Augusta, mas fez fama mesmo vendendo o seu upcycling de alfaiataria em festas de techno da metrópole, como a Blum e a Caps Lock. 

A decisão de estrear na passarela é dar fôlego novo à etiqueta. Existem características interessantes na coleção, como desenhar novos decotes nas roupas e o trabalho com cera derretida. O visual é de montação e conta com um detalhe ótimo: boa parte do material usado vem do acervo das estilistas e, por isso, desfilaram mais uma vez na passarela peças de nomes como Alexandre Herchcovitch, Gloria Coelho e Reinaldo Lourenço, mas reconstruídas pelas mãos dessas duas mulheres trans. “A ideia é construir algo luxuoso, mostrando que a trans pode se vestir de maneira poderosa e não só deixar seu corpo à mostra de forma vulnerável”, explica Honda. O desejo estava lá, a plateia sentiu e aplaudiu bem. 

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Estúdio Traça. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

Teve ainda Lourrani Baas, em vídeo, mas com uma moda importante para corpos maiores e que não deixa de ser colorida, estampada e divertida. A Xyboia, de Xãtana Xãtara, foi a representante da vez da tal transmutação têxtil, upcycling de viés político e social feito por e para pessoas transsexuais e travestis. A Estúdio Traça, de Gui Amorim, fez uma inusitada mistura de melancolia e sensualidade. Recortes de coração deixavam os seios das modelos à mostra, enquanto que a lavagem do jeans, material-chave da casa, foi para tons mais sóbrios de cinza e ocre. 

Cynthia Mariah desfilou a coleção Força Bruta para contrariar os estereótipos racistas reservados historicamente às mulheres negras. A estilista, que tem a marca há 18 anos e é referência na pesquisa de moda afrobrasileira, fez da sua estreia um espaço para mulheres negras aflorarem as suas feminilidades, com direito a tule, renda, crochê, pérola e uma make “de Barbie”, como a própria designer definiu. 

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Cynthia Mariah. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

A Cozonosan também debutou, mas, por sua vez, fez isso reciclando e-waste, que é o lixo eletrônico e vem de controle remoto, celular e televisão, por exemplo. Bonito o trabalho de transformar LED’s em flores aplicadas em roupas e acessórios. Como a estilista Gabriela Kozono contou, o nome da etiqueta significa “pequeno jardim” e ela quis construir o seu de um jeito tecnológico, sustentável e cyberpunk. 

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Cozonosan. Foto: Marcelo Soubhia | Agência Fotosite

Deu vontade de ver mais flores e a gente acredita que a marca ainda vai abrir outros botões de LED ou outros materiais no futuro. Talvez isso aconteça com uma pitada de obsessão ou, como dito antes, um compromisso mais intenso com esses trabalhos que são tão cheios de potencial. 

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