Climão na alta-costura! A polêmica da Schiaparelli passada a limpo

O que as discussões sobre os looks com cabeças de animais (de mentira) revelam sobre os nossos tempos e escondem sobre o verão 2023 de haute-couture da marca.


Modelo com vestido com cabeça falsa de leopardo no desfile de alta-costura da Schiaparelli.
Maison Schiaparelli, verão 2023 alta-costura. Foto: Divulgação



Climão na alta-costura! E logo no primeiro desfile, o da Maison Schiaparelli. Começou antes mesmo da primeira modelo pisar na passarela. Culpa de uma convidada muito atrasada e alvo fácil de comentaristas das redes sociais: Kylie Jenner. Aliás, não seria exagero argumentar que todo o auê só rolou por conta da caçula e mais rica das Kardashians.

É efeito colateral da internet, da ideia de que a tecnologia seria capaz de saciar nosso desejo por conexão. Talvez até tenha saciado. Até dar ruim. No livro The age of unpeace: how connectivity causes conflict (2021), o escritor e diretor do Conselho Europeu de Relações Internacionais, Mark Leonard, escreve que “a conectividade dá às pessoas a oportunidade de brigar entre si, porque dá a elas motivos: ao nos compararmos com os outros ao redor do mundo, separamos nossas sociedades em bolhas filtradas e polarizadas, espalhando uma inveja endêmica”. Tem pontos positivos, como a abertura para minorias antes silenciadas se fazerem ouvidas. O problema é a lógica e funcionamento do sistema. A preferência é o individual acima do coletivo, assim alimentando frustrações e ressaltando desigualdades.

Voltando… Odeiam tanto a Kylie Jenner, por tantos motivos, que qualquer ação da moça é fagulha para queimar quengarais inteiros (nada contra as quengas, que fique claro). Foi só garota chegar atrasada na apresentação da haute couture da Schiaparelli, em um vestido preto sem alças, com a cabeça de um leão no peito direito, para a internet se incendiar.

O bicho era de mentira, feito de espuma, madeira e pele sintética pintada à mão. Durante o desfile, a mesma peça apareceu no corpo da modelo Irina Shayk. Teve ainda Shalom Harlow com um vestido de material que simulava a pelagem de um leopardo branco, também com a cabeça do animal fixada no torso. E Naomi Campbell em um casaco preto felpudo, com a reprodução de um lobo saltando do ombro esquerdo.

E dá-lhe mais lenha na fogueira. Tem quem ache que se trata de taxidermia real oficial. Alguns, que leram as notas da marca atestando a artificialidade da coisa toda – “nenhum animal foi machucado no feitio dos looks” –, dizem de nada adiantar a explicação. As imagens podem incitar a caça e o abate de espécies ameaçadas de extinção. Para poucos outros, o auê é pura bobagem. Aquelas roupas são, na verdade, críticas ao fascínio démodé por peles.

É bem capaz que seja isso mesmo. Nesta coleção, o diretor de criação Daniel Roseberry teve como ponto de partida os poemas da Divina comédia, escritos por Dante Alighieri no século 14. Num resumo bem grosseiro, a história acompanha a jornada do protagonista, o próprio Dante, até o inferno em busca de sua amada. Antes de adentrar o portão enorme, sobre o qual lia-se “abandone toda a esperança vós que entrais aqui”, rola um pensamento de que, talvez, aquele não seja o caminho mais rápido. Talvez fosse mais direto ir pela floresta negra.

Naquela mata escura, uma alusão à corrupção e aos pecados, Dante encontra três bestas: um leopardo sedutor, fascinante e mortal (representando a luxúria); um leão violentamente cheio de si, sem nenhum pudor em intimidar os outros com suas convicções (uma alegoria ao orgulho); e uma loba meio esfomeada, insaciável, disposta a tudo para satisfazer suas vontades (uma metáfora para avareza). Os três bichos convencem o personagem a dar meia-volta e atravessar os nove círculos do inferno. Ah, só ia para o inferno quem atentava contra as leis da natureza e provocava danos à natureza humana.

Semiótica gritando, né? 

Agora, vamos olhar para outra história. A de Elsa Schiaparelli em si. Muita gente taxou o desfile como de extremo mau gosto. A estilista e fundadora da casa deve ter ficado feliz. Afinal, não dá para dizer que Schiap se preocupava com qualquer noção de um suposto bom gosto. Foi se rebelando contra essas ideias que se tornou revolucionária.

Os valores daquela época não são os mesmos de agora. A respeito da consciência ambiental principalmente. Sobre o uso de pele animal, mais ainda. Só que tem uma galera que ainda usa, se orgulha e quer mais. Dada a referência da coleção, um poema que escancara atitudes reprováveis do ser humano, será que aquelas roupas, no limiar entre realidade e fantasia, não poderiam ser uma crítica, uma sátira do absurdo que é, em pleno século 21, matar um bicho para satisfazer um luxo pessoal? É no mínimo ingênuo acreditar que o assunto foi superado e que qualquer menção é nostalgia alienada.

Daniel Roseberry poderia ter evitado a polêmica? Poderia. Se deveria já é mais complicado. Alguns posts associaram a polêmica atual às campanhas da Balenciaga com evidentes conotações à sexualização de crianças e abuso de menores. Não é uma coleção descabida. Ainda mais se direcionada para a necessidade de revisão e consideração de qualquer possível B.O. Na Schiaparelli, porém, não há uma construção imagética, uma narrativa composta de diferentes elementos que colaboram com a interpretação de apologia à caça.

Ah, mas e o desfile da neve e o da lama que você também criticou? De novo, havia ali uma construção e reprodução de contexto real bem próxima do que se via nos telejornais ou estampado nas primeiras páginas dos principais periódicos do mundo. Era uma construção estética mais focada, direcionada. Dependia menos da imaginação e mais da comparação com os fatos.

Interpretação, gosto e opinião são, hoje, frequentemente confundidos com verdades absolutas, defendidas com orgulho e soberba. E ai de quem questionar. Eu, pessoa física, me incomodo com aqueles looks. Sempre senti desconforto ao encontrar pessoalmente uma cabeça de animal empalhado, de verdade ou de mentira. Mas, na faculdade de jornalismo, uma das primeiras coisas que aprendemos é que gosto e opinião pessoais só interessam a nós mesmos. Em qualquer análise crítica, seja lá sobre o que for, o distanciamento do sujeito em relação ao objeto é primordial.

Nem todo mundo é jornalista e essa barreira é constantemente desconsiderada por quem é. De toda forma, acredito ser importante e necessária a pesquisa, apuração e entendimento antes da comunicação. Pela validade do argumento até. Na superficialidade e imediatismo do tweet, comentário, story ou vídeo no TikTok, a interpretação de que um vestido com uma cabeça de leão pode ocasionar ou atiçar a caça é facilmente derrubada ou diminuída quando colocada em perspectivas e contextos mais amplos.

Por que o casaco de pele sintética com uma cabeça falsa de um leopardo é reprovável, enquanto um outro de pelúcia, feita de algum derivado de petróleo e com a mesma padronagem, não é? O uso de pele fake só é incentivado quando ninguém é lembrado de que se trata de uma simulação dos pêlos de um ser vivo? O problema é a cabeça? A verossimilhança? Dá para entender. Quando você pede um peixe num restaurante e o prato chega com o bicho todo, com aqueles olhos sem vida, o impacto é diferente da carne separada do corpo. 

No entanto, os modelos da Gucci carregando réplicas de suas cabeças como acessório, na coleção de inverno 2018, não causaram tanto alvoroço. Nenhuma denúncia de apologia à decapitação. Seriam apenas as cabeças animais? Especialmente as que parecem reais? Porque ninguém reclamou do look da Beyoncé com um leão estampado e pedaços de tecidos fazendo as vezes de juba, em Black is king. Nem do vestido de cisne usado por Björk no tapete vermelho do Oscar em 2001. Até onde sei, ursinhos e outros bichos de pelúcia continuam populares nas lojas de brinquedos.

São desdobramentos um tanto absurdos, embora cabíveis dada a falta de consistência, contextualização e embasamento. E nem chegamos na questão do couro e do consumo de carne bovina.

Conversa chata, polêmica barata. O google está a um clique de distância, sabe? Vamos dar valor a esse like tão desejado, vamos reforçar o compartilhamento com informações relevantes, dados que atestem a causa em questão e possam gerar alguma mudança para além do mundinho virtual de cada um.

E a coleção é ótima. Basta liberar os destaques sequestrados pelos tribunais das redes sociais para perceber. Quando entrevistei Daniel Roseberry para o Volume 03 da ELLE impressa, ele voltou várias vezes na importância de não se prender e perder o viés surrealista da marca. “Pode dar muito errado”, disse o diretor criativo. E estava quase dando, quer dizer, estava cansando.

Daí o inferno segundo Dante. Sua tradução sob olhares do surrealismo tão associado a Schiaparelli permitiu toda uma nova abordagem sobre elementos, referências e arquivos da casa. Algumas coisas continuam lá, só mais discretas. Os sapatos com dedos na mesma cor do couro, o torso da modelo pintado de dourado no lugar de uma peça metálica e um número reduzido de máscaras e joias que imitam partes do corpo.

Numa evolução das coleções anteriores, a alfaiataria aparece como a grande protagonista. Afastada do corpo, estruturada com formas redondas, cintura marcada dramaticamente, sem qualquer peso nostálgico. Pelo contrário, o redesenho e foco na silhueta exagerada é uma das principais tendências do momento. É também um ponto de partida interessante para uma versão mais atual e desapegada (sem desrespeito ou negação) do passado do legado de Elsa Schiaparelli.

Pena que ao tentar trazer o inferno para a superfície, Daniel foi mais bem-sucedido do que esperava.

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