Crochê com viés e potencial de transformação social se destaca na SPFW

Fruto da parceria entre a Escola Ponto Firme, Ministério Público do Trabalho e Unicamp. Criações de pessoas em sistema prisional, mulheres trans e mulheres refugiadas mesclam sonhos e tecem justiça social nas passarelas da 53ª edição do evento.


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Lolla Francis tem um grande sonho: construir um grande lar para pessoas trans. Coletivamente. E isso já tem se tornado, de alguma maneira, realidade: ela faz parte do Faces e Sustentabilidade, que entre março e maio promoveu um curso profissionalizante de crochê para pessoas do sistema prisional, mulheres refugiadas e mulheres trans, na cidade de São Paulo. O projeto, encabeçado pelo Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MTP-SP), Unicamp e Ponto Firme, apresenta hoje, 01.06, o fruto das semanas de aulas da técnica. Trata-se de uma coleção de 25 looks, desfilada na SPFW N53.

Usar o trabalho decente como um resgate de pessoas em situações socialmente vulneráveis é a proposta do Faces e Sustentabilidade, segundo o procurador Gustavo Accioly. “O trabalho é a maior ferramenta de emancipação e de inclusão social. Com ele, você se inclui na sociedade”, afirma ele, que concebeu e organizou as oficinas. A iniciativa começou em 2020 na tentativa de remediar os impactos socioeconômicos causados pela pandemia. A primeira edição, sobre culinária, contou com a parceria de Paola Carosella.

A ideia é dar continuidade às aulas e sempre ouvir a demanda dos grupos sobre o que eles desejam aprender nas capacitações. “A gente tenta escutar muito a demanda da sociedade. Não podemos dar voz a eles, porque eles já têm voz, temos que soltá-la”, acredita Accioly. O procurador reforça a importância de pensar moda e sustentabilidade também a partir da perspectiva dos direitos humanos e acesso ao trabalho digno. “As pessoas acham que ‘moda sustentável’ é apenas aquela que recicla, mas não só. Claro que o meio ambiente faz parte, mas a gente não pode esquecer do ambiente social e do trabalho”, completa.

De sacos de arroz a resíduos têxteis

Fazer crochê era algo que Lolla já sabia, mas diz que aprendeu a transformá-lo em roupa com Gustavo Silvestre, estilista, idealizador do Ponto Firme e professor das aulas dessa edição do Faces e Sustentabilidade junto de Marina Morena.

Silvestre fundou o Ponto Firme em 2015, ministrando aulas de formação técnica em crochê para as pessoas sentenciadas do presídio masculino Adriano Marrey, em Guarulhos. Anos depois, em 2021, a vontade de expandir a ação e contemplar mais pessoas deu vida à Escola Ponto Firme. Localizada no centro de São Paulo, ela oferece cursos de crochê para pessoas em situação vulnerável – incluindo egressos do sistema prisional.

“Um em cada quatro sentenciados reincide no crime porque não existem políticas públicas que conseguem pensar numa maneira de reinseri-los na sociedade. Tem muito preconceito, ninguém dá emprego, é um ciclo vicioso terrível. A Escola atua nessa brecha”, explica o professor. Segundo ele, “no Ponto Firme a gente desenvolveu a pedagogia da urgência, que é como lidar com pessoas em situação de vulnerabilidade”.

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Foi a partir daí que surgiu a ideia de unir o Faces e Sustentabilidade com o trabalho da Escola Ponto Firme. Silvestre e procuradores do MPT-SP já se conheciam há algum tempo, então veio o match perfeito. Ao todo, as oficinas de crochê reuniram em média 40 participantes. Alguns alunos estão detidos e têm aulas com Silvestre no presídio de Guarulhos, e as mulheres trans e mulheres refugiadas, que chegaram à Escola por meio de ações do poder público, como a Casa Florescer, têm aulas no espaço do Ponto Firme, no centro. Nas aulas, “tem de tudo. Desde pessoas que nunca pegaram na agulha, mas se transformam em exímios artesãos, até outros que já tinham habilidade, mas nunca tinham experimentado”, compartilha o professor.

A ideia de transformar tudo isso em um desfile veio só mais tarde. Ao ver o talento dos participantes, Silvestre despertou para a possibilidade de potencializá-los. Ele acredita que projetos como esses “não vêm à tona e o desfile funciona pra isso. A gente quer dar visibilidade para essas causas”, continua. O resultado, em sua visão, é uma composição surpreendente, feita por muitas mãos – pessoas ainda em cárcere, pessoas que passaram pela Escola Ponto Firme – e que faz do “desfile uma grande celebração do crochê das artes manuais, da possibilidade de reconstruir a vida e usar a força do manual para existir”. Nos pés, os calçados são da Rider, que lançará em breve uma edição da sua NX Papete em parceria com o Ponto Firme.

A coleção apresentada nesta edição da SPFW tem 25 looks. Todos exploram o crochê a partir de diferentes matérias-primas e falam da diversidade e do uso da técnica manual como um elo de pessoas. “Usamos todo tipo de fio para produzir. Desde fio de metal, passando por fio jeans, corrente, resíduos da indústria da moda, miçangas”, explica Silvestre. “É essa mistura, todos os fios e essas possibilidades que essas pessoas e os fios podem oferecer”, continua ele.

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Quem já conhecia algumas das outras participantes era Lolla. “A gente tem convivido diariamente, não só no projeto mas na realidade do dia a dia”, diz ela, que hoje trabalha como maquiadora, bartender e faz outros ofícios como autônoma. “Os dados dizem que pessoas trans morrem aos 35 anos, e a gente tem mais de 40 anos. Viemos para romper com isso”, diz, ao relembrar que a atividade manual “não é só terapêutica, mas você aprende sobre o dia a dia, você se pergunta qual o valor do seu trabalho, do seu esforço”.

Para Lolla, a “grande vontade em volta do crochê não é só fazer roupas e desfilar na SPFW, mas também criar partindo [da técnica] e do artesanato, maquiagem, cabelos, unhas… algo que, em si, possa se iniciar um mercado de trabalho para pessoas trans”.

Ela conta que não sonha ou idealiza só para si mesma. “O acesso tinha que ser para todas as pessoas. E a Lorraine, a Dani, e outras trans?”, diz, ao citar algumas colegas. Também reconhece a importância de projetos como o Faces e Sustentabilidade, mas sente falta de ver mais pessoas trans ocupando esses espaços nas funções de liderança, articulação e gestão, e afirma que este é, ainda, o grupo mais excluído da comunidade LGBTQIA+. “Só pessoas trans vão entender outras pessoas trans”, finaliza Lolla.

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