Os destaques do quarto dia de SPFW

A roupa como protagonista é assunto importante nos desfiles da Neriage, Misci, Igor Dadona, Handred e Ponto Firme.


6dgeiR8k origin 575 scaled



Discurso, inspiração e referências são pontos interessantes quando se fala sobre uma coleção ou um desfile. Mas não dá para esquecer que, no fim, estamos falando principalmente de roupas. São elas a base de tudo, princípio e fim, meio e mensagem. Se isso ficou um pouco confuso durante os meses de apresentação digital, com a retomada do presencial, a percepção muda bastante. Para quem olha e para quem faz.

No quarto dia de SPFW, uma nova geração de estilistas colocou a roupa no centro das atenções. Apesar de algumas cenografias, performances e castings estrelados, foram elas as grandes protagonistas de algumas das melhores coleções desta sexta-feira, 19.11.

Há pouco menos de um mês, Rafaella Caniello abriu uma nova loja de sua Neriage. E é importante lembrar que a inauguração aconteceu quase um ano e meio depois de um período de enormes incertezas, incontáveis angústias e pressões imensuráveis.

Hoje, a coleção apresentada pela marca foi a melhor já feita pela estilista. Foi a primeira vez que a Rafaella conseguiu equilibrar com maestria suas vontades e paixões criativas com as demandas comerciais. Para explicar esse processo, ela recorre à literatura, cita o poeta Manoel de Barros e fala sobre os significados e não significados das palavras.

Ela também fala de repetição: “Repetir até se tornar outra coisa. Reaprender o que já sabemos. Reconstruir-se, remendar-se”. Não são só elucubrações conceituais, é o próprio funcionamento do sistema da moda. Rafaella passou anos experimentando com camadas e mais camadas de tecidos, plissados e detalhes manuais esmiuçados à exaustão. O processo era quase obsessivo e o resultado, algumas vezes, literalmente pesado.

Agora, sua abordagem chega comedida, as formas e texturas, lapidadas, e a construção, elevada a um outro patamar de excelência e sofisticação. O melhor exemplo fica por conta da alfaiataria, fluida, desconstruída e sensual. Expressa um lado pouco visto e explorado da Neriage. Outra novidade são os tricôs, que prometem fazer sucesso nas araras da nova loja – e já dão um gostinho da linha de básicos que a marca pretende lançar logo mais.

Quando a Misci estreou na SPFW no ano passado, a marca chegou cheia de vontades – e o formato digital permitia dar voz e corpo para muitas delas. Na passarela, as possibilidades são reduzidas. O que não significa que a coleção perdeu o brilho, pelo contrário. Se dependesse só do vídeo que precedeu o desfile, não daria para ver o quanto a alfaiataria do diretor criativo Airon Martin evoluiu – em execução, ideias e assinatura.

A nova possibilidade de cintura proposta pela Misci é prova disso. Nem baixa, nem alta e nem regular, o formato orgânico constrói uma onda na silhueta. A ideia vem de seu apurado estudo de design, mas não é difícil imaginar que se tornará mais um hit da marca.

Alfaiataria e sua formalidade são pontos importantes na moda de agora. Falam de uma vontade de arrumação mais sintonizada com a realidade do que aquela explosão hedonista desmedida. E Airon fala disso de uma maneira bem interessante, com boas tentativas de adaptação a um contexto mais nacional – a coleção propõe um olhar romântico e sensual para os bares e lanchonetes do Brasil.

Mas não é todo mundo que está pronto para a vida de botequim. Dias antes de sua apresentação, Igor Dadona relatou que está com algumas dificuldades em retomar a vida fora de casa. Também contou que passou boa parte do seu tempo de reclusão assistindo vídeos sobre os ateliês de alta-costura. Vem daí o nome e inspiração da coleção: Loveur – House Couture.

Apresentada em vídeo, as roupas são uma continuação aprimorada de tudo que o estilista vinha trabalhando nos últimos anos, com destaque para a alfaiataria e peças feitas em tecidos de festa. E desta vez, dado a referência da alta-costura, com um toque extra de glamour. “Por mais que tenha essa atmosfera sombria, é uma coleção feliz. É algo que sei que está passando. É uma travessia. E o único momento que me sinto mais livre, e as coisas ficam mais leves, é quando estou fazendo meu trabalho”, diz Igor.

É que a moda envolve um tanto de trabalho manual, o que pode ser algo terapêutico. Não à toa, o trabalho artesanal é uma ferramenta comum a toda uma sorte de projetos sociais. Desde 2015, o Ponto Firme oferece formação técnica em crochê para sentenciados da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, São Paulo.

Hoje, o projeto, que virou marca e é encabeçado por Gustavo Silvestre, aproveitou a apresentação da nova coleção para inaugurar a Escola Ponto Firme, no bairro da República, em São Paulo. Aberta ao público, ela é focada em egressos do sistema penitenciário e a ideia é passar a atender também mulheres, uma vez que os artesãos até agora são homens.

Se a pandemia foi difícil para todos nós, ela se revelou ainda mais severa para os sentenciados. As aulas presenciais desse e outros projetos foram suspensas, bem como as visitas de familiares.

O reencontro de Gustavo Silvestre com seus alunos detentos aconteceu muito recentemente, e esse foi o mote da nova coleção. “Toda essa história nos remeteu a ideia de bando. Somos um bando das artes manuais, de pessoas que ganharam autonomia por meio do crochê”, fala Gustavo. Nesta coleção, o boné de crochê é quase um símbolo desse bando, mas para além de tendências o dia de hoje é uma grande celebração.

André Namitala, diretor criativo e fundador da Handred, sempre foi mais chegado ao produto do que à moda de passarela. Tanto que quando a marca carioca estreou na SPFW, muita gente torceu o nariz e não viu sentido naquilo. Hoje, a história é um pouco diferente – e para a marca também.

O ponto de partida da nova coleção é Francisco Brennand. Quem conhece a obra do artista recifense deve ter estranhado a coleção toda branca, já que seu trabalho é sempre lembrado pela profusão de cores. André, no entanto, preferiu se focar na cor da cerâmica antes de sua queima.

Essa é a primeira vez que a Handred se aprofunda tanto no trabalho de um artista – e o minidocumentário exibido antes do desfile dá conta de mostrar essa imersão no universo e no espaço em que Brennand morava, criava e produzia. “Fiz esse paralelo entre o artista e a marca, já que nós também criamos tudo em nosso ateliê”, explica o estilista.

Nas roupas, vemos a influência do recifense nos desenhos de caju em rendas richelieu, nos labirintos tramados em linho e nos traços de nanquim em organza de seda pelos quais o artista era conhecido. A cerâmica feita pelos próprios artesãos do Instituto Brennand, que trabalharam com o próprio, aparece em escala micro, aplicadas nas laterais das calças de alfaiataria e em regatas fresquinhas.

O show ficou completo com a apresentação de Lia de Itamaracá, cantora pernambucana que embalou os passos ritmados das modelos. Da imersão do estilista neste universo, saiu uma coleção de alfaiataria fluida e descomplicada que é a mistura perfeita entre Recife e Rio de Janeiro, onde a marca e o estilista nasceram.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes