130 anos de Elsa Schiaparelli

Visionária, inovadora, ousada e surrealista, a estilista italiana radicada em Paris é muito mais do que apenas a rival de Coco Chanel. Conheça mais sobre a vida e obra dessa mulher genial.


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Foto: John Phillips / Getty Images



No dia 10 de setembro de 2020 celebra-se os 130 anos de Elsa Schiaparelli. Lamentavelmente, ela é muitas vezes lembrada apenas como “a rival de Coco Chanel”, que, no fim das contas, conquistou uma projeção maior e mais duradoura do que ela. Mas Schiap, como era apelidada, é uma estilista tão importante quanto Chanel para a história da moda. Ela popularizou e batizou a cor rosa-choque, levou o surrealismo para as roupas e acessórios de uma forma única, transformando cada peça em obra de arte, e influencia criadores até hoje.

Elsa nasceu em Roma, no Palazzo Corsini, filha de uma família abastada e muito erudita. O pai era diretor da Accademia Nazionale dei Lincei, uma instituição dedicada ao desenvolvimento científico. A mãe, aristocrata, era descendente dos Médici, uma importante dinastia política italiana. O avô era reitor da universidade de Roma, e o tio-avô, astrônomo, foi a primeira pessoa a criar mapas de Marte, entre 1877 e 1890.

Com tantas referências em casa, desde criança Elsa era fascinada por história antiga, mitologia e religião. Criava mundos de fantasia em sua cabeça, e sonhava em ser atriz, mas por influência da família de intelectuais, estudou filosofia na universidade de Roma.

Em 1911, aos 21 anos, escreveu uma série de poemas inspirados em Arethusa, ninfa da mitologia grega. Os poemas tinham conteúdo explicitamente sexual, o que assustou os pais de Elsa. Ela foi mandada, então, para um convento na Suíça, de onde escapou depois de fazer uma greve de fome. Daí já se vê que a jovem Schiaparelli tinha, no mínimo, personalidade forte.

Entediada da vida em família, que era muito confortável mas um tanto limitante para sua mente fantasiosa, ela se despediu de Roma e mudou-se para Londres em 1913. Lá, em uma conferência sobre teologia, conheceu um jovem teosofista e se apaixonou profundamente. Eles se casaram em 1914 e, em 1916, se mudaram para Nova York. No navio que os levou para os Estados Unidos, Elsa ficou amiga de Gabrièle Picabia, esposa do pintor dadaísta Francis Picabia.

ELSA E A ARTE

A vida em Nova York, a princípio, era animada. A amiga Gabrièle apresentou Elsa a artistas importantes do período, como Man Ray e Marcel Duchamp, e ela e o marido viviam com o dinheiro do dote que os pais de Elsa pagaram no casamento. Em 1920 o casal teve a primeira e única filha, Maria Luisa Yvonne. Com poucos meses de idade, a criança teve poliomielite. O dinheiro andava curto, e a vida começou a ficar difícil. O casal se divorciou, e em 1922 ela decidiu voltar para a Europa, que, na época, tinha tratamentos mais avançados para a doença da filha.

Em vez de voltar para Roma, porém, Elsa foi para Paris. Durante o dia ela trabalhava em um antiquário, e à noite frequentava os mesmos bares e restaurantes que reuniam artistas e boêmios. Ela tinha 32 anos, e foi só aí, então, que ela e a moda se encontraram. Ela foi ao ateliê de Paul Poiret, grande estilista da época, acompanhar uma amiga. Já que estava lá, experimentou alguns vestidos. Poiret ficou encantado com o estilo peculiar de Elsa, e sugeriu que ela pegasse emprestadas algumas peças, quando quisesse. Foi aí que ela conheceu de perto a alta-costura, o que a levou a começar a desenhar roupas.

Ela trabalhou por alguns anos como estilista freelancer, até que uma de suas criações a transformou em sensação. Tratava-se de um pulôver tricotado à mão, com um laço em trompe-l’oeil no pescoço. “Trompe-l’oeil” é, literalmente, “engana o olho” em francês, nome de uma técnica artística que usa truques de perspectiva para criar ilusões de ótica. Essa técnica é muito usada em pintura e arquitetura, e tirou o fôlego dos críticos de moda da época. Fazer um trompe-l’oeil tão bem executado em tricô foi realmente o ponto de virada para Elsa Schiaparelli.

Em 1927 ela fundou sua marca, e no ano seguinte inaugurou um espaço com ateliês e escritórios no número 4 da rue de la Paix, em Paris, pertinho da place Vendôme, epicentro da moda à época. Na porta, a placa dizia “Schiaparelli – pour le Sport”. Sim, no início Schiap desenhava roupas esportivas em tricô, como maiôs e os então chamados “pijamas de praia”, espécie de macacão para ser usado por cima dos trajes de banho, além de roupas para a prática de esqui.

Traje para esqui assinado por Elsa Schiaparelli
Traje para esqui assinado por Elsa Schiaparelli.

ullstein bild via Getty Images

A Schiaparelli era um grande sucesso com suas peças de cores contrastantes e com desenhos de peixes, esqueletos, tartarugas e tatuagens de marinheiro. Em 1928 Schiap lança o primeiro perfume da grife, chamado “S”. A fama chega até os Estados Unidos, que também querem comercializar suas criações, e ela cria um acordo de licenciamento de marca que, hoje, é comum, mas na época foi uma novidade.

VISIONÁRIA E PIONEIRA

Inovação, ousadia e pioneirismo marcaram a década de 1930 para a Schiaparelli. Nos ateliês de alta-costura, ela ousa colocar zíperes aparentes nos vestidos, que eram decorativos e também funcionais. Ela usava inclusive zíperes coloridos de plástico, um material que era novidade na época. Criou vestidos-envelope muito antes de Diane von Fürstenberg nascer, e propôs o uso de vestidos de festa com elaboradas jaquetas por cima, uma inovação de styling. Pioneira, cria e patenteia um maiô com sutiã embutido na peça, para dar sustentação aos seios – esse sutiã escondido foi usado também em vestidos, mais tarde.

A Schiaparelli só crescia. Em 1932, a marca chegou a ter 400 funcionários em oito diferentes ateliês. A placa da rue de la Paix passou a dizer “Pour le sport, pour la ville, pour le soir”, ou seja: “Para o esporte, para a cidade, para a noite”. Para atender suas próprias necessidades ao desenhar roupas, Schiap começou a desenvolver novos tecidos e materiais com as tecnologias disponíveis na época, como o crepe de rayon texturizado e o rhodophane, transparente e delicado como vidro. Em 1934, ela estampou a capa da Time Magazine – foi a primeira estilista mulher a ganhar esse destaque na revista.

A personalidade forte e ousada de Schiaparelli ficava evidente em suas criações inovadoras, e, consequentemente, atraia mulheres que também se identificavam com esse estilo. Entre as clientes famosas, ela contava com as atrizes Marlene Dietrich, Katharine Hepburn, Mae West, Vivien Leigh, Lauren Bacall, Greta Garbo e Ginger Rogers, entre muitas outras. Wallis Simpson, duquesa de Windsor, motivo da renúncia de Eduardo VIII ao trono do Reino Unido (para casar-se com ela, que era divorciada, ele teve de abrir mão de ser rei), era tão fã de Schiaparelli que todo seu enxoval foi assinado pela grife.

Modelo com vestido Schiaparelli
A modelo Shari Herbert com um vestido de festa Schiaparelli que simulava deixar a lingerie à mostra.

The LIFE Picture Collection via Getty Images

Foi nessa época, também, que ela começou a criar itens com artistas da época, como o colar com contas de porcelana que pareciam Aspirinas, parceria com a escritora russa Elsa Triolet, um vestido longo com pregas em trompe-l’oeil, parceria com o pintor Jean Dunand, e joias em parceria com o escultor Alberto Giacometti, entre outros. Mas as colaborações mais famosas de Elsa Schiaparelli são, sem dúvida, com os artistas Salvador Dalí e Jean Cocteau.

Jean Cocteau colaborou com desenhos que foram estampados em casacos, vestidos, acessórios, como o cinto com fivela de mãos e joias. Com Dalí, Schiaparelli criou algumas de suas peças mais icônicas, como o vestido com estampa de lagosta, o vestido-esqueleto, com enchimentos que simulam os ossos das costelas e da bacia, um vestido com estampas e efeitos que simulam cortes na pele, o chapéu em forma de sapato e muito mais.

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O chapéu em forma de sapato de Schiaparelli e Salvador Dalí

ullstein bild via Getty Images

Foi o auge do surrealismo nas criações de Elsa, e a criatividade parecia não ter fim: luvas com aplicações, insetos em chapéus, um perfume em forma de cachimbo, em referência ao quadro “La trahison des images” de René Magritte, bolsos em forma de gavetas, embalagens de pó compacto em forma de telefone a disco.

COR-DE-ROSA CHOQUE

São tantas criações icônicas e pioneiras, que fica até difícil cravar qual a mais importante. Mas é fácil dizer qual a mais conhecida. Em 1937 Schiaparelli colocou no mercado o perfume Shocking. O frasco tinha o formato do torso de um manequim, inspirado no corpo da atriz Mae West. E a publicidade da nova fragrância tinha como fundo uma cor inusitada: o shocking-pink, ou, em bom português, o rosa-choque.

Até então, o cor-de-rosa era usado moderadamente na moda, e em geral em tons mais claros, ou puxados para o pêssego. Schiaparelli radicalizou, misturando doses de azul e vermelho até chegar no magenta vibrante que se transformou numa espécie de assinatura para a marca. O rosa-choque passou a marcar presença em vestidos, acessórios e até no figurino de “Moulin Rouge”, filme de 1952 estrelado por Zsa Zsa Gabor. Se hoje você tem e ama itens rosa-choque no seu guarda-roupa, pode agradecer à Elsa Schiaparelli.

Zsa Zsa Gabor veste Schiaparelli no filme Moulin Rouge
Zsa Zsa Gabor veste Schiaparelli no filme Moulin Rouge

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O início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, pôs um freio na trajetória de sucesso de Elsa Schiaparelli. Em junho de 1940 Paris foi atacada pela Itália, que fazia parte do Eixo junto com Alemanha, Japão e outros países, e, dominada, virou um território estratégico. Elsa tentou manter os ateliês funcionando e preservar empregos o máximo possível, mas por ser uma italiana em Paris, sua situação não era exatamente confortável. Ela se muda para Nova York, deixa a Schiaparelli com seu então braço-direito, e só retorna em 1945, após o fim da guerra.

O pós-guerra foi fervilhante na Europa, e não foi diferente para a Schiaparelli. Os perfumes da grife faziam tanto sucesso que uma fábrica foi construída nos subúrbios de Paris para dar conta da demanda. Roy Soleil, uma fragrância com frasco exuberante desenhado por Salvador Dalí foi o lançamento mais marcante. Em 1946 Elsa criou uma coleção chamada “A Constelação”: eram seis vestidos, um casaco dupla-face e três chapéus dobráveis que, juntos, pesavam apenas 5,4 quilos, perfeitos para as mulheres que ousavam viajar mais. Uma grande modernidade!

Nos anos 1940, alguns nomes que viriam a se tornar gigantes na moda passaram pela Schiaparelli: Pierre Cardin, italiano radicado na França como ela, trabalhou nos ateliês por alguns meses em 1945. Depois dele, Hubert de Givenchy foi contratado como diretor criativo em 1947, e trabalhou lado a lado com Elsa por quatro anos.

O FIM E O RECOMEÇO

Depois de décadas dedicadas a grandes criações, inovações e ousadias, Elsa Schiaparelli surpreendeu ao decidir encerrar as atividades de sua grife em 1954. Notícias da época no New York Times mostram que o porta-voz da marca negava o fechamento da grife, mas admitia que os novos tempos, com menos procura por alta-costura e roupas sob medida, causaria transformações na forma de trabalhar.

A verdade é que, naquele ano, Elsa se dedicou a escrever sua autobiografia, “Shocking Life”, parou de fazer roupas e manteve apenas a linha de perfumes. Em 1973 ela morreu, de causas naturais, durante o sono.

Enquanto estilistas como John Galliano, Sonia Rykiel, Yves Saint Laurent e Gianni Versace se inspiravam nas criações marcantes e icônicas da Schiaparelli, a grife ia pouco a pouco perdendo espaço no imaginário popular.

Assim foi até 2012, quando Diego Della Valle, proprietário da marca de artigos de couro Tod’s, relançou a Schiaparelli. Ele já havia comprado a grife em 2006, mas o retorno em 2012 foi em alto estilo, com direito a ser tema do Met Gala daquele ano: “Schiaparelli & Prada: Impossible Conversations”. A exposição no Metropolitan Museum of Art, com o mesmo nome, explorava as afinidades entre Elsa e Miuccia Prada, duas estilistas italianas de eras bem diferentes.

Emilia Clarke veste o vestido esqueleto de Schiaparelli em um tapete vermelho
Nos prêmios BAFTA de 2020, a atriz Emilia Clarke vestiu uma releitura do clássico vestido esqueleto de Schiaparelli.

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Em 2014, a Schiaparelli voltou a desfilar a alta-costura em Paris, 60 anos após o encerramento das atividades da grife. Atualmente as coleções são assinadas pelo diretor artístico Daniel Roseberry, um norte-americano do Texas que, antes disso, trabalhou por 10 anos na Thom Browne. Roseberry diz que o trabalho de Elsa Schiaparelli refletia “o caos e a esperança da era turbulenta em que ela viveu”, e vê semelhanças com os tempos complicados em que vivemos hoje. “Quero oferecer uma fantasia – um sonho – que parece relevante e necessário para os dias de hoje”, afirma.

Desfile Schiaparelli Alta-Costura 2020
Look Schiaparelli da coleção primavera-verão de alta-costura 2020/2021, assinado por Daniel Roseberry.

AFP via Getty Images

RIVAL DE COCO CHANEL

O tempo fez com que, para algumas pessoas, Elsa Schiaparelli fosse reduzida apenas a rival de Coco Chanel, em narrativas cômicas que incluem uma passagem em que Chanel teria ateado fogo em Elsa durante uma festa – fato descrito inclusive na biografia “Mademoiselle: Coco Chanel and the Pulse of History”, assinada por Rhonda K. Garelick. Chanel chamava Elsa de “aquela italiana”, e Schiap dizia que Coco era “uma chapeleira”.

É fato que as duas dividiram os holofotes da moda em Paris durante a primeira metade do século 20, e eram, cada uma ao seu estilo, visionárias, inovadoras e ousadas. Elas tinham diferenças, tanto na história de vida quanto no estilo de suas criações. Schiaparelli criou o rosa-choque, cor que causava horror a Coco, mais afeita a tons sóbrios e peças discretas. Mas tinham semelhanças, como a proximidade com grandes artistas da época, o uso de perfumes como estratégia de marketing, e a personalidade forte, que fez com que elas se tornassem verdadeiros ícones.

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