Os bastidores de Histoire d’Eau, o primeiro fashion film da história
Lançado em 1977, o curta apresentou a primeira coleção de Karl Lagerfeld para a Fendi.
Distantes são os tempos em que só as passarelas dominavam a construção da narrativa de uma coleção. Hoje, são os filmes de moda os responsáveis por dar vislumbres mais íntimos às histórias que nem sempre o espetáculo dos desfiles permite perceber. E é verdade que a pandemia acelerou (ou intensificou) essa transformação, porém, não se trata de algo exatamente inédito.
Em 1977, a primeira versão do que hoje se entende por fashion film ganhou forma com o curta-metragem Histoire d’Eau (História da Água). O vídeo marcou a estreia de Karl Lagerfeld na direção criativa da Fendi, mas sua concepção, contudo, é assinada por outro nome: Jacques de Bascher, figura aristocrática e sedutora, que conquistara o coração do kaiser alguns anos antes.
O nome da produção faz referência ao título erótico Histoire d’O, de Just Jaeckin (1975) e ao filme Histoire d’Eau, de Godard e Truffaut (1958). Sem diálogos e com pouco mais de 20 minutos, o curta acompanha a jovem Suzy em sua viagem a Roma, enquanto mente para a mãe sobre estar se tratando na Alemanha.
Enérgica e absorta pelas belezas da vida, a personagem não é muito diferente de Suzy Dyson, modelo que a interpretou e que relembrou à ELLE Brasil os bastidores do curta e as diversões que marcaram os anos 1970.
“Na época, ele estava trabalhando para a Chloé, não para a Chanel. Gostou de mim e imediatamente me escolheu para ser a mudança de imagem da qual precisava”, diz, sobre como conheceu Karl Lagerfeld. Em pouco tempo, ela se tornou a nova modelo nos anúncios de perfume da marca, “com um vestido preto, muito elegante”, relembra.
Antes de Roma, Paris
As férias de Suzy – a personagem – começam na entrada do elegante Hotel de la Ville, na Piazza di Spagna, no coração de Roma. Viajando sozinha, ela desce do carro com os sapatos cuidadosamente desamarrados e dá duas voltas supersticiosas na porta giratória do prédio. Toda em tons de branco, incluindo a bagagem e o imenso casaco de pele.
Apesar de tão grandioso quanto, como ela própria recorda, o início da jornada de Suzy – a modelo – não foi desacompanhado. Nascida no Peru, ela passou o fim da infância em um colégio interno em Londres e se mudou com a família para Málaga, no sul da Espanha, onde conheceu a célebre condessa de Romanones, quem a introduziu à carreira de modelo.
Encaminhada com sucesso, Suzy se tornou presença desejada nas maiores publicações de moda internacionais. “Eu era modelo, mas não com tanta dedicação”, brinca. Ainda assim, em dezembro de 1976, foi capa da edição francesa da ELLE e já contava com um grupo de amigas que também fariam história na indústria: Inès de la Fressange, Jerry Hall e Marie Helvin.
Manuela Papatakis e Jacques de Bascher. Foto: Acervo pessoal de Manuela Papatakis
Outra personagem importante para a história – desta matéria e do curta-metregam – é Manuela Papatakis, figura central no cenário de moda parisiense da época e grande amiga de Karl Lagerfeld e Jacques de Bascher (além de filha única do power couple do cinema europeu Anouk Aimée e Nico Papatakis). Seu nome aparece nos agradecimentos especiais ao fim do filme.
“Estávamos todos em Saint-Germain-de-Prés. Lá era como um farol. Pouco depois dos eventos de 1968, havia ali um grupo prolífico de jovens criativos. Eram todos muito livres no jeito de andar e se vestir, e tudo se concentrava no Café de Flore“, fala sobre sua juventude em Paris.
Entre as amizades que fez, estavam o ilustrador António Lopez e Karl Lagerfeld, atraído pelo frescor e beleza da juventude. Beleza essa concentrada na figura de Jacques de Bascher, com quem iniciou um relacionamento que duraria até 1989. “Acho que conheci o Jacques através do António. Sei que ele queria muito me conhecer. O Karl andava sempre por lá, com capas pretas longas. Muito engraçado”, conta Manuela.
Roman Holiday
“Acho que, originalmente, Karl teve a ideia e sugeriu para Jacques, que acabou escrevendo”, recorda Suzy sobre os primeiros movimentos em direção à Histoire d’Eau. Na história original, a protagonista seria acompanhada num passeio pelas fontes de Roma, das quais coletava um pouco das águas com um pequeno frasco. “Ela seria sobre uma garota normal, mas fabulosa, que estaria sonhando com tudo aquilo. E essa garota seria uma amiga próxima deles, Manuela Papatakis, que não tem nada de normal. Ela é divina!”, fala a modelo.
Cena do filme Historie d'Eau. Foto Cortesia | Fendi
Acontece que as irmãs Fendi (Paola, Anna, Franca, Carla e Alda, as cinco filhas de Adele Casagrande, fundadora do ateliê) rejeitaram o conceito de forma unânime e decisiva. “Jacques precisou reescrever o roteiro ali mesmo. Não era como se pudéssemos voltar para Paris e repensar a história”, conta Suzy, que acabou protagonizando sozinha o curta.
Manuela reconta os momentos de diversão do grupo e recorda Suzy com carinho (“de quem gosto muito, à propósito”), mas confessa não se lembrar do filme. “Viajávamos muito. Era uma período muito dinâmico. Ficávamos um ou dois dias em um lugar antes de voltar para Paris. Íamos à Inglaterra, à Itália, ao sul da França… Havia uma certa velocidade e acho que, por isso, esqueci do filme. Devo ter ficado apenas uma semana em Roma.”
As gravações com Suzy, segundo a própria, levaram por volta de 16 dias. “Foi muito trabalhoso. Tínhamos que acordar muito cedo para filmar. Você precisava estar lá pela luz, não podia perdê-la”, conta. Para a produção, a equipe contou com a colaboração de cinegrafistas que haviam trabalhado com Federico Fellini. “Eram os melhores dos melhores. Foi uma experiência extraordinária.”
Cena do filme Historie d'Eau. Foto Cortesia | Fendi
Ao falar sobre o fim das filmagens, Suzy conta que não se recorda de ter sido paga ou de sequer falar sobre dinheiro. Uma explicação, segundo ela, é de que o momento pedia diversão. “A vida era mais sobre festas do que sobre qualquer outra coisa. Me lembro que as irmãs Fendi queriam me dar um presente. A boutique da marca em Roma era pequena, mas muito linda e elegante. Olhei e vi uma bolsa com detalhes em madeira e uma borla, e uma mala muito bonita”. Ambas as peças ainda estão na coleção da modelo, que declinou o primeiro presente oferecido pelas irmãs (“uma mala branca. Não sou muito fã de malas brancas”).
Já Manuela revelou que, antes da entrevista, nunca havia assistido ao filme. “Quando li nos créditos ‘agradecimentos especiais à Manuela Papatakis’, achei hilário. Nós [ela e Jacques] não nos levávamos tão a sério. Sinto que ele fazia as coisas de maneira muito espontânea. Antes de tudo, a ideia era se divertir.”
Ainda assim, o resultado foi simbólico e poético. “Foi o primeiro filme do gênero. Um verdadeiro golpe de publicidade que ainda ressoa, porque foi algo completamente novo“, diz Suzy. Para Manuela, a moda na época “era uma questão de sensibilidade, mais sobre arte do que poder. Era poesia, como escrever um livro ou fazer um filme, como Jacques fez.”
Cena do filme Historie d'Eau. Foto Cortesia | Fendi
Restaurado e revisitado em 2013, Histoire d’Eau foi destaque na exposição fotográfica The Glory of Water, de Karl Lagerfeld, às margens do Sena. Seja pelo formato inovador ou pelo nascimento nas mãos de uma juventude inspirada, sua relevância hoje diz tudo que sua falta de diálogos não permite.
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