A era genial e controversa da Dior por John Galliano ganha novo livro
Nova publicação com imagens do estilista britânico à frente da etiqueta chega ao mercado em 15 de fevereiro. Enquanto isso, relembra sua trajetória na maison.
“Christian Dior e John Galliano compartilham muitas semelhanças 一 ambos são românticos obstinados, possuem um respeito profundo pela história e apreciam as possibilidades criativas da alta-costura.” Quem diz é Andrew Bolton, curador do Costume Institute, do Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e autor do livro Dior By John Galliano, já em pré-venda e com lançamento previsto para 15 de fevereiro.
Com 448 páginas, o volume, publicado pela Assouline, faz parte de uma coletânea lançada pela etiqueta francesa para narrar o trabalho de cada um de seus diretores criativos. Este mais recente concentra as criações do britânico, um dos estilistas mais geniais e controversos de atualidade.
Filho prodígio de um pai gibraltino e de uma mãe espanhola, John Galliano foi criado humildemente no sul de Londres. Depois de anos ridicularizado na escola e mais algumas pedras no caminho, desafiou as expectativas se tornando um dos designers mais brilhantes de seu tempo. Embora a narrativa pareça um conto de fadas familiar, nela há partes não tão encantadoras assim.
Em 2011, Galliano foi demitido da Dior após a publicação de um vídeo em que aparece, aparentemente alcoolizado, proferindo dizeres racistas e antissemitas. A sua saída marcou o fim de uma era não só para a marca, onde ele atuou desde 1996, mas também para a indústria como um todo. É que ele foi o responsável por algumas das maiores campanhas, momentos e espetáculos que a moda já viu – e que, desde então, pouco se repetiram.
“Dior by John Galliano”.Divulgação
Cada um de seus grandes feitos à frente da grife está devidamente ilustrado na nova publicação. Seja o vestido de cetim azul, usado pela princesa Diana no MET Gala de 1996, ou a icônica Saddle Bag, lançada em 1999. Tudo documentado em ilustrações e fotografias de nomes como Laziz Hamani, Paolo Roversi, Richard Avedon e Peter Lindbergh. O livro estará disponível em inglês e em francês.
Foto: Laziz Hamani
Laziz Hamani
Lançamentos como este comprovam que não se mensura uma era memorável até que ela se vá. Não que John Galliano não tenha sido reconhecido lá atrás. Mas o olhar de fora, alguns anos (e discussões) depois, confere aos fatos toda uma outra camada de relevância. É como constatar que aquele é um momento que não tem mais volta e que, embora ilustre, dificilmente faria sentido no mercado de agora. O que resta são os looks inusitados 一 provavelmente usados por Kate Moss ou Naomi Campbell 一 em constantes lembranças. Inusitados, aliás, assim como a própria entrada do estilista na Dior.
Uma breve recapitulação
Galliano estava na Givenchy há apenas alguns meses quando recebeu uma ligação com a mensagem de que Bernard Arnault, presidente do grupo LVMH, gostaria de vê-lo. Era a primeira vez que um designer britânico possuía as rédeas de uma casa de alta-costura francesa. O estilista entrou para a Givenchy em julho de 1995 e saiu em outubro de 1996, logo após a tal reunião. “Arnault começou a falar sobre a Dior e depois fez a pergunta: ‘você faria?’. Quase caí da cadeira”, disse, em entrevista à Vanity Fair, em 2013.
À primeira vista, a escolha de Galliano pareceu um tanto descabida. Desde a primeira coleção de Christian Dior, lá em 1946, a etiqueta passou a ser conhecida por sua feminilidade e luxo simplificado. Os ombros arredondados, a cintura marcada e a saia rodada formavam a silhueta símbolo da Dior. No entanto, esses elementos pouco conversavam com um estilista formado pelas loucurinhas criativas da moda britânica, apesar de algumas similaridades, então, não muito visíveis. Quem supôs que ele se arriscaria bem além do tal New Look, acertou. Errou, porém, quem imaginou que daria errado.
Ao iniciar uma das reformulações de marca mais radicais da história da moda, John Galliano levou ao limite o respeito aos códigos exigido pelas grandes etiquetas de luxo. A cada desfile, era como se ele quase os colocasse à beira de um precipício. Mas só quase mesmo. Os elementos ainda estavam ali, só que reformulados, posicionados de cabeça para baixo. A icônica Bar Jacket, por exemplo, parte importante do arquivo de Christian Dior, foi mantida engenhosamente temporada após temporada, em novas interpretações honrosas e, claro, dignas de sucesso de vendas.
John Galliano em seu escritório.Getty Images
Enquanto desenvolvia alguns dos maiores sucessos comerciais da década, Galliano, empurrava proporções infladas, saltos hiperestendidos e maquiagens surreais ao limite. Com o seu prazer inerente em subverter o romantismo com perversidade, o estilista quebrou os padrões da Dior com grandes ideias e orçamentos ainda maiores. As suas apresentações que o digam.
Longe de ser uma simples exibição de roupas, os desfiles do britânico eram espetáculos, ou melhor, experiências teatrais imersivas. Para isso, possuía um time e tanto: Steven Robinson e Bill Gaytten lideravam o ateliê, Jeremy Healy preparava a trilha sonora, Pat McGrath assinava a beleza, Michael Howells se responsabilizava pela cenografia e Stephen Jones pelos chapéus. Os esforços coletivos permitiam que, nas passarelas, até as ideias mais improváveis de Galliano fizessem sentido.
Foi assim que vimos coleções sobre a era eduardiana, os Guardas Vermelhos, os anos 1950 nos Estados Unidos, o movimento surrealista, a ficção científica de Matrix, o antigo Egito, a Revolução Francesa e por aí vai. Em sua primeira temporada de alta-costura, no verão 1997, o estilista apresentou uma coleção unissex, algo que hoje é chover no molhada, mas para época foi uma inovação e tanto. Havia alfaiataria em abundância, espartilhos para homens e mulheres e tudo o que era visto apenas no prêt-à-porter, como jeans e etiquetas visíveis.
Embora imaginativas, as roupas nunca perdiam o primor. Era a sua criatividade desenfreada combinada às habilidades dos ateliês da Dior. Os vestidos em viés de Galliano comprovam. A técnica por trás da peça, que incluía um corte em 45º em relação aos fios da trama, acentuava as curvas da silhueta feminina, mudando para sempre o que as mulheres vestiam à noite. O estilista, no entanto, não passava impune aos olhos dos críticos de moda, e ele sempre fez questão de ler todas as resenhas, ainda que discordasse de algumas.
Dior, inverno 2000. Foto: Getty Images
Dior, inverno 1997 alta-costura. Foto: Getty Images
Dior, inverno 2001. Foto: Getty Images
Na temporada de verão 2007, por exemplo, o britânico recebeu algumas críticas negativas. Os ternos eram perfeitamente bem cortados, mas, para alguns, a coleção beirou o tédio. “Se as pessoas dizem que aquelas roupas são para contadores… Bem, os designers precisam de contadores. E os contadores precisam de designers”, retrucou, em entrevista à imprensa. John Galliano não deixava barato. Isso porque sabia bem como os seus números de vendas eram altos. Entre 1998 e 2005, as receitas de moda da Dior mais que triplicaram.
A verdade é que as suas coleções poderiam ser boas ou ruins, mas os shows eram sempre surpreendentes 一 e um tanto megalomaníacos. O processo criativo incluía viagens que, a cada temporada, se tornavam mais distantes. Visitar monges budistas na China? Ele fez. Alugar um balão para observar o rio Nilo? Fez também. Referenciar diferentes culturas e se aprofundar na história modificou as lentes pelas quais Galliano enxergava a moda, resultando em apresentações às vezes geniais, às vezes problemáticas 20 anos depois.
John Galliano desempenhava o papel do designer extravagante com entusiasmo. As suas aparições (com cabelos esvoaçantes) no fim dos desfiles eram quase tão aguardadas quanto as coleções. A sua demissão, em 2011, deixou um dos cargos mais prestigiados da indústria subitamente vago. O designer vinha numa longa batalha contra o abuso de álcool e drogas.
Buscando um par de mãos seguras para colocar a Dior de volta aos trilhos, depois do escândalo antissemita, o grupo LVMH elegeu Raf Simons como sucessor oficial, estilista que não poderia ser mais diferente de Galliano. Depois, foi a vez de Maria Grazia Chiuri, a primeira diretora criativa mulher na história da casa.
Embora o senso fantasioso tenha despencado na marca, a Dior reconhece a contribuição grandiosa de Galliano e, constantemente, faz referência aos seus designs mais marcantes (como as estampas de jornais que apareceram no verão 2020 de Kim Jones e os novos modelos da bolsa Saddle).
Após sua demissão, o britânico se concentrou em sua recuperação e, só depois de alcançar a sobriedade, retornou à moda. Dessa vez, à frente da Maison Margiela, um ateliê muito menor comparado aos da Dior. Em entrevista ao Business of Fashion, em 2016, Galliano comentou o quanto gosta de trabalhar com uma equipe mais íntima e jovem. “Me sinto muito mais livre nessa equação, meus pontos de inspiração são mais livres. Estou mais aberto agora”, diz ele.
O seu trabalho na Dior, porém, continua como uma era implacável na história da moda. Basta rolar o feed das redes sociais e você irá encontrar inúmeras homenagens, tanto da geração que esteve lá quanto de uma que perdeu completamente. Para John Galliano, só a graça e o choque, em igual medida, permitiram que uma casa francesa, outrora conservadora, desse um salto tão grande. Esse impulso jamais será perdido.
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