Miranda Priestly teria um emprego hoje?

Passados 15 anos da estreia de O diabo veste Prada, a chefona da Runway parece tão datada quanto o celular que Andy joga na fonte da Place de La Concorde. Mas até que ponto aquela redação tinha o pé na realidade?


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Longe de mim ser a pessoa que vai defender a Miranda Priestly (Meryl Streep) ou que vai glamourizar aquela redação de moda completamente problemática de O diabo veste Prada, filme cujo lançamento completa 15 anos em 2021. Ainda assim, há algumas semanas, decidi assistir novamente ao longa e, de repente, me peguei sonhando em trabalhar naquele lugar, para aquelas pessoas, usando aquelas roupas… Estranho. Será que é um impulso masoquista? Não sei. O que acontece é que fiquei tão surpreso em reconhecer esse desejo que passei dias com a Andy (Anne Hathaway) na cabeça.

Antes de tudo, acho que vale ressaltar que eu e ela somos muito diferentes. Eu nunca sonhei em ser um grande jornalista de política, economia ou de qualquer um desses assuntos que, nas faculdades de jornalismo, são mais levados a sério. Sempre quis ser jornalista de moda e sempre gostei da moda sem muito perceber que, desde o começo, a gente já estava em um relacionamento no mínimo – e de novo – estranho… Por um lado, era a válvula de escape da minha vida interiorana cercada de homofobia. Ficava imaginando como pode ser feliz, ter amigos e viver bem um homem que, como o Marc Jacobs, tem a audácia de sair de casa vestindo uma saia. Pensava comigo que esse mundo da moda pertencia a uma galáxia tão, tão distante.

Por outro lado, ainda pensando no Marc Jacobs, foi depois que ele passou por uma “Extreme Makeover – Reconstrução Total” (quem tem a referência, risos, quem não tem, “cringe”) que as coisas passaram a brilhar no seu caminho. Ser gay não era problema naquele contexto do mundo da moda. Mas ser uma bichinha gorda e estranha era. Ele emagreceu, bronzeou, cortou o cabelo, trocou de look… Eu sempre fui uma bichinha gorda e estranha e, em alguma medida, acho que ainda sou. Como é que eu fui parar aqui?

A Andy, não. A Andy até podia ser estranha, mas ela deve ter se dado superbem na faculdade de jornalismo. Devia fazer a linha aluna esforçada, “tarefeira”, bem informada, lê todos os jornais, lê toda a bibliografia básica e a bibliografia complementar. E, óbvio, não dá a mínima para a moda e faz perguntas como: “Mas, você não acha tudo isso meio fútil?” Pergunta que, inclusive, ela tem a audácia de fazer para a sua chefe na fictícia revista Runway e toma uma lacrada radical com direito àquele discurso icônico sobre um azul que não é turquesa, não é royal, mas é cerúleo. “Você acha que você não tem nada a ver com a moda, mas o suéter que você está vestindo foi escolhido para você pelas pessoas que estão nesta sala”, dispara categórica e quase silenciosamente a magistral Streep na pele do diabo que veste Prada.

O script é forte e a lacrada, como já disse, é radical. Contudo, não sei em que medida isso é real. Aliás, tenho certeza de que isso não é real. Tenho dúvidas se isso já foi real algum dia. Será que uma revista de moda é/foi capaz de ditar tão incisivamente as movimentações de todo o mercado da confecção? (Aliás, um adendo: sei que O diabo veste Prada se trata de uma ficção. No entanto, toda ficção de qualidade, apesar de “não ser de verdade”, só emociona porque, de algum jeito [mais uma vez] estranho, toca em algum lugar do real)

Mas vamos supor que a Mirandona estava certa. Só que se a gente vai supor isso, vamos ter que dar um crédito para a Andy também. Porque, no fim das contas, o tempo provou que, apesar de as revistas de moda (e a moda em si, o luxo e tals) aparentarem ter esse poder todo, elas tiveram que se reformular agressivamente para não morrer. Se antes a Mirandona podia ditar as tendências como bem entendia (e, enquanto isso, fazer pedidos esdrúxulos às suas assistentes), hoje o trabalho de uma boa Miranda é ouvir o que essas assistentes têm a dizer.

Quando eu entrei na ELLE em 2014, para ser estagiário de reportagem de moda, tinha certeza de que estava entrando na redação da Runway. O prédio da Editora Abril parecia ter sido construído em Nova York, tamanha a suntuosidade (ainda que à beira do rio Tietê, em São Paulo, nem tão suntuoso). A ELLE ficava no décimo sexto ou décimo sétimo andar, não me lembro. Lembro que ao sair do elevador pela primeira vez estava com o ouvido trancado e com tontura.

Não tinha coragem de falar com ninguém, ainda que tivesse sido recebido desde o primeiro momento com sorrisos e simpatia por parte de toda a equipe. O diabo veste Prada ainda ressoava forte na minha cabeça. Sentia que “não tinha roupa” para estar ali e demorei para me soltar. Acontece que a ELLE, diferente da Runway, já estava sacando a falácia por trás da lacrada radical da Mirandona. Em 2015, veio a capa espelho, símbolo máximo de uma reviravolta no mercado que, tantos anos depois, está começando a se solidificar.

Foi-se o tempo em que o Oscar de la Renta fazia uma coleção inteira azul e o mundo inteiro passava a entender a cor como algo fundamental para a próxima estação. Se a gente pegar a própria Oscar de la Renta como exemplo, já dá para ter uma bela noção do que estou falando. Depois de um vai e vem de estilistas à frente da grife norte-americana, fixou-se no cargo a dupla composta por Fernando Garcia e Laura Kim. Antes de descolar o superemprego, eles faziam a Monse, uma marca que vinha chamando a atenção por sua capacidade de desdobrar a alfaiataria de um jeito contemporâneo, usável, esportivo e cool. O mundo de cocktail-dresses e salto agulha da Oscar de la Renta estava desmoronando. Vieram os millennials, estão vindo os ainda mais maluquinhos Gen-Z. Calças largas, tênis-giga e um incontornável encontro com realidades para além do circuito Upper East Side-Jardins-Leblon estão se impondo.

Esse look do novo milênio, entretanto, não veio das passarelas. Veio das ruas. Só que daí você vai me falar: “Ah, mas o Yves Saint Laurent já disse lá atrás que ‘abaixo o Ritz e viva a rua'” e eu vou concordar. Com você e com ele. Mas, para ser bem sincero, não sei até que ponto o YSL levou a sério essa frase. Uma coisa é parar de ouvir o Ritz e começar a olhar para a rua. Outra coisa é a rua ser o norte da moda, como eram as passarelas e as revistas. E isso é notícia muito boa, ok? Principalmente para quem, como eu, lia os textos, mas não comprava os sapatos ou as roupas dos editoriais de moda. Primeiro, porque não tinha dinheiro, depois, porque, ainda que tivesse, as marcas não teriam o meu tamanho.

Acontece que o eixo do pensamento mudou, mas a estrutura não. Isso posto, a moda está vivendo um momento (será que é a última vez?) estranho. Uma transição que, com fé, vai repaginar em absoluto a dinâmica e a estética desse mercado. Por um lado, há certa tristeza de saber que ficaram no passado desfiles que combinavam conceito e acabamento em máxima potência, como os que aconteceram em dado momento da história desta indústria. Por outro, é preciso existir o entendimento de que os novos estilistas que, de fato, traduzem as múltiplas vozes das ruas com um trabalho verdadeiro e honesto não detêm poder e grana o suficiente para colocar em prática a sua visão irrestrita de mundo e fazer tais desfiles apoteóticos. E isso acontece em grande parte pelo medo que o luxo tradicional tem daquilo que as faíscas espirradas por esses criativos representam. Ficam com um pé em cada barco e navegam rumo a um doloroso espacate. Uma apoteose sem estofo. É um mundo novo, cada vez mais longe da Mirandona, cada vez mais perto de incendiar-se.

P.S.: Respondendo à pergunta do começo do texto. Era masoquismo. Avante para o futuro e terapia neles!

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