Misci expande olhar para além do Brasil e foca na América Latina em desfile

O estilista Airon Martin mantém seu DNA com alfaiatarias de formas sinuosas, assimetria e bons acessórios e adiciona fluidez em peças de seda para a nova coleção.


Desfile Valor Latino da Misci
Foto: Marcelo Soubhia



Em 1958, Nelson Rodrigues definiu síndrome de vira-lata como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Airon Martin, da Misci, parece gostar de brincar com esse conceito. Na sua mais nova coleção, “Valor Latino”, apresentada nesta terça-feira (13.06) na Pina Contemporânea, o novo espaço da Pinacoteca inaugurado recentemente em São Paulo, ele versa mais sobre o assunto.

Desfile Valor Latino, da Misci

Foto: Marcelo Soubhia / @agfotosite

Nessa coleção, Martin decidiu partir desse menosprezo que o Brasil tem com sua própria cultura e com seu próprio valor, até em relação ao continente onde se encontra. E esse está longe de ser um assunto simples. A síndrome de vira-lata é comum em um país que foi colonizado, como o Brasil, que vê sempre aquilo que vem dos países do Hemisfério Norte como melhor e superior. Esse foi um mecanismo criado para emular inferioridade – e todo mundo acaba tendo um pouco dessa síndrome inerente a si.

O estilista é conhecido por traduzir imagens tipicamente brasileiras e, em grande parte, populares, em roupas sofisticadas para agradar a um público que muitas vezes desdenha de tudo que é nacional. Daí vem a brincadeira das coleções passadas com as mesas de plástico de bar, com o fuxico, com a sensualidade brasileira muitas vezes vista como vulgar, com o verde e amarelo ressignificado e com a imagem da beira da BR. Nesse desfile, no entanto, ele parece querer ir além das fronteiras do Brasil e transcende sua pesquisa para a América Latina. Mais especificamente, para o sentimento brasileiro de não se sentir pertencente ao seu próprio continente.

Desfile Valor Latino, da Misci

Foto: Marcelo Soubhia / @agfotosite

Nas roupas, essa narrativa pode ser encontrada em detalhes que valem ser vistos de perto, como o jacquard rasgadinho que revela a etiqueta da marca, lembrando uma raspadinha de jogo de azar, ou na estampa de maxipipoca aplicada em peças de seda, que faz alusão à pipoca do Carnaval, propulsor da cultura brasileira, e ao milho presente em todo o continente. A padronagem de chifres estilizados, por outro lado, simboliza o brasileiro que não reconhece a potência do parceiro (a América Latina) e acaba sendo corno por subjugá-lo.

Desfile Valor Latino, da Misci

O detalhe do jacquard de raspadinha. Foto: Marcelo Soubhia / @agfotosite

A alfaiataria com curvas sinuosas, que se afasta da sisudez pela qual é conhecida, segue sendo o grande destaque da Misci. Entram aqui também as peças fluidas e o trabalho em couro plissado aplicado a jaquetas, tops e saias. Nessa coleção, o estilista também trabalhou com o biocouro BeLeaf, material desenvolvido a partir da planta orelha-de-elefante, aparecendo nas folhas aplicadas a blazers e em detalhes texturizados ao longo do desfile.

Se você acha que já viu alguma dessas peças em desfiles anteriores, saiba que é proposital. “Só se constrói uma marca com identidade se você se repete”, disse Airon no backstage. Pouco afeita a tendências, a Misci apresentou uma roupa resort que pode muito bem ser usada em qualquer lugar do mundo, ainda que carregue símbolos muito brasileiros para quem está disposto a ver. O estilista fala de cultura brasileira de forma que ela seja entendida, valorizada e, principalmente, consumida por quem normalmente tem ojeriza a tudo que vem do país. É a tal da síndrome do vira-lata, aqui subvertida. Tipo o feitiço virando contra o feiticeiro. E esse provavelmente é seu maior feito.

Desfile Valor Latino, da Misci

O final do desfile. Foto: Marcelo Soubhia / @agfotosite

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