Mundo rosa-choque: a história da cor que dominou 2022 e que deve continuar em alta

Valentino transformou a tonalidade em hit com a coleção Pink PP, mas o tom já teve muitos plot-twists antes disso.


modelo no desfile de inverno 2022 da Valentino.
Valentino, inverno 2022. Foto: Getty Images



Foi por um vermelho intenso que a Valentino ficou conhecida. Contudo, no inverno 2022 da marca romana, não havia nenhuma peça naquela cor. Nem em qualquer outra. Naquela temporada, o diretor de criação Pierpaolo Piccioli fez toda a coleção em Pink PP, uma tonalidade de rosa, meio magenta e meio rosa-choque, criada especialmente por ele em parceria com a Pantone.

Foi um hit nas redes e, principalmente, nos tapetes vermelhos. Anitta, Drew Barrymore, Dua Lipa, Glenn Close, Lizzo e Marina Ruy Barbosa são apenas algumas das celebridades que vestiram looks totais ou pelo menos uma peça na cor feita sob medida para a marca italiana.

Dhora Costa, docente do curso de design de moda do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo, acredita que uma das razões do Pink PP ter virado sensação seja uma vontade de ousar após a época mais crítica da pandemia de Covid-19. “É uma cor alegre, que levanta, que traz para cima”, diz a professora. 

look do desfile de inverno 2022 da Valentino.

Valentino, inverno 2022. Foto: Getty Images

Uma outra explicação para o sucesso da tendência são os visuais dopamina, que combinam outras cores complementares. Segundo o artigo “A Evolução do Rosa”, da Pantone, de Jane Boddy, contribuidora criativa do Pantone Color Institute da Europa, os efeitos do rosa em nosso humor e imaginário são diferentes para cada tonalidade. 

“Como parente e descendente do vermelho, o rosa contém algumas características daquela cor, embora de uma forma mais sutil”, afirma Broddy. “Enquanto os tons suaves e gentis de rosa têm um toque delicado e macio e os rosas florais perfumados promovem o bem-estar, os rosas doces são imbuídos de uma natureza mais divertida. Já os tons de rosa quente são um alto astral que nos energiza e eleva.” 

Cena do filme Barbie.

Cena do novo filme da Barbie. Foto: Divulgação

E tem também o lançamento do longa-metragem da boneca Barbie, dirigido por Greta Gerwig. “É um filme muito aguardado e, assim que fotos dos bastidores foram divulgadas, muita gente começou a emular os visuais da personagem interpretada pela atriz Margot Robbie”, comenta Costa. 

A essa altura do campeonato – e de 2022 -, pode ser que você não aguente mais ver esse o tom de rosa por aí. Se é o seu caso, sentimos informar: ele deve continuar em alta por mais alguns meses de 2023. E já que teremos que ficar mais um tempo com a cor, vale lembrar os outros momentos em que o rosa-choque… Bom, chocou a moda.

Uma cor da sociedade

Jane Boddy explica que a cor de rosa é difícil de reproduzir naturalmente. “É até raro na natureza e quase sempre exige alguma forma de manipulação manual e artificial para ser criada”, escreveu ela, no artigo da Pantone. Ainda assim, segundo João Braga, professor de história da moda da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo, os seres humanos conhecem a tonalidade desde que o mundo é mundo. 

Do ponto de vista da espiritualidade cristã, o rosa é a cor da alegria. “No amanhecer, o céu fica berinjela, em um tom arroxeado. Representa o luto, porque é a cor que vem depois da escuridão da noite. Quando a luz está chegando, o céu fica rosa. É o chamado rosicler. É a chegada do dia”, diz Braga. Tanto que, em datas como o domingo do advento, quando a Igreja Católica começa as celebrações pelo nascimento de Jesus Cristo, o padre usa uma batina rosa. “É um momento de alegria”, continua ele.

Como tudo no mundo, a nossa relação com a cor foi socialmente construída ao longo da história. Por muito tempo, o rosa era a cor dos meninos. É que os uniformes militares eram majoritariamente vermelhos. “O homem era tido como mais sanguíneo, mais colérico. Teria uma postura mais intensificada. Por isso, é óbvio que a cor do sangue os representasse”, continua o professor. Assim, era natural que a roupa dos garotos fossem uma outra versão da tonalidade dos adultos. O azul, por outro lado, era a cor das mulheres. “Porque é a cor que nos tranquiliza, que nos pacifica. Postura que a sociedade relaciona à parcela feminina da população”, pontua Braga. 

modelo com look do inverno 2022 da Valentino.

Valentino, inverno 2022. Foto: Getty Images.

Ao longo do tempo, os papéis foram invertidos: o rosa virou de menina e o azul de menino Isso há quase 100 anos. “No início dos anos 1920, a Rainha Maria de Teck, avó da Rainha Elizabeth II, estava grávida de seu primeiro filho e recebeu seis pares de meias cor de rosa e seis pares de meias azuis – porque, evidentemente, ela não sabia qual era o gênero da criança. Quando nasceu um menino, ela decidiu ficar com as meias azuis e doou as rosas. Involuntariamente, ela mudou as coisas”, diz. 

O azul estava se tornando, inconscientemente, em uma cor “masculina”. “Porque esconde a sujeira”, fala João Braga. Nas décadas de 1930 e 1940, o mercado de roupas para bebês percebeu que as mães estavam comprando mais roupas rosas para meninas. “Por uma questão de marketing e venda, os comerciantes perceberam que essa associação funcionava e incentivou essa escolha”, complementa Dhora Costa. 

Até que, em 1959, chega às lojas a boneca Barbie. Com público-alvo feminino principalmente pré-adolescente, o brinquedo era o suprassumo da feminilidade. E a cor de sua embalagem, qual era? Rosa. Pronto, o resto é história. 

Choque de Schiaparelli

Não há apenas uma explicação sobre o motivo de relacionarmos o rosa à feminilidade. O que se sabe é que o rosa está presente em flores e invoca uma ideia de doçura e suavidade. A partir do momento em que a cor virou “de menina”, uma tonalidade diferente era usada em cada época da vida da mulher: o rosa mais claro, pastel, era para meninas, o mais intenso para mulheres adultas, o rosa empoeirado, antigo, para as senhoras. 

Vestidos de Elsa Schiaparelli.

O vestido rosa-choque de Elsa Schiaparelli. Foto: Divulgação

O rosa-choque, no entanto, não “existia” até 1937. Elsa Schiaparelli era uma estilista vanguardista, cujas roupas flertavam com o surrealismo de Dalí. Ao lançar o perfume Shocking, a designer italiana se inspirou no corpo da atriz Mae West para o frasco da fragrância e pediu que fosse criada uma tonalidade de rosa vibrante para colorir a embalagem externa. Segundo o Metropolitan Museum of Art, a cor foi batizada de rosa-choque pois “representava o desejo de Schiaparelli de chocar aqueles ao redor dela com suas criações únicas”. 

Cena do filme A garota de rosa-choque.

Cena do filme A garota de rosa-choque. Foto: Divulgação

O tom não foi um sucesso logo de cara. Como muita coisa que a estilista italiana criou, a tonalidade era chocante demais para um mundo em recuperação após a Primeira Guerra Mundial, já prestes a entrar em outro grande conflito. Porém, ao longo do tempo, o rosa-choque foi ganhando espaço até que, nos anos 1980, virou febre principalmente por conta do movimento New Wave e chegou a batizar um dos filmes emblemáticos da época: A Garota de rosa-choque, de John Hughes

A letra rosa-choque

A atriz Marilyn Monroe.

A atriz Marilyn Monroe. Foto: Getty Images

Marilyn Monroe com um vestido rosa-choque sem alças de William Travilla, luvas na mesma tonalidade, cantando Diamonds are a girl’s best friend, no filme Os homens Preferem as loiras (1953), se tornou uma das cenas mais famosas do cinema. Tanto que é apontada como o início de um estigma relacionado à tonalidade. É a ideia a de que o rosa seria a cor de mulheres fúteis e pouco inteligentes. “Marilyn Monroe tinha essa personagem, que fez com muito sucesso, de uma mulher bastante sensual. A imagem dela cantando com vários homens pode ter reforçado o estereótipo de que a mulher que usa rosa é burra, bobinha”, diz a professora Dhora. 

Cena do filme legalmente loira.

Cena do filme Legalmente loira. Foto: Divulgação

A associação voltou à tona nos anos 2000, quando o rosa vivia no corpo de celebridades como Paris Hilton, tornando-se a cor oficial das patricinhas. A caricatura foi replicada ad infinitum, como no filme Legalmente loira. No longa, a personagem de Reese Witherspoon é considerada burra demais para entrar na escola de direito de Harvard, segundo seu namorado. 

foto do filme Meninas Malvadas.

Meninas Malvadas. Foto: Divulgação

Em Meninas malvadas, as garotas mais bonitas da escola, e também as mais fúteis e maldosas, usam “rosa às quartas-feiras“. Como a tonalidade era vista como uma cor ultrafeminina, ela carregava todas as más atribuições que o machismo estrutural dá a tudo o que é apontado como de mulher. 

Dhora já trabalhou como consultora de estilo e conta que, há cinco ou seis anos, havia a percepção de que o rosa infantilizava as pessoas e, por isso, não era indicado para mulheres em posições de liderança. “Era visto como uma feminilidade muito grande que, em um mundo dominado por homens, poderia ser visto como uma fraqueza”, diz. “São coisas arraigadas na cabeça das pessoas, que nem sempre são verdade, mas acabou constituindo que o rosa esconderia a força de comando dessa mulher.” Ainda segundo a professora a ideia já perdeu bastante a força, mas o estigma ainda aparece vez ou outra. 

A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, com o presidente do Conselho Europeu Charles Michel, e o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan

o presidente do Conselho Europeu Charles Michel, o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan e a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen. Foto: Getty Images

A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen vestia um blazer rosa-choque quando, em abril do ano passado, aconteceu um incidente diplomático noticiado como Sofagate. Em um encontro com o presidente do Conselho Europeu Charles Michel, e o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, von der Leyen foi renegada a um sofá lateral enquanto os dois líderes homens sentaram-se em cadeiras no centro da sala que estava sendo fotografada por jornalistas. Dias depois, no Parlamento Europeu, a política alemã lembrou que o sexismo existe em todos os níveis da sociedade e refletiu se, caso ela estivesse com um traje menos feminino, teria recebido o mesmo tratamento naquele diz. “Isto teria acontecido se estivesse de terno e gravata?”, indagou.

Do Barbiecore ao além

Por mais que ainda aconteça alguns casos em que mulheres são diminuídas por sua feminilidade, Dhora Costa lembra que o mundo está mudando a cada dia. E a nossa relação com a cor rosa acompanha essas transformações. A tonalidade já não é mais de patricinha. Nas redes sociais e no mundo virtual, ela tem colorido estéticas como o pink punk e o Barbiecore.

Jane Boddy, do Pantone Color Institute, escreveu em seu artigo que o desejo de sentir profunda alegria e otimismo devem fazer com que o rosa-choque continue em alta. “A cor atende a essas necessidades com grande entusiasmo. O rosa não pode deixar de encantar, trazendo uma resposta emocional positiva, estimulando os sentidos como nenhuma outra coisa”, falou. “Há uma busca inconsciente por uma certa alegria, entusiasmo e uma certa esperança. O rosa passa tudo isso, e acho que é tudo o que precisamos nesse momento”, finaliza João Braga.

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