No 3º dia da SPFW, política deixa de ser tabu nas passarelas do evento
Protestos, posicionamentos e ações de impacto marcam os desfiles da Meninos Rei, Naya Violeta e Misci.
Em 2018, profissionais da moda, artistas, jornalistas e convidados da São Paulo Fashion Week se uniram numa performance em protesto à eleição de Jair Bolsonaro, do lado de fora das salas de desfiles. Enquanto o grupo, unido por um imenso tecido vermelho, se movia com gritos de “ele não”, nos telões do evento, um Mickey Mouse fazia seu pivô na passarela de uma apresentação de moda praia.
Corta para 2022. A cena é a seguinte: lá pela metade do desfile, um modelo negro entra na passarela vestindo um macacão cargo estampado, capacete e uma mochila quadrada, como as usadas por motoboys em serviços de entrega. Ele tira o capacete logo que começa a caminhar e a mochila quando para na frente dos fotógrafos. Ele a apoia no chão, abre o zíper, tira um papel branco e guarda o capacete lá dentro. Depois de colocar a mochila de volta, desenrola o cartaz e o ergue acima da cabeça, com braços estendidos para o alto. “Chega! Fora Bolsonaro.” A plateia o ovacionou.
No texto de ontem, falamos sobre como os criadores de hoje vêm tomando posturas diferentes daquelas que costumavam ganhar palco e até permissão nas passarelas de antigamente. Política, por exemplo, era assunto proibido. No desfile da Meninos Rei, marca dos irmãos Júnior e Céu Rocha e palco da cena descrita acima, ela é parte central da discussão – ainda que indiretamente.
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A moda da Meninos Rei é essencialmente uma celebração da vida, da diversidade, da liberdade, do respeito e das culturas negras. Com um dos castings verdadeiramente mais diversos do evento, a apresentação é carregada de emoção, autenticidade e muita roupa boa.
Nesta temporada, Junior e Céu dão continuidade à fusão de alfaiataria com elementos esportivos ou do streetwear. Os tecidos vindos de países africanos seguem onipresentes e trabalhados em um patchwork bem complexo, quase matemático.
Desta vez, porém, o duo convidou o designer baiano Hori, do estúdio Agá, para desenvolver a primeira estampa autoral da marca. No quesito parcerias, tem ainda as pochetes e bolsas executadas pelo conterrâneo Vinícius Carmezin, da Ziê, os balangandãs e coroas da casa de artigos religiosos Ile Dê Odé e os anéis e brincos da designer Luana Rodrigues.
Meninos Rei.Foto: Victor Alquezar-Senac
A coleção tem como ponto de partida a ideia de Ori, que, como explicam os estilistas, é a palavra em iorubá que remete, entre outras coisas, à consciência, à mente. No camarim, dupla falou sobre a importância de manter a cabeça no lugar, saudável, em paz. Algo que, convenhamos, tem sido um pouco difícil nos últimos anos. Para pessoas negras e de outras minorias mais ainda. O desfile, aliás, começa com vídeo composto de vários trechos de telejornais sobre assassinatos de negros, seja pela força policial ou por civis. Para bom entendedor, meia palavra (ou notícia) basta.
Ainda que menos estridente no tom político, a estilista Naya Violeta também fala sobre a construção de um futuro melhor. Ou, nas palavras da própria criadora, “na esperança de um outro amanhã”. Na passarela, as peças fluidas com estampas dramáticas do começo do desfile vão ganhando elementos e sobreposições mais estruturadas, como pepluns e coletes de matelassê. A ideia é criar contrapontos que simbolizem o coração agitado do presente. A imagem de Irôko, orixá do tempo, é recorrente nas referências do desfile.
O casting também merece menção honrosa: a poetisa Dona Jacira, as ativistas Carmen Silva e Sonia Guajajara e a apresentadora Bela Gil, com um vestido vermelho e estrela dourada no peito.
Já na Misci, o elenco foi um pouco mais pop: a espetacular Ana Carolina Apocalypse, com look branco meio futurista, as modelos Carol Trentini e Bárbara Fialho, o ator Enzo Celulari, o ex-BBB PA e a cantora Duda Beat, num terno vermelho, todo decorado com broches no formato do mapa do Brasil dividido em dois.
Airon Martin, diretor criativo e fundador da marca, chamou a coleção de EVA – Mátria Brasil. Antes do desfile, o estilista contou que a ideia inicial era fazer uma coleção focada na natureza e falar sobre o desmatamento avassalador na Amazônia. Contudo, ao longo do processo, ele começou a notar que a maioria das pessoas com quem trabalhava eram mulheres. Sua própria equipe é quase toda feminina. “Sou filho e neto de mães solo, cresci cercado de mulheres batalhadoras, que trabalhavam para cuidar sozinhas da família”, diz.
Por isso, a (leve) mudança de rumo. De forma inteligente, honrosa e, por vezes, bem-humorada, Airon cria focado nas potências e forças femininas. Exemplos mais óbvios são apliques de chupetas, os bolsos entre os peitos (já apresentados na coleção passada) e as peças que deixam apenas um seio à mostra, em alusão ao tabu da amamentação em público. Outras referências são mais discretas, como as estampas que remetem às figuras femininas da sua família, à cangaceiras e a própria construção das roupas.
E aí fica claro que o assunto não é uma novidade no trabalho do designer, só está mais explícito ou verbalizado. Sua alfaiataria leve, recortada, assimétrica e sensual sempre carregou alguns desses valores. O respeito e consideração nas modelagens e silhuetas idem. Nada é justo demais, curto demais, decotado demais. Entre as mulheres do time ELLE (e as gueis também) o desejo foi absoluto: dos ternos com cortes sinuosos, com calça de cós elevado e top assimétrico, aos vestidos longos fluídos e jaquetas de couro modelagem quadrada, à la mod dos anos 1960.
Tanto que o masculino, segmento que lançou a Misci no mercado, ficou consideravelmente apagado, quando não algo caricato, meio desatualizado em relação ao feminino. Os melhores looks para eles são aqueles com características tradicionalmente associadas à moda delas: as camisas de seda ou algodão soltinhas e bem abertas, as bermudas curtas e as bolsas de ombro.
Deixando o campo das ideias de lado, a coleção é ainda um show de qualidade, acabamento, poder de investimento e boa-vontade. Grande parte dos tecidos, quase todos de origem brasileira, foram feitos especialmente para a marca. E isso custa caro. Pode parecer ostentação, mas não é. Tem fundamento, coerência e visão. Diferencia o produto, posiciona a grife e incentiva a produção nacional.
Tem muita empresa de moda com bala na agulha que prefere economizar e exportar de outros países, enquanto a indústria local segue em deterioração, ceifando empregos e afastando investidores. O preço final nem é tão diferente assim, já o impacto social e econômico… Bom, deixa para lá. Ou não, afinal a questão política parece, finalmente, ter deixado de ser tabu. E isso não atrapalhou em nada o tanto que desejamos essas roupas.
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