Segundo dia da SPFW vai do artesanato à culinária baiana com pitadas de sexo
As estreias de Martha Medeiros e Dendezeiro, o feito à mão transformador do Ponto Firme e as interpretações sobre sensualidade da Rocio Canvas e Bold Strap.
Bastante desorganizado, com falta sinalização, bagunça no entra-e-sai e atrasos inexplicáveis, o segundo dia da edição 53 da São Paulo Fashion Week confirmou a nostalgia dos anos 1990 na organização do evento. Não que algum dos jornalistas que vos escreve estivesse lá naquela época, mas livros, reportagens e relatos de quem vivenciou aquilo estão aí para cobrir o gap histórico. Nas passarelas, contudo, algumas marcas fizeram questão de mostrar que traumas e falhas do passado estão sendo superados. Como a valorização do fator humano, do trabalho manual.
O artesanato foi durante muito tempo visto com desdém por boa parte da indústria e dos consumidores. Principalmente quando carregado de significado social, histórico e regional. Eram poucos os criadores que conseguiam subverter ou ao menos maquiar tal percepção. Um deles é a estilista alagoana Martha Medeiros. Veterana da moda e no mercado desde os anos 1980, ela lançou sua marca homônima em 2004, ficando conhecida por seu trabalho com rendas e preservação das técnicas manuais vindas do Nordeste.
Em sua estreia na SPFW, Martha fez de seu desfile uma espécie de retrospectiva encenada. Quem abre a apresentação é a própria estilista, num vestido de renda branca e preta. No microfone, ela fala sobre sua paixão pela moda feita à mão e passada de geração em geração. Relembra suas origens e como construiu seu negócio. Na sequência, cada look traz algum marco de sua trajetória: da preferência por tons neutros à predileção pelos xales que sua avó tanto gostava.
Martha Medeiros.Foto: Antônio Pereira Brandão
O diálogo entre passado, presente e futuro amarra todo o inverno da estilista, mas falando de presente, é o styling de Dudu Farias que deixa evidente o esforço em cobrir todos os perfis e clientes da marca. Exemplos? O minivestido-camisola combinado com xale e botas de camurça ou o look de colete branco decorado com botões-broche preciosos criados por Rose Benedetti.
Rose, aliás, é um ícone da bijuteria nacional, e assina todas as desta coleção. Nos anos 1980 e 1990, era ela quem produzia colares, pulseiras, brincos, cintos e muito mais dos acessórios para Yves Saint Laurent, estilista francês que serviu de referência para algumas das roupas desfiladas.
Antes da apresentação em si, foi exibido um vídeo feito no sertão nordestino, nas residências das rendeiras da marca. O material era divulgação do Olhar do Sertão, iniciativa do Instituto Martha Medeiros, que busca ser um agente de transformação na vida das comunidades do semiárido nordestino, incentivando a produção artesanal local e resultando em melhores condições de vida. É uma atitude louvável e também esperta, já que a arte da renda renascença — digna de qualquer salão francês de alta-costura — é trabalho raro e caro nos dias de hoje. Sua preservação e incentivo, como visto, pode trazer benefícios para ambos os lados.
O trabalho de Martha Medeiros, no entanto, é apenas uma das formas como as manualidades podem ser inseridas no mercado. Apesar do valor e potencial de melhoria, é um modelo de relação que pode ser interpretado por alguns com viés extrativista – o mínimo, o básico, o digno em troca de um trabalho cujo produto não é seu, mas de outrem. No projeto Ponto Firme, por outro lado, a integração dos artesãos com a criação, a feitura e o produto final é horizontalizada. Apesar da supervisão e coordenação do estilista Gustavo Silvestre, as coleções são assinadas coletivamente e o faturamento das vendas, distribuído mais igualitariamente. O resultado não é apenas uma soma financeira, mas um produto de transformação e reinserção pessoal e social. O que está a venda no Instagram @projetopontofirme foi feito, comercializado e vendido de acordo com o empenho da pessoa envolvida.
Só para lembrar, Gustavo fundou o Ponto Firme em 2015, ministrando aulas de formação técnica em crochê para as pessoas sentenciadas do presídio masculino Adriano Marrey, em Guarulhos. Ano passado, a vontade de expandir a ação e contemplar mais pessoas deu vida à Escola Ponto Firme. Localizada no centro de São Paulo, ela oferece cursos de crochê para pessoas em situação vulnerável – incluindo egressos do sistema prisional.
Nesta temporada, o estilista, mentor e professor incluiu na sua equipe de design, além dos presos e egressos do sistema carcerário, mulheres trans e refugiadas, em uma parceria com o Ministério Público do Trabalho, sobre a qual falamos aqui. Além dos vestidos ultrasexy, das blusas e camisas com padrão de carta de baralho e dos chinelos Rider customizados, um dos principais destaques são os bonés de @arte_do_magro e @renebonesdecroche. E tudo feito à mão, com fios e materiais reaproveitados/reciclados.
Estreia com dendê
Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, o bolinho de feijão frito em azeite de dendê, foi introduzido no Brasil na Bahia, por meio de escravos da etnia nagô, vindos de regiões iorubás da Nigéria e do atual Benin, então Daomé. A gente podia continuar com uma lista imensa sobre o que mais foi criado de maneira similar e, hoje, é tido como algo essencialmente brasileiro. Por questão de foco e coerência, o que importa dizer aqui é que a Dendezeiro, marca soteropolitana dos criativos Hisan Silva e Pedro Batalha, estreou na SPFW com um vídeo e coleção em homenagem à culinária baiana, mais especificamente ao tabuleiro de acarajé.
Dendezeiro.Foto: @kevinoux
A coleção é fruto de uma pesquisa que começou em 2019, quando a dupla se aprofundou no cotidiano baiano, sua história e suas ramificações. Vem daí as muitas referências às culturas e tradições de países africanos, principalmente em relação à comida. A cartela de cores, por exemplo, é toda inspirada nisso: o verde da folha que envolve o abará, o marrom amarelado do caruru e o branco da cocada. Outro foco de estudo do duo nos últimos tempos foi a alfaiataria e as modelagens ajustáveis, dois pontos que se destacam nesta coleção.
Mesmo visto digitalmente, é expressivo o salto de qualidade das peças e técnicas utilizadas por Hisan e Pedro. Caimento, textura, corte e proporções chegam mais bem resolvidos em camisas oversized, blazers, jaquetas leves e vestidos de tecidos naturais e cores saborosamente intensas. O melhor, contudo, fica no final, na releitura mais diversa, livre e sensual da Santa Ceia, ou melhor, da Preta Ceia.
Falando em sexy…
Sensualidade tem sido uma palavra repetida ad infinitum há umas três temporadas. Se para alguns o conceito pode se resumir ao óbvio, para Rocio Canvas tem mais a ver com consciência corpórea. Após duas apresentações digitais na SPFW, a marca de Diego Malicheski fez a sua esperada estreia na passarela com vontade de examinar o que se entende por sexy. O estilista, no entanto, fez questão de ponderar: “Estamos levando em conta a singularidade de cada pessoa que fizer uso dessas peças”.
É que, em algum momento, surgiu um conflito em torno da tal roupa de atração, mas, no verão 2023 da Rocio, nada parecia constranger quem usava 一 nem mesmo as estruturas escultóricas. É provável que isso se dê graças ao cuidado minucioso desenvolvido na construção de cada peça, capaz de tornar real e prática até a roupa de design mais técnico.
Para esculpir as formas, há torções, sobreposições, drapeados e plissados. Os vazados, recursos que Diego não abre mão, continuam. De novidade, as blusas ganham faixas compridas e as saias, fendas alongadas. A sua reconhecível alfaiataria surge em tecidos naturais de algodão e seda ou com tramas tecnológicas, em combinações monocromáticas ou bicolores. À frente de um nítido refinamento estético, a roupa eterna de Rocio Canvas confronta as tendências mil de uma maneira sutil. Momentismo absoluto, impermanência que perdura.
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Propondo um outro olhar sobre desejo, sexo e sensualidade, a Bold Strap, do estilista Peu Andrade, estreia nas passarelas físicas em clima Motomami – disco lançado pela cantora espanhola Rosalía. Daí as referências ao motociclismo, com saias e jaquetas matelassadas desfiladas pela atriz Camila Queiroz e pela cantora Marina Sena. Para uma etiqueta que nasceu focada em objetos de couro, lingerie e outros itens fetichistas, a imagem surpreende e mostra evolução.
Ainda assim, destaque fica, mesmo, para a sensualidade que exala tanto de toda a pele à mostra (em recortes, decotes, amarrações e transparências) quanto da atitude dos modelos na passarela. Encerrando o segundo dia de São Paulo Fashion Week, a etiqueta ainda mostra que sua roupa não funciona apenas para corpos magros ou padrões, mas para quem tem a confiança de segurar o look fetichista proposto pelo estilista seja lá qual for sua silhueta.
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