E SE… a tecnologia não for nos salvar?

Engenharia genética, mercado de carbono, tecidos sustentáveis: vale a pena apostar todas as fichas no tal do "tecnofix"?


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“Tecnofix” é uma expressão bastante utilizada no debate ambiental para apontar soluções

“tecnológicas” para problemas sociais. É a velha promessa de que a tecnologia nos salvará e que não precisamos, de fato, mudar nosso modo de produção e a organização social imposta pelo capitalismo patriarcal global para superar os problemas sociais e as crises do nosso tempo, entre elas a climática. A ideia de que algum produto, alguma grande tecnologia, alguma coisa nos salvará não é de hoje.

Eu já falei disso tantas vezes ao longo dos últimos oito anos que sinceramente perdi as contas. A engenharia genética e a Revolução Verde são exemplos clássicos do chamado “tecnofix”: a narrativa era acabar com a fome. A prática foi a abertura de mais um nicho de exploração capitalista por parte das empresas produtoras de sementes geneticamente modificadas e uma enxurrada de veneno (e os consequentes problemas de saúde por conta da exposição exponencial aos agrotóxicos ao longo dos anos), tudo isso com o auxílio do Estado.

Latifundiários e corporações químico-farmacêuticas internacionais ganharam (e ganham) muito dinheiro (tanto com os agrotóxicos quanto com os tratamentos utilizados para tratar as consequências da exposição excessiva aos agrotóxicos, entre elas, o câncer). Enquanto isso, as pessoas, sobretudo as mulheres, sobretudo aquelas em contextos racializados,

seguem com fome, porque o problema da fome nunca foi um problema de ausência de tecnologia, mas sim de má distribuição de terra e recursos, e produção agrícola voltada para o mercado de commodities.

Eu também poderia falar do mercado de carbono (ao longo de 2021, estudos analisaram o estado e potencial dos mercados de carbono, estimando que os mercados voluntários podem aumentar em 15 vezes até 2030, podendo chegar a valer até US$ 50 bilhões); da geoengenharia (a expectativa é que as chamadas indústrias de baixo carbono atinjam um tamanho de mercado superior a US$ 2 trilhões até 2030); e do transhumanismo (de acordo com um relatório da McKinsey de 2021, no ano pandêmico de 2020 o preço médio das ações das empresas de biotecnologia europeias e americanas aumentou mais que o dobro da taxa do S&P 500*.

Mas eu não vou falar sobre nenhum deles. Hoje o tema da vez é “tecido sustentável”, mais especificamente, o cânhamo.

Primeiro, falar sobre isso exige entendermos nosso contexto brasileiro. Indo na contramão do resto do mundo, a legalização da Cannabis infelizmente não está no nosso horizonte. Estamos, na verdade, indo em direção oposta à de muitos países, inclusive da América Latina.

A nova resolução nº 2.234 do Conselho Federal de Medicina, publicada no último dia 11, proibiu pelos próximos 3 anos o uso da cannabis medicinal no Brasil, salvo alguns poucos casos.

Até pesquisas sobre o tema não podem mais ser conduzidas fora do ambiente acadêmico e centenas de pessoas que fazem uso medicinal e terapêutico da cannabis precisarão suspender os tratamentos. A resolução sinaliza que o cânhamo, derivado da Cannabis sativa, tão pouco deve ser legalizado. E isso faz com que não possamos aproveitar o potencial sustentável da fibra em uma rede produtiva local.

Conforme argumentamos na mais recente pesquisa do Instituto Modefica, Fibras Alternativas: Cânhamo, o primeiro passo para termos têxteis de menor impacto feitos a partir do cânhamo disponível para o consumidor de moda brasileiro é a legalização da produção. Sem isso, o que vemos circular no mercado nacional são tecidos importados, produzidos sobretudo na China e na Turquia.

Mas ainda que avançássemos na legalização, não poderíamos assumir uma adoção imediata da indústria ao cânhamo (existem uma série de fibras vegetais que poderiam ser utilizadas na indústria da moda e não são, como por exemplo, o linho, a juta e a malva) e, tão importante quanto, não poderíamos tratá-lo como (mais) um tecnofix da vez.

Vamos por partes. O cânhamo é uma espécie de Cannabis sativa que contém menos de 0,3% de THC, ou delta-9-tetrahidrocanabidiol, o principal composto psicoativo da planta. Em suma, cânhamo é qualquer espécie de Cannabis sativa com menos de 0,3% de THC e é utilizado na fabricação de suplementos nutricionais, como os óleos de CBD, produtos têxteis e biodiesel.

Quando a Cannabis foi proibida em vários lugares do mundo, no início do século XX, a produção de cânhamo cessou. As tecnologias têxteis desenvolvidas para fibras naturais eram focadas sobretudo no algodão e,posteriormente, nas fibras sintéticas. Hoje, é preciso uma atualização de processos e maquinários para uma produção de cânhamo de baixo impacto, além da legalização da produção para que países produzam localmente tanto a fibra quanto o tecido.

Mais uma vez, estudos comparativos e análise de ciclo de vida nos ajudam a contextualizar o processo produtivo e mensurar impactos reais da produção têxtil para, novamente, frear narrativas simplistas que surgem por todos os lados quando o assunto é sustentabilidade.

Importar tecido de cânhamo da China é menos sustentável do que utilizar o algodão agroecológico produzido no Brasil, por exemplo. Mas a produção de cânhamo não só pode ser tão excelente quanto do algodão agroecológico como também pode superar a performance do algodão convencional tanto em produtividade quanto em sustentabilidade se, e somente se, a produção for implementada de forma não extensiva e não predatória, preferencialmente em modelos agroflorestais e/ouagroecológicos.

Como a o cânhamo têxtil é proibido há mais de um século na maior parte do mundo e, portanto, sua produção é diminuta, assim como a quantidade de estudos e análises que temos disponíveis, nenhuma conclusão é definitiva, e precisamos continuar investigando os desafios e possibilidades acerca do uso dessa matéria-prima na indústria da moda. Por hora, nos resta seguir na tentativa da legalização para, posteriormente, demandar processos de produção não só de baixo carbono, como também de regeneração dos biomas e promoção de inclusão e renda para grupos produtivos. Temos, de fato, muito trabalho pela frente.

*S&P 500, abreviação de Standard & Poor’s 500, ou simplesmente S&P, trata-se de um índice composto por quinhentos ativos cotados nas bolsas de NYSE ou NASDAQ, qualificados devido ao seu tamanho de mercado, sua liquidez e sua representação de grupo industrial.

Marina Colerato é jornalista, está como diretora-presidente do Instituto Modefica, faz mestrado em Ciências Sociais na PUC/SP e reflete sobre política, feminismos e o fim do mundo na sua newsletter Lado B. Você pode acompanhá-la no Instagram @marinacolerato.

 

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