Obrigado, Erika Hilton, pela presença
Deputada federal, Erika Hilton desfilou na SPFW N56 e seu catwalk incomodou a direita, a esquerda, e lembrou que moda não é bagunça.
Se Erika Hilton tivesse aparecido em um congresso de fisioterapia teria causado menos raiva. Acontece que moda ainda é bobagem para muita gente, não importa que o setor seja o segundo que mais empregue pessoas no Brasil. E a presença da parlamentar na SPFW N56 incomodou não apenas os seus assumidos haters, como também quem parecia estar no mesmo barco.
O chiar (claro, sempre no Twitter) começou no segundo dia do evento (10.11), quando Erika cruzou a passarela da Apartamento 03, de Luiz Cláudio, usando um casaco azul anil. Depois, no último dia da SPFW, (12.11) ela abriu e fechou a apresentação da Led, marca pela qual já havia desfilado outras duas vezes, a primeira delas no final de 2022, com um conjunto vermelho e uma faixa presidencial.
Erika Hilton desfila para o verão 2024 da Led na SPFW N56. Getty Images
Nas redes sociais, as aparições foram um prato cheio para questionamentos até que oportunos, como, por exemplo, ‘isso aconteceu em horário de trabalho?’, o que não foi o caso, mas também rolaram xingamentos transfóbicos e o destilar de muito veneno. O horror é tão banalizado, que esse tipo de ódio nem surpreende mais. Mas a crítica veio também de figuras que ganharam notoriedade por serem justamente mais progressistas.
Omar Monteiro, dono do Bar do Omar, no Rio de Janeiro tuitou: “É muito fácil falar que política também é moda, é São Paulo Fashion Week, é gata rebolando num lugar chiq (sic) e não ‘apenas debate no parlamento’ quando você tem um governo de verdade metendo a mão na merda pra negociar com os maiores canalhas do país a fim de mudar verdadeiramente a vida do povo.” Rapidamente apelidado de Dona Jura do PT (o partido em nada tem a ver com a publicação), ele apagou o post em seguida.
Para os críticos de Erika Hilton na passarela, parece que não só existe uma disparidade entre moda e fazer política, como também é impossível rebolar e ser alguém que muda a vida de um povo. Dá para ir longe nas leituras e, em todas elas, moda não é coisa séria.
Não como justificativa, mas em prol de um maior esclarecimento, Erika subiu em seu perfil no Twitter um texto lembrando que a indústria têxtil emprega cerca de 10 milhões de pessoas e que fatura R$ 200 bilhões ao ano.
A deputada afirmou ainda que este é um setor cheio de problemáticas, como o trabalho análogo à escravidão, mas que a sua presença no evento (uma escolha pessoal, independente do trabalho) encoraja a pensar em política de formas diferentes.
Deputada federal segura bandeira LGBTQIAP+ nas mãos. Getty Images
Erika Hilton está certa em relação aos números. De acordo com a ABIT, Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção, o setor faturou 190 bilhões de reais em 2021 e são 9,34 milhões de trabalhadores formais e informais o compondo. Outro dado importante é que, deste número, 60% da mão de obra é feminina.
Daí se tiram duas conclusões: a sua presença como parlamentar não só é muito bem-vinda, como a inferiorização do setor têxtil é mesmo carregada de misoginia, seja a dos machinhos da direita, seja dos esquerdomachos.
Trata-se de um trabalho majoritariamente executado por mulheres. São costureiras, artesãs, lojistas, estilistas e por aí vai. Não é difícil também associar a moda à população LGBT+. Em resumo, uma força de trabalho que não está diretamente associada a homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros. É como se não fosse um trabalho de respeito, sério. É firula.
Em um vídeo sobre o mesmo assunto, Erika volta a dizer que pode defender os direitos de sua comunidade com excelência, propor agendas políticas e econômicas, ao mesmo tempo que desfila. E a sua conduta não deixa dúvidas.
Erika Hilton fotografada por Bob Wolfenson para o Volume 3 da ELLE Brasil. Foto: Bob Wolfenson
Erika Hilton (PSOL – SP) é a primeira deputada federal negra e trans eleita na história do Brasil. Em São Paulo, ela teve mais de 250 mil votos. No currículo também está o fato de ter sido a vereadora mais votada do país em 2020.
Nesse tempo, ela atuou de forma ativa contra o projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O documento contraria a atual jurisprudência brasileira e é inconstitucional, porque, desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a união entre casais do mesmo sexo como entidade familiar.
A deputada também se fez presente no projeto que prevê a divulgação do direito de reconstrução mamária pelo SUS ou na discussão da importância do acolhimento de migrantes e refugiados de forma multidisciplinar.
Durante a própria semana de moda, ela esteve ativa nas redes sociais falando da nova lei de cotas sancionada e do projeto de lei que busca adaptar as cidades aos impactos das mudanças climáticas.
Erika Hilton fecha desfile da Led de verão 2024 na SPFW N56. Getty Images
Tudo isso, enquanto servia um dos raros olhares positivos para a São Paulo Fashion Week em tempos. E, neste sentido, um grande obrigado, porque, quem sabe assim, ajude a recuperar senão o prestígio que o evento já teve, ao menos a autoestima da própria organização, dos profissionais que trabalham com moda ou faça brilhar os olhos de patrocinadores que podem invistir mais na semana, e também (e principalmente) nos estilistas que participam dela.
“Quando a Erika está ali dá a importância que a moda precisa ter. Ver uma figura de poder como ela nesse lugar traz essa força”, afirma Célio Dias, estilista da Led.
É verdade, a São Paulo Fashion Week não é como antes. Não faltam pessoas que puxam memórias (muitas vezes saudosistas e que não vêem os ganhos da atualidade como, por exemplo, a maior diversidade) de quando havia filas na porta com pessoas desejando aquele universo, ou como as marcas faziam grandes ativações e se via mais famosos nos corredores do que ex-BBBs.
As grandes blogueiras já não frequentam o evento há anos. E é difícil não se perguntar porque há tanta insistência nessas figuras que ganham rios de dinheiro falando de (ou apenas vestindo uma) moda, sem estar presente na apresentação da coleção. A porta do desfile da Dior é mais concorrida para foto do que qualquer fila A de um desfile brasileiro.
Os jornalistas que ainda enfrentam o evento de cabo a rabo veem cada vez mais o seu espaço minguar. A sala de imprensa desta última temporada pegava fogo com dois pequenos ventiladores refrescando a mídia de moda de todo o país.
Erika Hilton desfila o verão 2024 da Apartamento 03 na SPFW N56. Getty Images
Mas muita coisa mudou também para melhor e a moda que se discute hoje vale a pena. Obrigado, Erika, pela presença. Você lembra que somos parte de uma engrenagem de trabalhadores e podemos desenvolver uma cultura de moda neste país, bem diferente da europeia.
Nossa cultura de moda pode nascer ou renascer essencialmente sustentável, indubitavelmente diversa, brasileira. Não toleraríamos nenhuma cafonice misógina, gordofóbica, LGBTfóbica, capacitista ou com barras mal feitas – eu sigo amando uma boa costura.
Este é um setor criado por gente que sonha e ama o que faz. E, por isso, aquele seu argumento de que, sim, moda é política, mas ainda mais do que política, moda é algo que você simplesmente gosta, encanta tanto. Afinal, nenhum cara precisa dizer que futebol é político para poder gostar de futebol e fazer entender a sua importância.
Gabriel Monteiro é editor de moda da ELLE Brasil.
Leia também: As melhores apresentações da SPFW N56 segundo a ELLE Brasil.
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