Os dois lados de um laço: mulherzinha, sim; funcional, também.

Laços, babados e tudo que é fofo se torna objeto de desejo e consumo. Mas qual o significado de códigos tradicionalmente femininos chegarem aos holofotes?


a tendência do laço ganha força nas passarelas e nas ruas. Na foto, verão 2024 da alta-costura de giambattitsta valli
Verão 2024 da alta-costura de Giambattista Valli. Foto: Getty Images



Quem tem medo da hiperfeminilidade? Aparentemente, não a nova geração, que coloca laço nos cabelos, nos sapatos e até nas unhas. É a era das coquettes, as garotas-mulheres que escutam Lana Del Rey, assistem aos filmes de Sofia Coppola (se for Maria Antonietta, melhor!) e combinam suas sapatilhas acetinadas com meias com babados.

laço é tendência e a nova iorquina camri henri é destaque nas redes sociais

Visual ultrafeminino é febre nas redes sociais. Foto: Instagram/@camriehenrie

Ares que não são estranhos às passarelas: no verão 2024, as modelos de Marc Jacobs faziam as vezes Polly Pocket em suas roupas volumosas, arredondadas e propositalmente desproporcionais ao seu tamanho. Na temporada da alta costura da mesma estação, saias rodadas, mangas bufantes, aplicações de flores e laços enormes aparecem na Chanel, Giambattista Valli e Simone Rocha para Jean Paul Gaultier.

Antes disso, no verão 2022, houveram as meninas rosa-choque da Valentino, as bailarinas da Miu Miu e por aí vai. A lista é longa.  

tendência do laço aparece no desfile de alta-costura da simone rocha para jean paul gaultier

Simone Rocha para o verão de alta-costura da JPG. Foto: Getty Images

No TikTok, ser apenas uma garota, como canta Gwen Stefani em “Just a Girl”, é legal. A repercussão de termos como girl dinner e girl math (respectivamente, jantar de garota e matemática de garota) colocam à prova uma certa unidade no pensamento e dinâmica feminina. Por lá, ninguém tem medo de parecer uma boneca: ao contrário, quanto mais semelhante, melhor. Na vida fora das telas é igual. É só lembrar de todas as pessoas que se embalaram em tons de rosa para assistir à estreia de Barbie, um dos maiores blockbuster de 2023. 

“Às vezes, brinco que vou me vestir de boneca de terror”, diz Giullia Marchetti, influenciadora digital e fundadora da Leoni Per Me. Na sua etiqueta de roupas, lançada em 2020, é possível encontrar regatas com a aplicação de laços, xuxinhas de cabelo gigantes, saias balonê e outras peças que conversam diretamente com o estilo pessoal da criadora. 

tendência do laço: giullia marchetti da leoni per me

Giullia Marchetti, da Leoni per me. Foto: Instagram/@giullia

“Minha mãe sempre disse que sou muito esquisita. Ela fala que, quando eu era criança, eu gostava de me vestir de menina antiga”, relembra Giullia sobre como começou a se interessar pela estética. E desde então, o visual vinha com referências urbanas, quase grunge, como uma calça jeans com aplicações de alfinetes que adorava.

“Minhas roupas causavam estranheza, e era exatamente isso que eu buscava. Algo que nem todos gostassem, mas em que me sentisse linda.” Os elementos menininha, com cara de boneca, deixaram de fazer parte do seu guarda-roupa quando a influenciadora entrou na adolescência. Aos treze e quatorze anos, ser uma garota nos moldes mais clichês não era motivo de orgulho. 

Rosa era a cor que as Meninas Malvadas usavam às quarta-feiras. Ser vaidosa e ambiciosa eram qualidades reprováveis, como prova Sharpay Evans, a vilã de High School Musical. Paris Hilton, coitada, ganhou até uma música. O nome? “Stupid Girls”, da Pink.

Feminina, eu? 

“É curioso ver este processo pelas lentes da história da moda. O início é no Renascimento. Naquele momento, os laços e outros adereços surgem sobretudo nas roupas masculinas”, explica Márcia Borges, pesquisadora de representações sociais e comportamentais da moda. 

“Quanto mais adereços houvesse na roupa, quanto mais pesada e complicada fosse, maior era o poder do seu dono. Esses elementos indicavam que existiam pessoas abaixo dele para o ajudar no ato de vestir”, complementa Márcia. Babados, laços, pedrarias e frufrus só se tornam “coisa de mulher” séculos depois, com o avanço da burguesia e, em consequência, do homem enquanto o grande provedor dos lares.

“No meio do século 19, a vestimenta do homem se torna séria, austera. Aparecem os ternos e as roupas de trabalho. Sendo assim, a demonstração de riqueza – ou a falta dela – passa a ser observada por meio das mulheres. Esposas e filhas, com seus vestidos excessivamente adornados, se tornam panfletos do poder econômico de uma família.”

tendência do laço – cena do filme adoráveis mulheres

Cena de Adoravéis Mulheres, ambientado no século 19. Foto: IMBD

Essa dinâmica será, mais tarde, responsável pela conotação negativa das roupas ou de qualquer aspecto considerado feminino: se homem – que trabalha, sustenta, domina e estipula as regras – se veste de uma maneira sóbria, todo o oposto é considerado como frivolidade. “E isso existe até hoje: para ser aceita como figura executiva, as mulheres muitas vezes são cobradas para se vestirem e se comportarem ‘como homem’. Os ombros são marcados, o cabelo encurta e por aí”, continua a pesquisadora.

Pegando carona no hit da P!nk citado há pouco: ou você quer ser uma futura presidente, ou você rebola com 50 cent. Os dois, não dá. 

Onda feminista

Felizmente, o ressurgimento do movimento feminista, a partir da década de 2010, deu a chance de mudarmos os paradigmas. A mulher agora pode ser quem quiser do jeito que quiser. Minimalista? Sim! Romântica? Também. Quer dizer, pelo menos em tese. “As pessoas ainda têm a mente um pouco fechada”, opina Giullia. “No meu Youtube e TikTok, a galera me detona”, confessa, sem perder o bom humor. 

Curiosamente, é nestas mesmas plataformas que ocorre, a cada semana, o surgimento de uma nova trend com características ultrafemininas – coquette, barbiecore, balletcore e afins. Acontece que, embora babados e laços sejam elementos tradicionais, que não fogem do conhecido, também é verdade que eles são afastados do estilo casual da brasileira.

tendência do laço: giullia marchetti da leoni per me

As produções de Giullia são motivo de polêmica nas redes sociais. Foto: Instagram/@giullia

Vestidos longos, calça jeans e blusa cropped são suas escolhas seguras. Mas furar a bolha é importante. “Se uma mulher é mais romântica no vestir, as pessoas realmente a consideram fraca, boba, sentimental. Embora suas roupas nada tenham a ver com sua competência ou força para dirigir equipes. É um preconceito estrutural”, revela Marcia Borges.

Transformar esta realidade parte de uma atitude pessoal –  da próxima vez que vir alguém vestida de boneca, já sabe: deixe o like – e social. Neste último ponto, o movimento de repetição intrínseco à moda tem lá seu valor. 

Cada temporada do prêt-à-porter é, afinal, uma reintrodução de um conceito apresentado anteriormente. De desfile em desfile, tendência em tendência, algo que era bizarro se torna banal. Ainda bem. 

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Verão 2024 da alta-costura da Chanel. Foto: Getty Images

O outro lado de um laço

Uma segunda e mais radical forma de mudar essa conversa é optar por colocar de lado a conotação simbólica e imagética do laço, para focar na sua funcionalidade. É como fazia Rei Kawakubo na sua Comme Des Garçons, uma das maiores inspirações de Marina Dalgalarrondo, designer da brasileira Ão

“Eu sou figurinista por formação, e meu trabalho na Ão surgiu de forma autodidata. Eu faço todas as modelagens e, desde sempre, uso o laço como uma solução para a união de partes. Em vez de usar a costura ou um aviamento, por exemplo, eu uno a parte de frente e de trás de uma peça por meio do laço”, explica sobre o elemento, que aparece em boa parte de seus lançamentos.

A estética romântica, que pode ser percebida num primeiro olhar, não é seu âmbito final. Mas a desconstrução dessa leitura, sim. Mas não por preconceito. Nada disso. A ideia é que, ao não fechar costuras, Marina consiga abrir diferentes diálogos com o corpo.

a tendência do laço: na ão, de marina, os laços aparecem por motivos funcionais

Ão, de Marina Dalgalarrondo, trabalha o laço de maneira funcional. Foto: Divulgação

“Todo mundo sabe amarrar e desamarrar um laço. Então é uma roupa que te provoca e que, de alguma forma, te dá um domínio sobre ela e sobre a construção dela do seu corpo. Meu objetivo é que as pessoas possam brincar com o styling, fazendo amarrações como imaginar.”

Essa distorção e customização da silhueta tradicional, aliás, é encarada com muita sensualidade pela designer. “Os laços criam frestas, deixam a pele à mostra. Ou seja, eles dão indícios de que existe um corpo ali embaixo. E, no corpo, dão outra uma característica para essa roupa que parecia amorfa e estranha. E o sexy pode ser isso, né? A estranheza te seduz, te dá curiosidade para saber mais e ir além do que você está habituado”, finaliza Marina. 

Meninininha, mulherão, sensual, esquisito ou funcional: os laços comportam todas essas e muitas outras possibilidades – e, se existe alguma unanimidade no que as mulheres querem, é isso.

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