Precisamos falar sobre moda e gênero

Ao contrário do que mostra o BBB, polêmicas de redes sociais e algumas marcas, coletivas LGBTQIA+ encabeçam boas propostas para quebrar a lógica binária.


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Há algumas semanas, Fiuk apareceu no Big Brother Brasil 2021 com um vestido de lamê prateado, da marca Jay Boggo. Até aí nada demais. Acontece que o look incomodou os colegas da casa, pincipalmente Rodolffo, que se mostrou um tanto perturbado com o paradoxo: um homem cis vestindo uma roupa, segundo o brother, de mulher. O embate entre os dois não só reacendeu as discussões sobre gênero na moda, como também serviu de trampolim para muita marca lançar supostas coleções unissex ou sem gênero.

Homens com looks “femininos” não são novidade. David Bowie e Kurt Cobain que o digam. Para não ficar no historicismo, podemos falar também do cantor Harry Styles ou do ator Bruno Gagliasso. Ambos despertaram conversas semelhantes pelo que escolheram vestir. Quando essas pessoas usam peças tradicionalmente femininas, há um rompimento da expectativa e do código social em relação aos seus corpos, o que sempre é interessante – mais ainda em uma casa assistida por milhões de brasileiros.

Porém, vale lembrar que estamos falando de homens brancos cisgênero – com ou sem vestido – e a revolução de gênero não parte deles. Talvez, o caso seja mais sobre outras formas de representação masculina do que uma ressignificação de lógica binária por meio da qual entendemos o que é roupa de homem e de mulher. Por isso mesmo, é importante discutir, de fato, o que é moda sem gênero.

Cobraxcoral no binarie.

Nahuel Vera, da Cobraxcoral.Foto: Ericsson Araújo

“Começa a haver um entendimento de que não-binaridade é um homem de saia”, diz Nahuel Vera, que colabora com a Coletiva Açu, uma plataforma de produções e artistas independentes LGBTQIA+ de Florianópolis, e responsável pela Cobraxcoral, projeto de experimentação têxtil. “Não tem como representar um corpo não-binário quando não é esse que está falando, o que gera uma caricatura da cisnormatividade”, continua.

A repercussão do caso Fiuk mostrou a ignorância, preguiça e descaso com a pluralidade de identidades. Do lado das marcas e de agitadores das redes sociais, tem ainda um certo aproveitamento de pautas sociais latentes. Entretanto, não é sobre vilanizar Fiuk, Harry Styles ou Bruno Gagliasso, muito menos colocar o foco neles.

“Eles descobriram que existem outras opções, que suas escolhas de roupa não comprometem suas masculinidades, feminilidades, que seja. Entenderam que as pessoas são pessoas, independente das roupas que usam – algo que as bichas afeminadas já têm feito há muito tempo. Eles não estão fazendo nada além de se libertarem de amarras”, opina A TRANSÄLIEN, artista multimídia, produtora cultural e idealizadora da Coletividade MARSHA!.

 

TRANS\u00c4LIEN.

TRANSÄLIEN.Foto: Danilo Sorrino

 

Kadela.

A modelo Alma Flora posa em editorial da Kadela.Foto: Xãtana Xãtara

Tudo é performance e quem se mostra, seja no BBB, em uma conversa com amigos ou nas redes sociais, pensa, hora ou outra, no que quer comunicar. Maquiavelicamente ou alinhados com verdades internas, homens cis e héteros que usam saias, vestidos, calcinhas, não são impassíveis de assumir uma função educativa para com os seus próximos. Além de viver menos sob o estigma nocivo da masculinidade e de não violentar todes ao redor.

Ainda assim, não são símbolos de representatividade não-binária, trans ou agênero. “Acho que cheguei em um momento que eu realmente não me importo com o que as pessoas vestem. Porém, podemos puxar uma discussão se esses homens só usam saia ou estão realmente contribuindo para o fim do machismo, misoginia, transfobia e homofobia”, pontua Carole, estilista da Kadela, marca focada na retomada das produções de ancestralidade em contexto urbano. “A saia usada por um homem hetéro, cisgênero e branco é como uma capa de invisibilidade, que cobre os seus comportamentos”, diz.

Do lado de cá

 

Vou Assim.

Jhonatan Bào, do Ateliê Vou Assim.Foto João Vicente

“Vejo muita marca querer falar disso sem convidar quem tem propriedade de vivência”, fala Pimentel, idealizadora do ateliê Vou Assim, iniciativa focada na empregabilidade e capacitação de pessoas LGBTQIA+ com moda e arte. “Por isso, nos articulamos do lado de cá para não depender de empresas para produzir.”

A coletiva estreou na última edição da Casa de Criadores, em novembro de 2020, e está situada no Jardim Brasil, na periferia de São Paulo. “A gente questiona a materialidade do gênero na roupa e se isso é possível mesmo. No fim, é só sobre um pedaço de tecido? Na Vou Assim não vivemos apenas de costura, máquina e pano, mas de muita discussão”, conta.

A subversão das formas e funções é uma maneira de criar propostas que rompem com a binaridade. É um processo no qual Vicenta Perrotta se destaca, segundo Pimentel. “Quando Vicenta pega duas peças, mistura e deixa os buracos de golas e mangas na cabeça, uma nova identidade é criada. Não é sobre querer vestir roupa feminina, mas a minha roupa.”

 

Vicenta Perrotta.

Vicenta Perrotta.Foto: Vincent Catalla

É estilhaçar forma e função. Quem tem pênis e vagina não é apenas homem ou mulher. Assim como manga não serve só para cobrir o braço. As abordagens são diversas, não tem caderno de receita e vão além das peças minimalistas ou oversized em preto, cinza e branco.

Vicenta é artista, fundadora e estilista da VP e criadora do Ateliê TRANSmoras. Segundo ela, por mais que uma trans tenha demarcações tipicamente associadas com um gênero binário – por exemplo, uma travesti que coloca prótese nos seios -, a concepção de uma peça para o seu corpo não segue a lógica cis. “Quando uma travesti faz uma roupa ou uma trans produz uma foto, elas estabelecem uma linguagem diferente”, explica.

Existe o entendimento de que gênero só existe em relação ao contexto inserido e ao corpo vestido. Daí o problema em unicamente cobri-lo quando se fala em moda agênero ou unissex, estratégia bastante comum no mercado. “Antes da transição, sempre me vesti bem bicha e transviade. Tinha a coisa de pegar uma roupa tida como padrão para colocar por cima antes de chegar em algum lugar, para, assim, fugir da perseguição”, conta Duduzzone, artista independente, membra das coletivas Transcorre, Trans Y Pets e colaboradora da Açu (todas de Florianópolis).

“Com isso, comecei a ver que roupas ditas masculinas me causavam conforto também. Em alguns momentos, a gente precisa vestir o que é entendido pela cisgeneridade, o que é bem doloroso, até que entendemos que pode ter conforto e acolhimento, principalmente quando nos inserimos nos debates”, explica.

 

Duduzzone.

Duduzzone.Foto: Aline Rosa

Não se trata de conformismo com a normatividade cisgênera. Mas de entender como subvertê-la e ressignificar seus códigos para vivências, personalidades e identidades específicas. E por conta própria, por enquanto.

“No shopping (online ou presencial) só tem roupa cis. Se você é travesti, você não tem trabalho, não paga nem imposto”, afirma Vicenta. “É tudo sobre forma, função e processos industriais. Para que eu vou me utilizar dessas plataformas? Eu estou falando de desfuncionalização”, explica. Com o Ateliê TRANSmoras, uma ocupação de produção artística, resistência e cultura transvestigênere, na moradia da Unicamp, a artista se debruça sobre a formação de multiplicadoras. O objetivo é passar conhecimento e construir negócios.

“Parece que não tem referência, a única é a Vicenta. Óbvio, não sou só eu, mas sei que sou para muita mana fazendo roupa. Ainda assim, olha o que está acontecendo: todo mundo morrendo de COVID-19, um golpe em curso, e a gente falando de dois machos brigando”, desabafa. “Um homem se utilizou da misoginia para diminuir outro ao compará-lo à uma mulher. Estamos cansadas e, por isso, construímos as nossas próprias plataformas, meios de comunicação e referências”, finaliza.

Coletivas

O corporativismo e a cisgeneridade, principalmente associadas, não têm apresentado propostas interessantes de representação não-binária. Marcas com áreas de branding bem estruturadas, com uma ampla rede de pontos de venda ou, então, pequenas e médias empresas majoritariamente cis, ainda têm dificuldade em contratar pessoas LGBTQIA+ – com destaque para o T, de transgênero, transexual e travesti.

Apesar do sucesso de plataformas como a Transempregos, que trabalha com a inserção no mercado de trabalho formal e que cresceu 315% entre 2020 e 2021 (com parceria com 715 empresas), pessoas transgêneras, transexuais e travestis seguem marginalizadas. De acordo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população trans tem a prostituição como principal fonte de renda.

É estabelecido um estranho movimento de rompimento de gênero que não emprega e dá meios de sobrevivência para as pessoas que, de fato, não vivem na lógica binária. “As pessoas trans são contratadas apenas no dia da visibilidade trans, ou na parada LGBTQIA+. Aí fica todo mundo se matando por uma vaga”, diz Pimentel.

 

Giba Duarte e Iam Campigotto.

Giba Duarte e Iam Campigotto da Coletiva Açu.Foto Cortesia

O cenário sempre foi desfavorável para as coletivas e, com o início da pandemia, tudo indicava que se tornasse ainda pior. Mas foi o contrário. Vou Assim, Açu, Ateliê TRANSmoras, MARSHA! e outras ganharam força pelo desespero. Muitas se estruturaram jurídica e administrativamente, com um número crescente de colaboradoras que produz e, na partilha, consegue se sustentar emocional e financeiramente. São desses espaços que surgem experimentações têxteis que transmutam.

Para as grandes marcas interessadas, convidar coletivas para participar horizontalmente da construção das coleções (e dar crédito e remuneração), além de fazer contratações para todos os níveis, é o primeiro passo para trabalhar com a reformulação de gênero. “A passagem do portal do individualismo, que poucas pessoas fazem, por meio da convivência coletiva, é muito potente. Conversar sobre as crianças viadas, sobre nossas vivências, para depois pensar em um produto, em uma vestimenta”, comenta Giba Duarte, artista visual, co-fundador e colaborador da Coletiva Açu. Nas suas próprias palavras, “uma bicha cis que tenta passar por este portal”.

Vai além de bookar uma modelo não-binária. O Brasil é o país que mais mata trans e o que mais consome pornografia com essas pessoas. Visibilidade sem segurança é exposição perigosa. “É muito mais sobre fortalecimento financeiro e educacional. Tive acesso à educação, porque fiquei quietinha no colegial, sabia que não queria transicionar naquela época. As escolas entendem que há um movimento de evasão, quando, na verdade, as trans acabam sendo expulsas desses espaços e de casa”, finaliza Pimentel.

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