Schiaparelli, Dior e Mishra fazem da alta-costura um jardim exuberante
Paris dá pontapé em semana de desfiles e reafirma pilares de seus ateliês; grifes alteram formas do corpo e convertem natureza em moda.
Para que serve a alta-costura? A pergunta costuma martelar a cabeça de quem acompanha o calendário de desfiles saturado de coleções apresentadas em intervalos de poucos meses. A temporada de cruise mal terminou e a indústria já chegou a Paris nesta segunda-feira (04.07), pronta para o primeiro dia de desfiles desta semana que, já deu para entender, quer ser muito mais do que uma plataforma de moda festa.
Schiaparelli, Iris Van Herpen, Christian Dior, Rahul Mishra e Giambattista Valli provaram hoje na prática que a alta-costura é muito mais um exercício de possibilidades, além da amplificação do trabalho de um estilista para ele atingir uma excelência criativa que o prêt-à-porter nunca poderia reproduzir, devido, claro, à limitação de técnicas e cifras envolvidas na confecção das peças.
Caiu como uma luva, então, a escalação do estilista Daniel Roseberry para abrir os trabalhos. Diretor criativo responsável pela renovação da grife fundada por Elsa Schiaparelli, ele apresentou uma coleção que privilegia o corpo feminino e o molda como um jardim regado a emoções. As curvas do corpo, as ligações das veias com o coração e até mesmo o ventre foram elementos explorados nas propostas essencialmente técnicas.
SchiaparelliFoto: Victor Virgile/Gamma-Rapho via Getty Images
O designer aproveitou cada linha sinuosa do corpo para “plantar” galhos dourados que extrapolam o corpo, construir esculturas pelo torso e tornar a pele um terreno fértil para a beleza. Os acessórios dourados, uma marca de seu trabalho na grife, foram maximizados, a exemplo dos brincos em formato de cacho de uvas que se estendem pelo colo.
Apoiado nas ilusões que fizeram Schiaparelli um ícone do surrealismo em sua área – a invenção do trompe l’oeil, por exemplo, é creditado a ela –, Roseberry criou tecidos com pérolas e estruturas inteiras de brocados. Mas, de forma harmônica, ele conduziu suas ideias em um misto de pesos e volumes, como quando decidiu abrir uma flor enorme no decote de um look preto e branco, mas silencia a parte de baixo com uma alfaiataria rígida.
Iris Van HerpenFoto: Thierry Chesnot/Getty Images
As flores e o universo natural foram elementos decisivos para este primeiro dia de desfiles, talvez porque ambos tratam tanto da conexão com o que há de mais sagrado no mundo – a natureza – quanto a relação íntima que temos com o ambiente ao nosso redor. Iris Van Herpen não poderia estar mais conectada com esse sentimento ao comemorar na passarela os 15 de anos de sua marca, focada em estudos exaustivos sobre a matéria-prima natural e a engenharia a serviço da roupa.
Batizado de “Meta Morfismo”, o desfile se baseou no poema Metamorfoses, de Magnus Opus de Ovídio, para equacionar a busca por uma nova essência, que ela chamou de pós-humanidade. Personagens da mitologia, os deuses Daphne e Apolo foram transportados para a passarela por meio da visão do escultor Gian Lorenzo Berrini, que esculpiu a ambos no século 15 para traduzir a metamorfose descrita no poema de Ovídio.
Herpen também trouxe tridimensionalidade às roupas, como na parceria com os artistas holandeses Eric Klarenbeek e Maartje Dros, que a ajudaram na concepção de um macacão feito de grãos de cacau processados e convertidos em filamento para a base cortada.
A estilista ainda desafiou o olhar com propostas feitas em fibras vegetais retiradas de folhas de bananas unidas à seda pura, criando formas que recobrem o corpo nessa realidade desconectada das convenções sobre o que seria a costura do futuro. O futurismo de Herpen não é idealizado a partir do entendimento da cultura pop no século 20.
Seu futuro está mais conectado às possibilidades de transformar os tecidos em fibras que abraçam o corpo, dançam com ele e formam novas estruturas, com uma série de metalizados e silhuetas em A, prensadas em altas temperaturas para ganhar novo formato, algo próximo do que fez Issey Miyake ao criar o pleats please.
Christian DiorFoto: Divulgação
Execução e esmero na escolha de cada detalhe são os pilares da alta-costura, e, por isso, Maria Grazia Chiuri não poupou esforços para transformar o desfile da Christian Dior numa celebração ao trabalho manual dos ateliês da grife. Ao convidar a artista ucraniana Olesia Trofymenko para criar telas baseadas no conceito de “árvore da vida”, as roupas carregam a poesia de suas flores – elas, mais uma vez – inspiradas no folclore de uma Ucrânia que hoje vive os horrores da guerra.
Bordadas em vestidos aparentemente simples, as flores e os ramos se enervaram pelo corpo em fios de algodão, de seda e metálicos, compondo uma sinfonia manual que define o que entendemos por couture, ou seja, a mão do homem em estado de graça. A jaqueta bar surgiu reformulada em formas típicas da indumentária de festa do país de Trofymenko e as saias mídi foram compostas por fitas que conferem profundidade ao look.
Se à primeira vista tudo parece fácil demais, de perto, as roupas revelam como cada botão de rosa foi costurado tal qual os desenhos, como a renda guipure é extensão dos tecidos mais leves e as capas são cortadas com precisão matemática no corpo, quase como um moulage.
Exploradora da produção manual de diversas partes do mundo, Chiuri escalou um ateliê indiano para ajudar na confecção do que chamou de “árvore da vida”, uma referência aos temas de Olesia Trofymenko e cujo conceito dialoga com esse momento de conflito armado no país da artista.
A Índia, um dos países mais importantes para a produção de bordados e técnicas de alta-costura, ganhou uma vitrine lustrosa neste primeiro dia de temporada. Primeiro indiano a ser convidado pela Federação de Alta-Costura e Moda da França para apresentar suas criações no evento, Rahul Mishra levou a mesma ideia de “árvore da vida” à passarela.
Rahul MishraFoto: Kay-Paris Fernandes/Getty Images
No caso dele, o conceito foi explorado de forma mais literal, com verdadeiras intervenções de folhas douradas convertidas em vestidos longos brilhantes. A técnica de bordar o metal que é própria de seu país e foi apropriada pela costura francesa ao longo das décadas foi usada exaustivamente em todo tipo de peça, de calças a blusas, de saias a tops transparentes.
Como se rememorasse as passarelas de Christian Lacroix, Mishra colou pétalas coloridas nos looks metalizados, ampliou os volumes e construiu seu próprio jardim de referências à costura europeia.
Quem esperava algo fora das linhas pode ter se decepcionado, mas, no fim das contas, o que parecia importar ali era o uso de um traço cultural por quem, de fato, o detém e por muitos anos foi relegado ao chão de fábrica das casas de moda.
O tom de festa seguiu até o último desfile do dia, quando Giambattista Valli encheu de balões o desfile que comemorou os dez anos de sua entrada na federação francesa. Como se quisesse repartir o bolo para todos os presentes, maximizou ainda mais os volumes das saias e abusou do tule nos vestidos pomposos de sua coleção.
Giambattista ValliFoto: Estrop/Getty Images
Ele apostou em todas as técnicas disponíveis, da aplicação de brocados que formam linhas pelo torso até a camisaria combinada ao look de festa. Plumas dispostas pelos braços combinadas a silhuetas plissadas conferiam o toque flamboyant comum à tesoura de Valli, que é entusiasta das formas clássicas.
Os looks, porém, não ofuscam os olhos, porque foram tingidos de tons pastel e usam pontualmente as bases metálicas, uma obsessão dos estilistas nas temporadas de couture.
Ufanista, Paris deu o pontapé em sua primeira temporada de alta-costura totalmente presencial depois da pandemia colocando na mesa o que de melhor pode oferecer para quem se encanta – e pode pagar – por uma lasca dos sonhos mais exuberantes da moda.
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