Sobre lembrar, ser, resistir e transformar

Os estilistas da Dendezeiro e os cantores da banda Afrocidade discutem o que há por trás da coleção-cápsula feita em parceria entre duas potências da Bahia.


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Hisan Silva e Pedro Batalha, da Dendezeiro, conheceram os integrantes da banda Afrocidade em outubro do ano passado. Quer dizer, conheceram pessoalmente (e seguindo todos protocolos sanitários), já que de ouvido esse encontro já rola há algum tempo. Era a edição virtual do festival Afropunk e a dupla de estilistas de Salvador ficou encarregada de produzir o figurino dos participantes do evento. “Mas foi tudo muito corrido”, diz Hisan. Não houve tempo para o aprofundamento desejado na estética e estilo de cada artista. Tanto que, quando chegou a hora de vestir os integrantes da banda de pagode baiano, tiveram de refazer todos os looks com o que tinham em mãos ali mesmo, no calor do momento. “A gente chegou com uma ideia pronta e cada pessoa tinha uma singularidade muito específica, com várias referências de estilos”, comenta Hisan.

Apesar da pressa, o processo foi inspirador. O duo, aliás, ficou um bom tempo pensando em como trabalhar junto à banda no futuro. Até que, do nada, chegou uma mensagem do empresário deles. Era sobre uma possível colaboração, inicialmente só de blusas. “Acontece que blusa não é muito o que a gente vende na Dendezeiro, então disse que ia pensar e responderia depois”, relembra Hisan. Demorou quase um mês para a tal resposta. No meio tempo, foram feitos alguns estudos sobre a maneira como cada membro do Afrocidade se vestia, se portava, como eram os shows e, mais ainda, quem os assistia e como reagiam a eles. “Fiz uns esboços, mandei e começamos a conversar”, fala Hisan. A conversa, no caso, rendeu uma coleção-cápsula, lançada este mês, e que materializa intersecções culturais das mais diversas.


Em uma conversa por Zoom, Hisan, Pedro e os cantores do Afrocidade, Fernanda Maia e José Macedo, comentam mais sobre a parceria, suas trocas, música, moda, cultura e ancestralidade.

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Fernanda Maia: Eu já conhecia o trabalho dos meninos, mas não consumia. Confesso que fiquei muito surpreendida. Nós somos bem diferentes uns dos outros. Somos muitos na banda, cada um tem seu próprio estilo, seu modo de vestir. Hisan e Pedro conseguiram reproduzir nossas personalidade perfeitamente e fazer com que nos sentíssemos muito confortáveis com o que foi construído. E é importante enfatizar que se trata de uma marca daqui [de Salvador]. Geralmente essas colaborações acontecem com marcas de outros lugares. Nós conseguimos trabalhar com alguém que sabe e entende nossas labutas, que passam pelos mesmos problemas.

José Macedo: É legal pensar na desconstrução dos estereótipos. Da Dendezeiro mesmo. A gente logo pensa nessa coisa mais tropical, cores quentes, até pela representatividade do dendê como fruta e como parte da cultura afro-brasileira, afro-baiana. Eu, por exemplo, sou skatista, tenho uma pegada mais urbana. Nunca achei que esse estilo tivesse conexão comigo. Por conta do skate, minhas referências vêm muito dos Estados Unidos, da cultura afro-estadunidense, das ruas, da parada gangster. Mesmo assim, consegui me sentir contemplado na collab, porque teve pesquisa, conexão e troca. A moda e a arte urbana são assim, se espalham e servem como ferramentas de comunicação e identificação.

Pedro Batalha: Para muita gente, a relação entre música e moda se resume ao figurino, ao show. Ao criar uma coleção inspirada num estilo musical, conseguimos ultrapassar essas fronteiras, pensar nos estilos do pagode baiano para além dos palcos. Quando a gente pesquisou como cada membro da banda se veste, pudemos trazer outras perspectivas que não tem a ver só com a performance, mas com algo que o público se identifica. É sobre como essas pessoas se vestem, como se sentem representadas por aquela musicalidade. E aí, tem essa mistura de referências afro-americanas com o que é originário daqui, de Salvador, da Bahia, do Brasil.

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José Macedo: O vestir é algo que nos conecta. A cultura afro-estadunidense, por exemplo, foi muito importante para a cultura afro-brasileira. Lembro de uma época em que Ed City se vestia como os rappers gringos, porque ele fazia essa conexão do pagode, do groove arrastado com o reggae. É como se as ruas se conectassem. A rua de Salvador com a rua de Nova York com a rua de Lagos. É a linguagem da diáspora. É a África de vários lugares do mundo em conexão. Penso muito na questão tropical, por exemplo. Se você juntar os continentes, voltar para a Pangeia, vai ver que tudo vem do mesmo lugar, é a mesma linha. E isso tem a ver com a colonização e com as rotas de escravidão. A forma como a gente se expressa, nossas cores, é muito parecida com a de países como Nigéria, Cabo Verde, Angola e Senegal. E isso não é à toa.

Hisan Silva: O clima tropical é uma grande influência na construção do que a gente faz e acho que é também dentro da própria musicalidade que sai daqui. Sempre existiu a questão sobre como o pagodeiro se veste, o que determinada pessoa que gosta de tal ritmo usa. Um ponto importante nesse trabalho é a consideração da história, do espaço e da origem das roupas. Isso aparece na construção, nas cores, e dá liberdade para quem as vestir se sentir confortável sendo quem é. Como a Fernanda disse, essas colaborações sempre acontecem com marcas de fora. É aquela ideia de se fortalecer ou se validar por meio da aprovação das redes de outros lugares. Acontece que isso enfraquece nossas próprias redes. Tivemos um retorno muito positivo com pessoas dizendo como é legal ver duas potências da Bahia trabalhando juntas e fortalecendo o rolê com uma roupa que faz sentido para quem é daqui.

José Macedo: Durante muito tempo, a indústria do axé music se apropriou da nossa criação e isso foi um fator gigantesco no apagamento cultural da nossa musicalidade, a percussiva principalmente. Não tenho muita propriedade para dizer como foi na moda, mas imagino ser igual. Blocos como Ilê Aiyê e Olodum tinham conexões muito fortes com as roupas. Elas eram produzidas por eles mesmos para suas comunidades, sempre em referência à cultura africana. Quando a indústria do axé music se apropria da nossa origem, enfraquece a comunidade preta em vários níveis: empoderamento, representatividade e empreendedorismo. Quando os artistas começam a usar marcas que são caras demais para a periferia, o jovem negro não se vê mais representado. Ele vai para um circuito como Barra-Ondina e se sente excluído. Isso mexe com aceitação e pertencimento. Para poder estar ali, é preciso ter tal marca, tal comportamento. Automaticamente, o negócio do empreendedor preto é prejudicado. E isso só gera mais marginalização. Vejo essa ação com a Dendezeiro como algo muito revolucionário. Estamos fazendo um resgate histórico com um empreendimento de pessoas pretas, com artistas pretos e público preto.

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Hisan Silva: Durante muito tempo, a Bahia foi lembrada pelo axé music, porque a elite não conseguiu construir outra coisa para preencher esse espaço. Só agora, o pagodão começou a ocupar esse lugar. Mas agora, com todos os acessos, redes sociais e internet, temos como assumir nosso protagonismo. A pergunta é até quando vão nos permitir esse papel? Meu avô fazia músicas do Ilê. Várias conhecidas foi ele quem compôs. Mas sua face não está em nada, ele não ganhou o dinheiro que deveria. Ele sempre foi um cara muito apaixonado pela música e, depois de algum tempo, se aposentou porque não queria mais compactuar com o funcionamento daquele mercado. Ainda que eu trabalhe em outra indústria criativa, muito do que ele vivenciou me ajudou a me colocar como protagonista do meu trabalho.

Fernanda Maia: Esse momento digital que estamos vivendo foi um divisor de águas. Que bom que a gente conseguiu compreender isso. Hoje, com um celular na mão você constrói uma peça, uma música e coloca isso para o mundo. Além da tecnologia, a troca, os acessos ajudam a gente a não cair na cilada que a geração do axé music caiu: se tornar dependente das coisas de lá do sudeste. Dá para inverter a lógica. Os holofotes estão voltados para cá, mas, como Hisan disse, não sabemos até quando. Com o axé music foi a mesma coisa: não souberam fazer bom uso dessa luz e ela se apagou. Dentre 30 artistas, apenas uns dois ou três conseguiram chegar lá.

José Macedo: A internet foi muito positiva para nos ajudar a identificar traços e elementos comuns à nossa cultura. Por exemplo, a música norte-americana sempre nos foi imposta como um padrão. Essa influência nos permitiu fazer a conexão entre dois mundos separados por anos de imperialismo e colonização particulares. Lá em cima, os tambores foram demonizados de uma forma diferente da daqui. Nossos irmãos foram para dentro das igrejas, caminharam no território do inimigo para explorar o canto lírico até que os tambores surgiram por meios digitais, séculos depois, com o hip hop. Aqui não. Aqui a gente sempre teve acesso ao tambor. Existiu um processo de sincretismo religioso que nos permitiu resistir com eles. Ao longo, dos anos, aprendemos a incorporar os mais diversos estilos a eles. Os tambores são o nosso movimento, nossa comunicação. Durante muito tempo, tivemos acesso às informações por meio de uma indústria que opera de forma piramidal, de cima para baixo. Hoje, a internet começa a mudar essa relação e ainda reforça reconhecimentos históricos.

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Hisan Silva: E isso vale para moda também. As roupas do Ilê Aiyê, para mim, sempre foram alta-moda. Ninguém consegue fazer igual. Não tem como entrar dentro das cabeças que estão construindo aquela identidade com tanta propriedade. São elas que conhecem as formas, as estruturas, as minúcias, os desenhos. São referências de muito tempo, é uma história muito antiga. É legal ver como os novos criadores se comportam diante disso. Somos novos, a nova safra, mas somos filhos e filhas de um processo enorme. Trazemos nossa visão, nossas referências, mas existe uma história antes da gente. Vai do Ilê, dos abadás até Isaac Silva. Tem uma parada que acho incrível nele que são as referências às vestimentas do Candomblé. Aquelas roupas são moda também, as maquetes têxteis, as técnicas de costuras, as cores. É massa ver essas referências na roupa de Isaac. Isso é forte pra caramba. É sobre herança, sobre histórias, sobre vivências, sobre pessoas.

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