Vivienne Westwood contra o sistema
Como as propostas de pensamento radical da grande estilista britânica vão muito além do punk e batem de frente com uma lógica de mercado cada vez menos autêntica e humana.
Era janeiro de 2008, e enquanto esperava por Vivienne Westwood em uma suíte do Hotel Emiliano, em São Paulo, ouvia tudo que eu não podia abordar e perguntar para a estilista. Ela estava no Brasil para o lançamento de uma de suas parcerias com a marca de calçados Melissa e para a leitura de seu manifesto Resistência Ativa à Propaganda, durante evento na São Paulo Fashion Week.
Era minha primeira entrevista com um grande nome da moda, e minha tensão só piorava com o caos e nervosismo de sua equipe. É que tudo mudou de uma hora pra outra. Originalmente, Vivienne Westwood se hospedaria no Hotel Unique, mas ao descer do carro, ficou horrorizada com a fachada do prédio Ruy Ohtake e se recusou a colocar os pés lá dentro. As entrevistas anteriores, pelo que diziam, também não ajudaram, deixando a estilista um tanto irritada.
Quando ela apareceu naquela sala decorada toda em tons de bege, não parecia nada disso. O que a incomodou mesmo foi a fiscalização do time de relações públicas e comunicação. A cada pergunta, Vivienne começava a falar e parava para olhar o sofá onde as assessoras se debruçavam para ouvir a conversa. Até que não aguentou mais: “Vocês não querem ir tomar uma água, dar uma volta no corredor?”. Depois disso, não teve assunto ou pergunta proibida.
Vivienne Westwood morreu ontem (29.12), aos 81 anos, em sua casa, no sul de Londres. Era de se esperar que sua história ficasse marcada pela sua contribuição com a popularização do estilo punk. E é verdade, ao lado do ex-marido Malcom McLaren, a estilista, professora, joalheira treinada e ativista mudou a maneira como muita gente se vestia e se comunicava por meio das roupas. Porém, não é exatamente o punk que define sua visão criativa. Na verdade, o punk é só uma das muitas manifestações de pensamento radical e críticas à civilização moderna que permeiam seu trabalho e vida.
Segundo o historiador Jon Savage, o repertório da britânica é essencialmente “uma reação a qualquer coisa ortodoxa”. Vivian Whiteman também escreveu lindamente sobre como a recusa à conformidade de como muitas coisas nos são dadas – impostas, na real – foi traduzida em roupas. Roupas rasgadas, carregadas de referências históricas, com proporções exageradas ou diminutas, caindo do corpo ou o definido num eterno questionamento e desafio libertário das definições de gênero, sexualidade, classe, etiqueta e padrões de todos os tipos.
Já o caso da revolta contra as assessoras, com o perdão do exagero, me lembrou de outras formas de irreverência e inquietude de Westwood. Umas mais ligadas às engrenagens e sistemas de funcionamento da moda nos bastidores. A começar pela a própria existência feminina da designer. Uma melhor em meio a tantos homens em posição de comando. Até hoje, são poucas as marcas e empresas da área que contam com mulheres em cargos alto e com poder de decisão.
Não que Vivienne tenha trabalhado só com mulheres. Seus principais colaboradores e parceiros eram homens: Malcom McLaren, a Carlo D’Amario (executivo italiano do ramo têxtil o que ajudou a financiar a marca da estilista após o fim da sociedade com o ex-marido), Andreas Kronthaler (parceiro na vida e nos negócios e diretor criativo da etiqueta). Ainda assim, a palavra final, era e sempre foi sua.
Em um post no Instagram, a modelo, musa e amiga Naomi Campbell fala sobre isso: “Sua força era admirável em um negócio dominado por homens. Você era uma força da natureza, que sempre me encorajou a seguir em frente e não desistir das coisas pelas quais sou apaixonada para além de modelar”.
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Paixão é uma palavra importante nessa história. Amor também. E não só o romântico, como aquele que resultou no casamento com um aluno austríaco 25 anos mais novo do que ela – Andreas Kronthaler –, mas nos vários sentidos da palavra. A maneira como releia e interpretava a história, as tantas outras que desenhava como alternativas para a realidade desajustada, a presença do sexo, a subversão dos conceitos e princípios da monarquia, da religião, da construção social…
O amor, segundo Vivienne Westwood, caminhava sem medo pelas suas manifestações, das mais autossatisfatórias até as quase altruístas. A devoção e resistência em não resistir a certos desejos talvez seja uma das principais contribuições da estilista. No fim, a liberdade que tanto pregava era essencialmente sobre isso.
Andreas Kronthaler e Vivienne Westwood. Foto: Getty Images
Mais ainda num mundo e negócio cada vez mais regido por números, lucros em detrimento do valor humano e da criação em sua forma mais autêntica. Westwood nunca deitou nesse sentido. “Eu tenho minha própria empresa, então nunca tive um executivo me dizendo o que fazer ou se preocupando com algo que não vende”, disse em entrevista ao jornal The Times, em 2009.
De fato, sua marca poderia ter vendido muito mais se sua postura fosse outra, se seus questionamentos não incomodassem tanto ou não tocassem em feridas nunca fechadas e que poucos querem tratar. Ainda assim, em 1989, seu nome constava entre o dos seis estilistas de onde derivava toda moda da época, segundo o, então, editor do Women’s Wear Daily, John Fairchild, no livro Chic savages. Ou seja, a britânica se tornou uma das criadoras mais influentes e referenciadas em tempo recorde.
No entanto, os sucessos comerciais foram consideravelmente menores de cases de sucessos contemporâneos. Sim, teve a obsessão pelas plataformas em meados da década de 1990, a redescoberta de suas botas de piradas na virada do milênio, o boom de seus vestidos de noiva nas primeiras décadas dos anos 2000 e a recente redescoberta de seus corsets e blusas renascentistas e dos colares de pérolas pela geração Z. Numericamente, porém, a expressão era outra. “Embora tenha sido constantemente a primeira a apresentar novos looks, Vivienne sempre falhou em capitalizar sua liderança na moda”, escreveu Jane Mulvagh na biografia Vivienne Westwood: an unfashionable life, publicada originalmente em 1998.
Não sei se falhou é palavra ideal, até porque para falhar é preciso ter alguma intenção, um objetivo. E é difícil acreditar que Westwood tinha como estratégia vender sua marca para um grande grupo ou passar o comando para algum investidor. O que não quer dizer que ela não se importava com o sucesso comercial da empresa. Talvez só tenha entendido o que realmente estava em jogo nesse esquema de negócio que se tornava cada vez mais popular a partir de meados dos anos 1990.
É um pouco do que falamos nessa matéria e também um dos assuntos centrais do documentário Reino dos sonhos, disponível na HBO Max. De forma bem resumida, como a ganância e obsessão por lucro a qualquer custo, eliminou o fator humano e criativo da moda. Mais do que isso, porém, Vivienne Westwood percebeu que não eram só as roupas que perderiam relevância, mas suas próprias ideias. E isso, como a própria estilista escreveu em suas memórias, é mais importante do que a moda.
“Já me senti muito rebelde, mas agora percebo que isso não faz sentido. A guerrilha urbana era essencialmente o que buscávamos, mas não acredito que haja uma cruzada a ser travada por meio de roupas. Você acaba se tornando o rebelde simbólico, aquele que convence a todos de que estão vivendo em uma sociedade livre. A sociedade tolera seus rebeldes porque os absorve em sua lógica de consumo. Você se torna parte do marketing. Tudo vem com uma etiqueta”, disse em entrevista ao jornal The New York Times.
Muito provavelmente por isso, Vivienne Westwood se mostrava cada vez menos interessada em moda. Questões ambientais, políticas e sociais pareciam estar no centro das suas atenções, ainda que nem sempre traduzidas ou expressadas de forma tão convincente quanto as ideias irrefutáveis que emanavam de suas roupas. Ainda assim, eram desejos sinceros. Como escreveu Naomi, de novo ela, “sua honestidade era para ser valorizada, quer gostássemos de ouvir ou não, você falou sua verdade, real e autêntica”. Inspiração e influência, pelo menos para mim, vem disso aí, não de números.
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