Clodovil do avesso: o menino que desenhava

No primeiro episódio do novo podcast produzido pela ELLE Brasil, mergulhamos na infância do garoto que viria a ser um dos costureiros mais famosos do Brasil.


clodovil do avesso podcast
Arte: Gustavo Balducci



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Se preferir, você também pode ler este podcast:

É um garoto bem magrinho, moreno, aparentando 7 anos de idade. Ele veste camisa branca de manga curta, bermuda com cinto, sapato de amarrar e meias brancas – o típico uniforme daquela época em que o ensino fundamental era chamado de grupo escolar. O cabelo, repartido de lado e cortado bem rente nas laterais, deixa as orelhas mais proeminentes. O menino encara a câmera com olhar muito sério, com uns dos braços dobrados e a mão sobre a barriga.

Do lado direito, com uma mão sobre o ombro do garoto, está uma mulher de pele bem branca, cabelos ondulados na altura do queixo e vestido escuro. Do outro lado está um homem de cabelo engomado puxado pra trás, bigodinho fino, terno, gravata e lenço na lapela.

A foto, em preto e branco, é uma das raríssimas imagens de Clodovil na infância, com os pais, e foi tirada em frente ao armazém da família, no interior de São Paulo, na década de 40. 

clodovil com os pais

Clodovil com os pais, na década de 1940. Foto: Reprodução do livro Floresta Floreal – a história do nascer e do crescer de uma cidade

Eu sou Patricia Oyama.

Eu sou Gabriel Monteiro.

E este é o primeiro episódio de Clodovil do avesso, o podcast da ELLE Brasil, que vai contar a história de Clodovil Hernandes, um dos pioneiros da moda brasileira, que se tornou um dos apresentadores mais conhecidos do país, foi demitido de todas as emissoras de TV em que trabalhou, deu a volta por cima ao 69 anos, ao ser eleito deputado federal com quase 500 mil votos, e até hoje, 15 anos depois de sua morte, é relembrado por suas polêmicas e aparece em incontáveis memes nas redes sociais. Nessa série, você vai conhecer toda a trajetória de Clodovil, da infância no interior de São Paulo aos últimos dias de vida em Brasília.

“No sábado, era só bordado. Então, nós juntava, aquela trinca de menina, cada uma com seu bordado. Só tinha um menino que não saía do meio de nós, que era um tal de Clodovil.”

Essa é Alzira Basseto Marques. Com 88 anos, dona Alzira tem uma memória bem melhor que a minha e lembra com detalhes de episódios da infância em Floreal e daquele garoto, que desde pequeno gostava de desenhar, de bordar e mostrava ter uma personalidade muito própria.

O Clodovil, ele era uma graça, viu? Ele nunca tava em roda de homem, de mocinho. Ele tinha amizade, sim. O povo da nossa classe, que a nossa classe, era uma classe mista. Metade era menino, metade menina. Então, ele convivia tanto com nós, a nossa meninada, a nossa amiga, mocinha, como os mocinhos. Os mocinhos eram separados de nós, eles trabalhavam com barbante, faziam cintas pra homem, com madeira, eles faziam várias coisas. E ele, não, ele bordava aquelas colchas lindas pra mãe dele. Ele fazia crochê.

Clodovil Hernandes nasceu em Elisiário, no interior do Estado de São Paulo, em 1937, quando o mundo vivia o período Entreguerras e a Europa assistia ao surgimento do nazifascismo, com Hitler e Mussolini arrastando multidões pras ruas.

No Brasil, os ventos ditatoriais também sopravam forte. No ano de nascimento de Clodovil, Getúlio Vargas daria o golpe que suspendeu a Constituição em vigor e instaurou o Estado Novo no país. Qualquer tentativa de oposição poderia resultar em perseguição e prisão, na carona do anticomunismo, que estava a todo vapor.

A imagem passada pra o população, no entanto, era a de um Brasil em pleno crescimento, capitaneado pelo presidente Vargas. Ou, como se propagava naquela época, o pai dos pobres. 

Ainda bebê, Clodovil foi morar em Catanduva e, por volta dos 3 anos de idade, se mudou com a família pra Floreal. Foi lá que seu pai, o imigrante espanhol Domingos Hernandes, abriu um armazém de secos e molhados. Em uma entrevista à revista Realidade, nos anos 70, Clodovil descreveu a loja da família. E a gente vai pedir pro Pedro Camargo, nosso editor de beleza, ler esse trecho pra gente. Aliás, sempre que houver uma declaração do Clodovil que não tem o áudio do próprio, é o Pedro que vai dar voz a ele neste podcast.

“Sete portas abrindo sobre a calçada, que guardavam bacalhau, sacarias, tecidos baratos, coisas plásticas, aquele horror que você deve conhecer. Nas vitrinas sujas de pó, botões, fivelas, um lixo! Mas no quintal havia uma amoreira, que era uma glória. Um pé de jasmim, divino! Grande parte do tempo eu passava cantando em cima da amoreira, como um passarinho.”

Nessa mesma reportagem, Clodovil diz que quando via um avião sobrevoando Floreal, o que acontecia só uma vez por mês, ele torcia pra aeronave cair, pra que, assim, aparecesse gente nova na cidade.

Com o passar dos anos, no entanto, ele começou a falar cada vez com mais carinho e orgulho de suas raízes interioranas, como nessa conversa com Marília Gabriela, em 1999.

Eu me lembro de tudo da infância. Porque eu vivi no interior, como você, nós tivemos essa felicidade. Por conseguinte, nós temos para onde voltar. Porque o problema é quando você viveu… Por que a periferia da cidade é má para quem se destaca? Porque a pessoa não quer voltar pra periferia, então ela corta as raízes e ela perde a seiva da vida. Nós, que nascemos no interior, e graças a Deus existe esse interior, e ele está dentro de nós… Porque eu nunca me senti caipira na vida, em lugar nenhum do mundo, nem em Paris, nem lugar nenhum. Duvido que você tenha se sentido também.

Esse interior onde Clodovil cresceu, o Noroeste paulista, foi uma região que teve um grande desenvolvimento durante o Ciclo do Café, que começou no século 19 e se estendeu até as primeiras décadas do século 20.

Com a riqueza gerada pelas exportações de café, o interior de São Paulo viu o surgimento de vários núcleos urbanos e a expansão da malha ferroviária até localidades como São José do Rio Preto, perto de Floreal.

Como todo ciclo, o do café começou a entrar em declínio por fatores diversos, que culminaram com a quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a consequente crise mundial. As exportações desabaram e a cultura cafeeira deixou de ser o motor da economia nacional.

Quando os Hernandes se mudaram pra Floreal, nos anos 40, os tempos áureos do café já tinham passado, mas a terra ainda prometia prosperidade. O cultivo do algodão tinha substituído os cafezais e a expectativa era de que a região virasse uma grande potência agrícola. 

Domingos Hernandes, o pai de Clodovil, por sinal, trabalhou justamente em plantações de algodão, até juntar dinheiro suficiente para abrir seu armazém. Nessa época, Floreal ainda não era um município, era um vilarejo, um distrito de Monte Aprazível, a quase 50 km dali. Quem fala mais sobre a região é o florealense Gilson Marques, autor do livro Floresta Floreal, a história do nascer e do crescer de uma cidade.

Pelo último censo, Floreal tem 3.003 habitantes. Na época do Clodovil, Floreal era mais efervescente, porque era uma época em que a zona rural, agrícola era muito movimentada, com muitas famílias morando na zona rural, todos esses italianos, esses imigrantes chegando lá, a cidade sendo construída, grandes lojas que tinha lá para dar vazão na produção agrícola. Então, Floreal era muito mais movimentada do que é hoje. A cidade aumentou um pouquinho de tamanho, mas a estrutura básica da cidade é a mesma. O prédio onde o Clodovil tinha, o pai dele tinha loja, está lá, a escola onde ele estudou, que hoje é a prefeitura, modificaram o prédio, mas o prédio está lá.

Então, em termos de você chegar na rua principal de Floreal hoje, chegar de frente à igreja e dar uma olhada pela rua, é a mesma rua que o Clodovil via na infância dele.

O Gilson foi a primeira pessoa que eu entrevistei pra este podcast. E ele foi fundamental pra ajudar a gente a chegar aos amigos de infância do Clodovil e mergulhar nas origens dessa figura tão controversa. Um deles é Lino Borelli, que conheceu o futuro costureiro quando tinha 8 anos de idade e tava sempre grudado com ele.

Ele é de 37, eu sou de 36. Aí, ficamos… Todas as festinhas que tinha na cidade, ele ia, nunca foi sem eu. Sempre me levou nas festinhas. O dono da festa não me convidava, ele que me convidava pra ir na festa dos outros.

Sempre junto. Aí ele fazia desenho naqueles quadros de noiva, fazia caricatura das pessoas. Aqui em Floreal, desde pequenininho, ele desenhava, era coisa de louco. Todo mundo admirava ele.

Pois é, o talento pra criação e desenho era uma das características que Clodovil já demonstrava ter desde criança. Outra característica que o garoto carregaria pra vida era a de não levar desaforo pra casa.

Ele discutia. Ele não perdia questão para ninguém, ele discutia mesmo. Ele não queria que desfazia dele. Porque muitos chamavam, falavam maricão, porque ele gostava muito de desenhar, ficava mais junto com as meninas. Quando chamavam ele de maricão, ele não gostava.

Apesar das eventuais provocações da molecada – que eram rebatidas na lata –, Clodovil não era uma criança solitária. Gostava de subir em árvores, pegar fruta no pé e, se não era lá muito fã de jogar futebol, pelo menos acompanhava as partidas do amigo Lino, que era goleiro do time da vila.

Ele não jogava futebol, mas ele gostava de assistir o gol. Assistia, ele acompanhava eu. Ele ficava atrás do gol, gritando: ‘Pega Lino, pega, não solta não!’ Ê, mas era um sarro o Clodovil.

Nas muitas entrevistas que deu ao longo da carreira, Clodovil frequentemente destacava dois pontos: a paixão que ele tinha pela mãe e o fato de que ela não era sua mãe biológica. O estilista foi adotado ainda bebê pelo casal de imigrantes espanhóis Domingos e Isabel Hernandes.

Isabel já havia perdido uma criança e ficado estéril. E, segundo relatos do próprio Clodovil, no início, ela rejeitou aquele menininho, que chegou com a pele coberta de furúnculos. Com o passar do tempo, no entanto, os dois viraram unha e carne, e Isabel morou com o filho até morrer, em 1986. Clodovil dizia que só ele havia amado a mãe e só havia sido amado por ela.

Eu já sei desde os 11 anos que eu sou adotivo. E isso nunca me criou problemas e eu nunca contei pros meus pais que eu era adotivo. Eles morreram sem saber que eu sei.

Clodovil dizia que soube da adoção por meio de uma tia. Mas quem falou no assunto pela primeira vez com ele, muito provavelmente, foi a dona Alzira, que você ouviu no começo do episódio.

Eu era vesga de olho. Bem vesga. E às vezes ele discutia comigo. Ele foi e falou assim pra mim um dia: “Ah, sai daí, caolha”. Aí, sabe, eu escutava boato. Criança presta atenção nas coisas, né? Aí eu falei: “Sai daí? Você tá me chamando de caolha? A dona Isabel e o seu Domingo não é teu pai e tua mãe. Ce foi achado!” Aí, filha, se você soubesse como ele chorou… Ele foi embora pra casa, contou pra mãe dele, a dona Isabel, e a dona Isabel foi lá na minha casa e falou pra minha mãe: “Dona Marcília, por favor, fala pra Alzira ir em casa, que ela falou assim, assim pro meu Clodovil, e ele tá encucado com isso, ele chora sem parar! Quer saber se é verdade, se é mentira. Aí a minha mãe falou, vou levar sim, dona Isabel, deixa a Alzira vir em casa. Minha mãe levou eu, puxada pela mão, me deu uns tabefo, me puxou a orelha e me levou lá e fez eu falar que era mentira e abraçar ele e pedir desculpa. Aí ele ficou todo-todo.

Em mais de uma entrevista, Clodovil contou que tinha a lembrança de ver certa noite, na sala de casa, uma mulher de coque, conversando com seus pais, que seria a sua mãe biológica. Ele dizia ter bloqueado parcialmente essa lembrança e que, por isso, não se lembrava do que eles diziam, mas tinha certeza de que a mulher era sua mãe e queria levá-lo embora, e que seus pais adotivos não tinham permitido. 

Em outras ocasiões, ele disse que nunca soube quem era sua mãe de sangue. Mas essa pode ser uma informação que o cérebro de Clodovil também preferiu esquecer.
Segundo o amigo de infância Lino Borelli, a mãe biológica de Clodovil era uma mulher chamada Alípia, que, na verdade, era irmã de Isabel Hernandes, a mãe adotiva. 

Quando a mãe dele conversou comigo, depois que ele foi embora, a dona Alípia, a mãe legítima dele, ela me contou todinho a vida quando ele nasceu. 

Ela conversou assim: falou que ela foi embora pra Elisiário, trabalhar de doméstica na casa de uma amiga dela e ela engravidou de um moço lá. Diz que era namorado. Chamava Antônio Ferracini. Moreno. E o moço, quando ficou sabendo que ela tava grávida, ele se mandou para Jales, aqui perto. Uns 80 quilômetros perto daqui. Como a patroa dela não queria assumir a criança dela, ela trouxe aqui pra Floreal pra irmã dela criá-lo. 

A mãe dele falou assim pra mim: “Quando eu cheguei com meu filho na loja, o Domingo Hernandes, meu cunhado, ele falou ‘olha, Alípia, que coisa, de quem que é esse nenê?’ Falei: ‘É meu, é meu, Domingo, é meu. Eu trouxe aqui pra vocês criarem, porque eu não tenho condições de criar. Aí, falou com a Isabel, a mãe adotiva: ‘olha, Isabel, tua irmã quer entregar o nenê pra nós, o que você acha?’ ‘Vamos pegar, vamos pegar. Vamos criar ele. Só que você vai ficar aqui como babá do seu próprio filho. E ficou mesmo, até muitos anos. Muitos anos.

Quer dizer, de acordo com esse relato, Alípia, chegou a trabalhar pro casal Hernandes durante um período como babá de Clodovil. 

Lino conta ainda que, muitos anos depois, quando o estilista já era uma celebridade nacional, Clodovil voltou a Floreal e quis falar com Alípia.

Quando ele veio aqui uma vez, veio aqui em Floreal, ele falou pra mim assim: “Lino, passe em frente à casa da minha mãe que eu quero ver ela”. Falei: “Vamos lá”. Aí montei no carro dele, ele tinha um motorista e tudo, carro bonito, de luxo. Falei: “Pode virar aqui”. Falei: “Ó, esse homem que tá sentado aqui em frente é o João (inaudível), que é o teu padrasto. É casado com a tua mãe. Ele falou assim: “Não, vamos embora, vamos embora, eu não quero passar aqui, não, vamos embora”. Coitadinho muito pobrezinho, dava dó. O povo da cidade que ajudava ele, sabe. Eu falei pro Clodovil: “Para aqui, vamos conversar com tua mãe”. “Não, não, vamos embora, vamos embora.” Aí, foi embora, me deixou lá na cidade, na praça e foi embora. Não quis ver, coitado, ele ficou…  Muita pobreza, né? Pobreza demais. Dava dó.

Essa não foi a única vez que Clodovil voltou a Floreal depois de famoso. Os amigos contam que ele retornou à cidade em diversas ocasiões – às vezes, por causa de alguma homenagem, às vezes, sem motivo específico – e costumava reencontrar os companheiros de infância. Fora as visitas que ele fazia na surdina, como ele próprio revelou em entrevista à Marília Gabriela.

Eu adoro andar nos lugares onde eu vivi de madrugada. Eu vou guiando, vou para uma cidade próxima, fico num lugar que não tem nada a ver e depois vou para esses lugares de madrugada. Eu adoro.

(Marília) O que você vai buscar, Clodovil?

Ah, os meus fantasmas, minhas coisas boas. Eu tenho fantasmas lindos. Como Mario Quintana diz: eu sirvo chá para eles.

O imigrante Domingos Hernandes, pai de Clodovil, era um homem meio bronco, de pouco estudo. Apesar disso – ou por causa disso – ele fez questão que Clodovil tivesse uma boa formação.

Dessa forma, o menino foi estudar em um colégio interno de padres católicos numa cidade vizinha, onde aprendeu a falar francês com perfeição. Essa fluência foi mencionada por vários entrevistados para este podcast, e o próprio Clodovil, claro, também costumava se gabar disso. 

Além da educação esmerada, o período no colégio interno teve um fato marcante e delicado na vida do estilista: um abuso sexual sofrido aos 11 anos de idade. E aqui fica o alerta de gatilho pros próximos minutos.

O episódio foi citado pela primeira vez por Clodovil em 1971, em entrevista à revista Realidade, e recuperado pelo jornalista Carlos Minuano no livro Tons  de Clô, publicado em 2017. Na extensa reportagem sobre o costureiro, escrita pelo jornalista Jorge de Andrade, Clodovil falava sobre uma noite escura, em que estava na enfermaria do colégio, e sentiu um cheiro de lavanda barata e uma mão acariciando o seu queixo. Ele não entra em detalhes, mas deixa claro que o que aconteceu naquela noite foi mais do que uma carícia no rosto. 

Anos mais tarde, em uma entrevista à Bruna Lombardi, no programa Gente de Expressão, Clodovil relatou novamente o episódio, em uma fala bastante controversa. 

(Bruna) As pessoas falam do abuso sexual com crianças. Você sofreu na tua infância, do diretor da tua escola, que eu li. E você denunciou isso.

(Clodovil) Não, mas eu não denunciei no sentido rancoroso. Na verdade, eu posso até falar porque ele está morto, eu poderia falar, não por desrespeitar. Ao contrário, por respeitá-lo. Ele é um ser como qualquer um de nós. Todo ser humano faz bobagem. Agora, eu analisei sempre assim: quando eu acordei na enfermaria e ouvi aquele homem batendo na parede, que era um recado, todas as fantasias de uma criança na cabeça, e que era o diretor do colégio e tal, e que depois no escuro eu senti aquela mão em cima da minha pele, ao invés de ver isso como uma coisa nojenta, porque quem quiser, que veja, né? Mas não é a mesma transferência do nojo, de que alguém me prejudicou, não. Eu vi isso como uma eleição, “eu fui escolhido”, porque, na minha cabeça, isso não me comprometia moralmente. O meu “eu” não estava comprometido. Ce tá entendendo o que estou dizendo?

(Bruna): Não.

(Clodovil) Não?

(Bruna): Não. 

(Clodovil) Por exemplo, se eu fosse, se eu tivesse que trilhar um caminho de macho, onde essas coisas fossem um horror e tal, eu teria um tipo de revolta. Mas como eu não tive que trilhar esse caminho, eu tive que trilhar um caminho de homem, que é completamente diferente de macho, então, isso não me agrediu em nada. Ao contrário. Isso é um problema que talvez ele tenha carregado na vida. Mas eu, pra mim, vi como eleição. 

Enquanto Clodovil fala, dá pra perceber a expressão de Bruna Lombardi, como os olhos verdes muito abertos, entre consternada e atônita com o que está ouvindo. Na sequência, ela pergunta se o episódio não gerou nenhum trauma e Clodovil diz que não, e já emenda num comentário sarcástico-bem-humorado sobre gente que diz ter trauma por qualquer coisa.

Porque quando eu vim pra São Paulo estudar, todas as pessoas tinha psiquiatra, psicólogo, todo mundo com trauma, ‘porque papai separou de mamãe’, então eu vou fumar maconha porque estou em trauma.

Não é possível julgar as reações de uma pessoa que sofreu abuso sexual. É extremamente comum que as vítimas se sintam culpadas, tenham pensamentos conflitantes em relação ao abusador ou bloqueiem as memórias do ocorrido. E esse sentimento de se sentir eleito e escolhido, como descreve Clodovil, não deixa de ser também uma forma de defesa que ele encontrou para lidar com o episódio.

Nas entrevistas que ele deu ao longo da carreira, a gente consegue identificar como muitas vezes Clodovil veste uma couraça, quando diz que não se deixou afetar por isso, não tem problema nenhum com aquilo. A relação paradoxal que ele tinha com a própria sexualidade e os embates com o movimento gay, são os exemplos mais evidentes. Mas a gente vai deixar pra se aprofundar sobre esses temas mais adiante.

Voltando aos tempos do colégio interno, o garoto de Floreal continuava a aprimorar suas qualidades de desenhista. E as criações de Clodovil começaram até a sair do papel, como lembra a amiga Alzira Basseto.

Quando a minha irmã, que é a tia da mãe do Gilson, era mocinha, ela entrou em negócio de concurso de beleza, quando tinha quermesse. A gente vendia votos com carnê. Entravam às vezes quatro, cinco, seis moças de Floreal. Uma era de beleza, outra de simpatia e a outra de bondade. E aí eu peguei carnê da minha irmã pra vender pra ela, porque era minha irmã. E ela ganhou no concurso de beleza como rainha. O Clodovil, naquele tempo, filha – ele era menino dos 10, 12 anos –, ele desenhou o modelo do vestido da minha irmã e escolheu o pano e a cor. 

(Patricia): Nossa, deve ter sido um dos primeiros vestidos que ele fez na vida, né, dona Alzira?
É, eu acho que foi, filha. E, olha, a minha irmã ficou muito bonita! Ce chegou a conhecer tule?
(Patricia): Sim, sim, aquele tecido que é mais durinho, né?

É. Era azul cor de anil.

A habilidade de Clodovil pra desenhar vestidos rendeu ao garoto o apelido de Jacques Fath, dado por um professor.  Jacques Fath foi um estilista francês muito famoso nos anos 1940 e 50, considerado um dos principais nomes da alta-costura no pós-guerra. Ele foi contemporâneo de nomes como Christian Dior, Pierre Balmain e Coco Chanel, e teve entre seus pupilos Hubert de Givenchy, Guy Laroche e Valentino Garavani. Jacques Fath morreu muito cedo, de leucemia, com apenas 42 anos, em 1954.

E, coincidentemente, foi nesse mesmo ano que o Jacques Fath de Floreal teve o primeiro reconhecimento público do seu talento. Clodovil participou de um concurso para criar um vestido para a cantora Marlene  e teve seu desenho publicado na revista Radiolândia, de circulação nacional. Junto com o croqui, havia uma descrição do modelo, feita por seu autor:

“Este vestido pode ser feito em tafetá italiano ou tule preto. O busto e a saia, muito justos, são confeccionados em tafetá. O busto deverá ser bordado em strass e em canutilhos prateados. A saia, exageradamente franzida, é em tule. Note-se que a saia inicia curta na frente, descendo à medida que vai alcançando a parte de trás. A alça, que contorna o pescoço e sai abaixo do busto, é feita em tule da mesma cor que o resto do conjunto. Como complemento, usem apenas um bracelete e brincos de brilhantes ou imitação.”

O desenho teve direito a um comentário da própria Marlene, que escreveu, abre aspas: “Clodovil, seu modelo é muito bonito. Parece que será um dos classificados.” Fecha aspas. Lembrando que a gente está falando aqui da época em que as cantoras do rádio eram as maiores divas do Brasil e a Marlene era praticamente, assim, a nossa Beyoncé.

Foi por volta dessa época também que Clodovil deixou o interior de São Paulo e foi morar na capital paulista, para completar o último ano do Curso Normal. E aqui vale uma explicação: o Curso Normal era uma modalidade do ensino médio que existia na época e que era voltada para a formação de professores. Na verdade, mais professoras, porque a quase totalidade dos estudantes desse curso era formada por garotas. Os garotos costumavam optar pelos chamados cursos Clássico ou Científico.

Bem, mas Clodovil, que nunca se importou muito em seguir as convenções, fez o curso Normal e se transferiu para São Paulo no último ano, pra estudar e já se preparar para entrar na faculdade de Filosofia, que era o seu plano.

Só que Clodovil nunca chegou a cursar Filosofia e acabou voltando a morar com os pais depois de se formar no curso normal. Mas essa curta passagem por São Paulo teve um acontecimento decisivo, que ia virar uma chave na cabeça do futuro estilista. E ele relembrou essa passagem no programa Nada Além da Verdade, apresentado por Silvio Santos, que foi exibido em dezembro de 2008, três meses antes de sua morte.

Eu cheguei em São Paulo com 19 anos e eu não sabia que isso existia. Vim fazer o último ano de Normal e Faculdade de Filosofia. E uma menina, Regina, que deve estar viva ainda, porque sempre uma pessoa é meio. Nós não sabemos, mas nós somos meio pra ajudar os outros. E ela viu um desenho no caderno e ela disse: ‘Nossa, se eu fosse você, eu faria Moda’. Eu falei: ‘Como assim? Desenha uns vestidos e vai vender na cidade. Faça!’ Aí eu peguei uma folha de caderno e fiz 11 desenhos, magina que coisa ridícula, uns desenhinhos pequenininhos numa folha só. Porque eu não tinha noção de estética, porque eu era um menino do interior que nunca tinha cursado uma escola de arte. E eu levei numa loja, que eu não quero dizer o nome, porque pode ser que a pessoa esteja viva e eu vou dizer uma coisa indelicada. E dos 11 desenhos ela comprou 6. Isso me deu 1 conto e duzentos. Meu pai me mandava na época 2 contos por mês, pra manter o colégio, a pensão e tudo.

Então, em um único dia, Clodovil ganhou quase o dobro do que recebia por mês do pai. E aí, o que ele fez?

Ué, o que todo fashionista que se preze faria: gastou quase tudo em uma malha que ele estava namorando há meses!

De quebra, Clodovil descobriu que a moda, sim, poderia ser uma profissão.  E que ele conseguiria, inclusive, ganhar muito dinheiro com isso.

Bom, mas sobre a “coisa indelicada” que ele mencionou na conversa com Silvio Santos, foi o seguinte: depois de receber essa primeira bolada, Clodovil retornou diversas vezes à tal loja pra oferecer novos desenhos. Só que a dona do lugar nunca mais quis comprar nenhum. Ele estranhou e não entendia porque os outros desenhos não emplacavam. Até que um dia ele foi novamente lá e viu que, na verdade, a mulher não comprava, mas espertamente memorizava os desenhos que ele trazia e reproduzia os modelos na loja.

Então, logo na largada para a sua nova profissão, Clodovil Hernandes aprendeu uma lição importante: na moda, jacaré que dorme vira bolsa.

Clodovil do Avesso é um podcast jornalístico produzido pela ELLE Brasil. Reportagem, roteiro e narração, Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Gravação e finalização: Compasso Coolab. Trilha sonora original, In Sonoris Causa. 

Este episódio usou trechos dos programas De frente com Gabi, apresentado por Marília Gabriela e exibido pelo SBT; Gente de Expressão, apresentado por Bruna Lombardi e exibido pela TV Manchete, e Nada Além da Verdade, apresentado por Silvio Santos e exibido pelo SBT.

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