Clodovil do Avesso: a moda de Clô

No terceiro episódio, o podcast acompanha a tentativa de Clodovil de migrar para o prêt-à-porter e sobreviver na moda brasileira.


clodovil do avesso
Arte: Gustavo Balducci



 

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Em 9 de novembro de 1978, Dener Pamplona de Abreu morreu após passar três dias internado no hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. O costureiro foi vítima de uma cirrose hepática, agravada pelo consumo excessivo de álcool. 

Aos 41 anos, o maior antagonista de Clodovil na moda estava desgostoso com os rumos que sua vida profissional tinha tomado. Os tempos em que criava os vestidos mais cobiçados pelas celebridades e pela high-society brasileira haviam passado, e ele tentava pagar as contas desenhando vestidos de noiva para lojas da rua São Caetano.

Dener foi sepultado no jazigo cedido pela amiga e colunista social Alik Kostakis, no cemitério do Morumbi. Na discreta nota publicada no Jornal do Brasil, no dia seguinte ao enterro, chama a atenção o seguinte trecho, abre aspas: “segundo seu mordomo por mais de 16 anos, Pedro Villa, ele estava adoentado há muito tempo, mas ‘aos parentes e amigos nunca dizia que estava doente e se apresentava sempre alegre’. Clodovil foi um dos poucos colegas de profissão que compareceu ao velório e ao enterro, mas não quis falar”. Fecha aspas.

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Oito meses após o falecimento do antigo rival, Clodovil deu um depoimento ao jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli publicado na revista Manchete, em que fazia um balanço da carreira e mencionava o fim melancólico do costureiro paraense.  O título da reportagem foi tirado de uma fala do entrevistado, que dizia: “Não vou deixar que façam comigo o que fizeram com Dener”.

Eu sou Patricia Oyama

E eu sou Gabriel Monteiro

E este é Clodovil do Avesso, o podcast da ELLE Brasil sobre a vida de Clodovil Hernandes, que ganhou fama como costureiro nos anos 60 e 70, conquistou uma legião de fãs e desafetos como apresentador de TV e deu mais uma guinada no fim da vida, quando foi eleito deputado federal por São Paulo.

Neste terceiro episódio, a gente vai acompanhar as estratégias desse personagem para sobreviver na selva fashion, entender o contexto criativo em que ele atuava e conversar com gente da área para decifrar: afinal, como era a moda de Clodovil?

No episódio anterior, nós contamos que os grandes ateliês de moda do Brasil, como o Madame Rosita, Boriska, La Signorinella e a Casa Canadá passaram a contratar novos desenhistas, por volta da década de 1950. 

A ideia era captar os desejos do tempo, mas não necessariamente abandonar um padrão: que era o de olhar pra França, mais especificamente, Paris. E isso não era exclusividade do nosso velho complexo de vira-lata, não, viu!? Era assim em quase todo o mundo. A moda europeia ditava. O design parisiense era o grande parâmetro de estilo a seguir. E ponto final. 

Ou seja, quando a primeira geração de costureiros do país foi se estabelecendo por aqui, criando uma roupa sob medida, que atendia as vontade de uma elite, essas clientes endinheiradas, em geral, não estavam muito interessadas, assim, em originalidade. Elas queriam mesmo era se vestir como as mulheres do outro lado do oceano. 

Esses profissionais, então, se preocupavam em oferecer qualidade, primavam por um acabamento de excelência em trajes de gala, vestidos de festa, mas não exatamente um design original. 

Neste contexto, a primeira geração de costureiros brasileiros ganhou a fama pouco lisonjeira de copiadora. E, apesar de não ser uma completa mentira, há um ponto mais complexo nessa discussão: eles estavam atrelados a um tipo de produção específica, que era o sob medida. O objetivo era atender os desejos da cliente. 

Por isso, antes de entrarmos mais profundamente em uma análise da assinatura de Clodovil Hernandes na moda, vale aqui um parênteses pra gente entender o que é alta-costura, sob medida e prêt-a-porter. Então, a gente convidou o nosso diretor de moda, o Lucas Boccalão, para esclarecer rapidamente a diferença entre esses termos. 

A alta-costura nasceu na França, no final do século 19, por meio de um costureiro, Charles Worth. Ele criava roupas ultra sofisticadas e feitas sob medida para uma clientela exclusivíssima. 

No começo do século 20, um sindicato foi criado na França para diferenciar esse tipo de criação e nascia, assim, a Chambre Syndicale. Ela era a dona de uma patente, a couture, que apenas marcas que atendiam a uma série de regras podiam receber. Costurar a roupa completamente à mão, provar mais de uma vez na cliente e ter um número específico de artesãos em um ateliê localizado em Paris são algumas dessas regras. 

Ou seja, não se faz alta-costura em nenhum outro lugar do mundo. Trata-se de uma patente francesa. O sob medida, por sua vez, pode ser feito em qualquer outro lugar, mas essa roupa, mesmo que feita em padrão altíssimo de qualidade, não chega a ser chamada de couture. Na Itália, até existe um nome para esse tipo de produção, é alta moda. E, nos EUA, convencionou-se chamar de high fashion. 

Adicione a isso o fato de que, nos anos 1960, enquanto o Brasil começava a fundamentar a ideia de um costureiro por aqui, que fazia uma roupa sob medida, o mundo via outro tipo de produção de moda explodir: o tal do prêt-a-porter, ou, do francês, o pronto para vestir. 

Esse termo passa a ser designado às roupas produzidas em série, usadas pelos baby boomers, os jovens pós-guerras. Na moda internacional, nomes como Pierre Cardin e Saint Laurent são exemplos de designers que investiram no prêt-a-porter e começaram a atender a uma demanda maior de clientes e a produzir um tipo de roupa mais casual. 

Quer dizer, apesar do termo alta-costura ter sido amplamente utilizado no Brasil, inclusive pelo próprio Clodovil, o que se produzia nos ateliês não era alta-costura, mas, sim, o sob medida, que vem a ser um modo de produção em que o desejo do cliente fala mais alto do que a criatividade do próprio costureiro. 

Ainda assim, apesar das limitações criativas, essa roupa produzida nos ateliês começa a carregar um nome. Você dizia, por exemplo, que o seu vestido de noiva foi assinado por Clodovil Hernandes, que usou um longo José Nunes para determinado evento e que havia encomendado um Ronaldo Ésper para o seu aniversário.

Então dá para dizer que a produção de Clodovil tinha um estilo?

Bem, exatamente pelo tipo de produção, não um estilo, mas, certamente, características próprias. E, para responder isso, vale ouvir o Vagner Carvalheiro, professor do curso de Modelagem do Vestuário na ETEC José Rocha Mendes. Vagner se apaixonou por moda ainda na infância, justamente por causa de Clodovil. Após a morte do costureiro, o professor foi atrás de croquis e peças criadas por ele para entender mais o seu trabalho e analisar as características da sua produção.  

“Esse primeiro momento da moda no Brasil é um momento muito de construção. De, obviamente, tecidos importados, uma estética importada. Mas, especificamente no caso do Clodovil, ele buscava muito atender às expectativas e conhecer a cliente. Ele buscava saber o que a cliente desejava, e ele buscava aliar aquilo que ele entendia de beleza, bem-estar, de lifestyle, em cima dos desejos da cliente. Eu não posso afirmar que o Clodovil era minimalista, mas ele era objetivo nas roupas dele. 

Assim, 80% das roupas que o Clodovil criou daria para ser usada em qualquer época. Eu não vejo as criações do Clodovil muito datadas. Lógico, tem peças características de determinadas épocas, mas as roupas do Clodovil poderiam ser usadas hoje sem problema algum.”

Vagner destaca ainda aspectos práticos pensados por Clodovil. Ele cita, por exemplo, um vestido de noiva que, apesar de ficar extremamente volumoso no corpo, podia ser dobrado e guardado em uma sacola. Ou outro modelo em que o próprio avesso do vestido virava a sacola para guardar a peça.

“O Clodovil era uma pessoa muito à frente do seu tempo. Isso é um fato inegável. A gente teve várias cabeças pensantes aqui no Brasil, mas pensa, uma cabeça que faz um vestido de noiva com bolso, ou um vestido de festa com bolso, na década de 70, pra mulher ficar super confortável. Aquele momento que não sabe onde colocar a mão no bolso, pra você ter uma ideia. Um estilista que surpreende. Tem um caso curiosíssimo de uma socialite que compra uma joia e chama ele pra um jantar pra ele desenhar um vestido pra ela usar com essa joia. E aí ele faz um vestido todo fechado na frente. E ela fala, e aí, onde eu vou usar a joia? E aí ele faz, usa por trás. Então ele sabe quando você usa nas costas, e ele fez um decote profundo nas costas pra usar essa joia nas costas.

Então eu acho que isso era uma sacada do Clodovil muito grande, essa modernidade. Eu tomo essa liberdade de dizer que o Clodovil era muito moderno na maneira como ele enxergava o corpo da mulher e na maneira como ele trabalhava. E o avesso da roupa é muito impecável, o Clodovil realmente primava por qualidade.” 

Bem, você acabou de ouvir uma das poucas unanimidades dos entrevistados envolvendo o Clodovil. Ele era amado por uns, odiado por outros, mas todos concordavam sobre uma coisa: Clodovil priorizava o acabamento e fazia isso olhando o avesso da roupa, cada costura, cada detalhe. Não à toa, o avesso foi parar no nome desse nosso podcast. 

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“Ele várias vezes olhava o vestido, levantava pra ver por dentro, quer dizer, aprendeu direitinho, muito bem feito, bem acabado e tal.”

Quem falou agora sobre essa história de acabamento checado pelo avesso foi a Isabel Cristina Gonçalves, que cria roupas sob medida em seu ateliê no Jardim Paulista.

A Isabel é natural de Florianópolis, Santa Catarina, e se mudou para São Paulo quando tinha 19 anos. Dois meses depois de chegar à capital paulista, ela leu um anúncio de jornal que mudou a sua vida: um costureiro que ela admirava de longe, que ela acompanhava todos os desfiles no programa da Hebe Camargo, estava à procura de uma secretária. 

Na porta do ateliê de Clodovil, Isabel entrou em uma fila com mais de 50 mulheres e passou o dia inteiro. Quando deu 11 horas da noite, no entanto, a gerente do ateliê avisou que não entrevistaria mais ninguém. Isabel já estava de saída e nem pensava em voltar, mas, nessa hora, ela chamou a atenção de uma senhora de cabelos brancos, que passava por lá. Era outra Isabel, a Isabel Hernandes, mãe de Clodovil. 

Por motivos que nem ela própria sabe explicar, Isabel Cristina caiu nas graças de Isabel Hernandes. Acabou conquistando a vaga e, ao longo dos 15 anos seguintes, ela seria muito mais que uma secretária. Ela se tornaria o braço direito e pau-pra-toda obra de Clodovil.

“Eu comecei a trabalhar na segunda-feira. Perguntei, o que eu vou fazer? Ele falou, vai ficar colada em mim. Cuidar da minha agenda e aprender. E ele me ensinou tudo.” 

Quando assumiu o novo emprego, Isabel, que tem formação em Biologia, não sabia nem costurar. Gostava de moda, mas não entendia nada do assunto. Mas Clodovil estava disposto a dar um curso intensivo para a nova pupila.

“Dois meses depois, eu estava recém-casada, ele falou, mandei tirar duas passagens. Nós vamos para Paris sábado. E aí eu fui. Fiquei dois dias andando com ele, todas as as ruas, todas as lojas, com uma coisinha, uma agenda, anotando. “Aqui compra capellini. Sabe o que é capellini, minha filha? Não? É chapéu. A gente compra o chapéu, leva pra São Paulo, aí tem uma pessoa que faz o molde. Nessa viagem pra Paris, a gente andava na rua e ele dizia para mim, preste atenção, a mulher europeia não tem o corpo da brasileira. A mulher europeia é longilínea, ela tem o corpo longo e a brasileira não tem. A brasileira tem um corpo curto, quadril e busto. Aqui, para fazer uma roupa, a gente tem que descer sempre um centímetro da cintura, porque senão ela fica curta de corpo. A mulher é curta de corpo. E é mais pura a verdade.  Eu faço as roupas, aí o cliente diz assim, alongou o meu corpo, mas é porque a gente corta um pouquinho abaixo da cintura para alongar o corpo.”

Segundo Isabel, muitas vezes aquilo que as pessoas entendiam como uma arrogância de Clodovil, era, na verdade, a sua exigência falando mais alto. 

“Quando eu assumi o ateliê, ele disse para mim, eu vou te ensinar tudo a respeito de tecido, a interpretar, um desenho, tudo. Uma coisa fantástica. A inteligência dele era de… Sabe, você ficava embevecida ouvindo ele falar. Você já deve ter escutado isso. Ah, ele não era difícil? Não, difícil ele não era. Ele era exigente. E era muito exigente e com razão. Sabe? Ele fazia um arranjo de flores. Ele dizia assim, a flor tem que estar virada pros seus olhos pra admirar. A flor não pode estar de costas. Então, eu olhava e dizia, ele tem razão, é isso mesmo. A flor tem que estar virada pra você. E assim tudo, tudo. Então, eu amava ele e a gente falava, a gente se entendia pelo olhar, pelo bom dia, por tudo.”

Outra pessoa que conheceu Clodovil como ninguém, foi Rose Benedetti. Isso mesmo, a mulher responsável por difundir a bijuteria no Brasil como um acessório de luxo, em meados dos anos 1970. Rose conheceu Clodovil quando ela tinha só 15 anos de idade. 

“Ele trabalhava numa boutique lá em Higienópolis. Eu fui com a minha mãe ver um desfile de modas. E ele era o designer desse desfile. E aí eu consegui conhecer o Clodovil menino. Tinha acabado de chegar do interior. E aí eu fui atrás dele, na Baronesa de Itu.”

Clodovil fez o vestido de casamento de Rose, assim como o modelo de azul petróleo usado pela designer na abertura de sua loja no Rio de Janeiro. Depois, vestiu Rose também para o casamento de seu filho. Mas a relação dos dois foi muito além das trocas cliente/costureiro. Virou uma amizade intensa, que perdurou até a morte dele. 

Em seu escritório, em meio a fotos de Clodovil jovem, uma série de croquis do costureiro e até mesmo com um modelo de vestido feito no ateliê Clodovil em mãos, Rose lembra como os desfiles do amigo foram fundamentais para impulsionar sua carreira. 

“Quando eu comecei a fazer bijoux, ele me perguntou. Eu falei, eu estou fazendo bijoux. Aí ele falou: “magine, ce não vai aguentar fazer bijoux!” “Vou, sim, ce não aguenta? Eu também vou aguentar!” Aí ele falou: “Manda aqui pra eu ver”. Aí eu mandei numa caixa de papelão as coisas que eu estava fazendo. Eu fiz 75. Aí eu não tinha nem firma. Tinha só uma coisa de artesanato, né? Aí quando chegou lá, ele desfilou. Ele desfilou para a imprensa. Então estava o Fernando de Barros, a Costanza Pascolato, e um monte de gente da época. E aí eu falei, meu Deus, vai arrebentar tudo. Vai cair tudo no chão. Tava num nervo só. Quando acabou o desfile, ele foi pro microfone e agradeceu as pessoas que colaboraram. Então, o sapato é Beneducci, de não sei quem. E a bijoux é da Rose. Aí a Costanza estava lá. Ela trabalhava na Abril, na revista Cláudia. Aí ela falou, que Rose que é? Ele falou, a Rose que era Gebara, virou Benedetti. Aí a Constanza falou, mas eu conheço a Rose do tempo de escola, né? Aí ela levou as minhas coisas e publicou na Cláudia. Aí estourou, né? Aí eu tive que abrir empresa, etc. Começou tudo da Rose.”

E Clodovil mostrou que tinha um faro afiado ao acreditar no talento da amiga. Rose Benedetti virou sinônimo de bijoux de luxo no Brasil, a ponto de atrair até interesses estrangeiros. Mais especificamente, da maison Yves Saint-Laurent. A grife francesa queria comercializar seus acessórios no país, mas como as importações, na época, eram proibidas, era preciso ter alguém que produzisse as peças aqui. E Rose foi a escolhida. Ela buscava os originais em Paris, reproduzia em seu ateliê, mandava para a aprovação da matriz e, depois, distribuía no Brasil.

Com Clodovil, então, a relação que começou como cliente/costureiro e evolui para amizade, ganhou ainda mais um elo: a de parceiros profissionais.

Entre os trabalhos que os dois desenvolveram juntos, Rose cita o figurino para o lendário Dzi Croquettes, a trupe comandada pelo coreógrafo Lennie Dale, que levava a plateia à loucura com suas apresentações irreverentes.

Bom, eu não sei você, mas eu e o Gabe/eu e a Pat ficamos chocados de saber que, em plena ditadura militar, Clodovil desenhou roupas para um dos grupos de dança mais transgressores, revolucionários e afrontosos que já passaram por este país. E esse é só um dos muitos fatos que a gente desconhecia sobre ele.

“Ninguém reconheceu o Clodovil, né? Eu acho que ninguém reconheceu o trabalho que esse cara teve, gente. Era muito bom.” 

Mas, antes das polêmicas do apresentador ofuscarem o trabalho do costureiro, Clodovil surfou bem nas glórias da moda. Entre os anos 1960 e 70, a lista de encomendas do seu ateliê não parava de aumentar. E era impulsionada tanto pelas aparições de Clodovil na TV, cada vez mais frequentes, quanto das suas criações, vestidas por celebridades.

Ainda em 1968, ele assinou o vestido de noiva da primeira mulher de Roberto Carlos, Cleonice Rossi, a Nice. O modelo, em crepe francês, lhe deu muita visibilidade entre as noivas. E, literalmente: o casamento, celebrado em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, foi transmitido ao vivo na televisão. 

Simone, Maria Bethânia e Elis Regina eram outras divas que Clodovil vestia. Com Elis, aliás, ele afirmava ter implementado o uso da saia curta. Isso mesmo, dizia ter sido o responsável por incorporar a minissaia ao país, por um erro da sua contramestra. E quem conta a história é a jornalista de moda Lilian Pacce. 

“Ele fez um vestido pra Elis Regina, que tinha aquele programa Fino da Bossa, que eu acho que era da Record, se não me engano, que era, assim, muito importante, era como The Voice hoje. E aí ele pediu pra costureira baixar oito centímetros a barra do vestido e a costureira subiu oito centímetros. E daí quando ele vê na televisão, Elis estava com o micro vestido. E ele fala, meu Deus, Elis, você é louca. Ela fala, ué, você falou que você me mandou o vestido assim e eu achei que era pra usar assim!”

Além dessa história de ter popularizado no Brasil a peça criada pela designer britânica Mary Quant –, Clodovil se gabava de outros feitos mais improváveis, como ter inventado a saint-tropez, a calça de cintura baixa. O assunto foi parar  até no quadro da fofoqueira, da Praça é nossa, apresentado por Carlos Alberto da Nóbrega:

(Carlos Alberto): Clodovil, me diga uma coisa, eu sei que você é uma pessoa que faz roupa para mulher.

(Clodovil): Já fiz pra homem também.

(Carlos Alberto): É que você lançou uma calça. Que calça é essa? Era pra homem ou não?
(Clodovil): Não, era uma calça que chamava-se Saint Tropez.

(Carlos Alberto): Saint Tropez, exatamente!

(Fofoqueira): Como que é, Sant Tropeço? Eu nunca ouvi!

(Clodovil): Saint Tropez!

Em 1971, Clodovil foi capa da revista O Cruzeiro, tema de reportagem na Realidade, entrevistado no Pasquim e, tudo isso, enquanto inaugurava um ateliê agora na rua Oscar Freire, a badaladíssima rua da moda, em São Paulo. Em 1973, já era tão popular que foi convidado a fazer uma participação na primeira versão da novela Mulheres de Areia – na trama, Clodovil interpretou o costureiro que fez o vestido de noiva da personagem de Eva Wilma. Nesse mesmo ano, conseguiu outra façanha: com o patrocínio do fabricante de uísque Old Eight, realizou um desfile na Bélgica. 

Mas, apesar do sucesso midiático, Clodovil sentia, que, nos negócios, os ventos começavam a soprar em outra direção. A moda e o mundo haviam mudado radicalmente desde aquele momento em que ele ganhou a sua Agulha de Ouro, no começo dos anos 1960. E Clodovil percebeu que era hora de fazer a sua transição para enfrentar a realidade dos tempos, o tal do prêt-à-porter.

Em 1975, ele fecha o ateliê na Oscar Freire e reabre em um casarão na rua Itália, no endereço mais longevo da sua carreira. O lugar, batizado de Jardim da Moda, não era só um ateliê. Abrigava também uma boutique e representava o início da marca Clodovil.

Em entrevista ao Jornal do Brasil um mês antes da inauguração, Clodovil revelou planos ambiciosos. A ideia era ter boutiques vendendo sua marca, espalhadas por todo o Brasil, em um sistema semelhante ao de franquias. As lojas deveriam ser montadas seguindo o gosto e as orientações do costureiro. Nosso editor de beleza, Pedro Camargo, que dá voz a Clodovil quando não há áudio do próprio, lê a explicação que ele deu ao Jornal do Brasil:


“Esse tipo de comercialização já é utilizado em vários países do mundo. Creio que também dará certo no Brasil, porque o sistema em si facilita muito a vida do comerciante. Quem não deseja tranquilidade? Toda mercadoria, já com controle de qualidade fica aqui e é só o cliente solicitar o pedido que mandamos entregar tudo.”

Deu certo? Não. Mas que era uma ideia ousada para a época, isso era. E Clodovil continuou tentando se adaptar aos novos tempos.

(Clodovil): Hoje no Fantástico, eu apresento a minha coleção de prêt-à-porter primavera/verão 79-80 e modelos inéditos de alta-costura.

(Narrador): 20 manequins, 150 novidades para a primavera e o verão. A moda brasileira de Clodovil Hernandes.”

Se fazer moda no Brasil hoje é para os fortes, nessa época a situação não era mais suave. Pelo contrário. E Clodovil, sempre que tinha a oportunidade, destacava as desigualdades entre produzir no nosso país e produzir na França, na Itália, ou mesmo nos Estados Unidos. 

Ele lembrava que, na França, o governo reconhecia a moda como uma importante fonte de renda e que, nos EUA, havia isenção de imposto sobre o tecido para importar. Para Clodovil, o Brasil só precisava de um reconhecimento da moda como uma indústria importante que gera emprego e renda, para deslanchar. 

Nessa mesma reportagem do Fantástico em que ele apresentou a coleção de prêt-à-porter, Clodovil falou sobre isso.

(Repórter): O que é que representa pra você o prêt-à-porter? 

(Clodovil): Em princípio, antes de representar um produto que interessa à grande massa, o prêt-à-porter deveria ser um produto que interessasse ao nosso governo como mais uma fonte de divisa. Eu prefiro sempre ao invés de falar de alta-costura, falar de prêt-a-porter que interessa mais ao povo, que interessa sobretudo ao meu país como fonte de renda, como divisa. Eu não penso mais em Clodovil, eu penso em Brasil mesmo.

Além das coleções de prêt-à-porter, Clodovil também comprovou seu pioneirismo com uma série de licenciamentos nos anos 80, como lembra Isabel Cristina:

Imagina, era pra ele ser hoje milionário. Porque tinha sapato da Czarina com a marca Clodovil. Joias com a marca Clodovil. O carro, o jeans. O jeans vendeu assim, feito água. Era uma coisa linda. Era um jeans que vestia superbem. Só tinha um frisinho verde e amarelo, tinha uma microbandeirinha em outro modelo, no bolso. Era maravilhoso, maravilhoso.

Se você ouviu Isabel falando em “carro”, não ouviu errado. Sim, Clodovil teve até um carro com sua marca. O modelo, batizado de Monza Clodovil, foi anunciado em 1982 pela Chevrolet. A ideia era atingir o público feminino, com direito a banco de couro e as iniciais do estilista nos detalhes. Mas, apesar de seguir uma tendência da época, como o caso da Cadillac que fez um Seville com Aldo Gucci, o Monza Clodovil não chegou a 12  modelos vendidos.

Já o jeans, provavelmente, foi o projeto mais bem-sucedido de Clodovil nessa fase. Como a Isabel contou, a linha, criada em 1981, incorporava sutilmente símbolos nacionais, e levava também a assinatura estilizada do costureiro nos bolsos. O destaque, porém, fica para a campanha do denim Clodovil. No anúncio, um cacho de bananas inteiramente coberto pelo tecido azul. E, no slogan, “jeans sabor Brasil”.

Uma certa brasilidade, afinal, é uma das características mais importantes do trabalho de Clodovil, como aponta Lilian Pacce:

O Clodovil, primeiro, tinha um marketing pessoal que era muito bom. Ele era uma pessoa que primava pela qualidade da roupa, do caimento, do corte, do tecido. Excepcional, isso não dá pra negar. E ele valorizava a brasilidade e assumia isso, entendeu? Ele falava que era a caipira quem não valorizava isso. Ele falava de índio, ele falava de Brasil, da Amazônia, sabe? Eram assuntos muito distantes, muito fora assim do noticiário, do circuito. E ele trazia isso. Então, talvez o que mais devesse inspirar uma nova geração é olhar pra o que tem dentro e no seu entorno. E não o que tá longe. Olha o que tá perto de você. Valorizar o que você tem aqui, na sua terra, seu ambiente e fazer a partir disso o seu processo criativo.”

A amiga Rose Benedetti também destaca esse orgulho pelo Brasil e fala das dificuldades de emplacar uma produção nacional, mesmo com o sucesso inicial do jeans.

“E se você levar isso aqui e ler, você verá que os desfiles dele eram focados em pássaros, em folhagens, e flores. Ele sempre gostou de coisas brasileiras. O que ele queria fazer? Atingir o povo, né? Só que na época do Clodovil, que ele queria fazer esse prêt-a-porter, não tinha como hoje tem uma Renner, Riachuelo, C&A. Não tinha isso. Ele não tinha distribuição. Quando você faz o produto e não tem distribuição, você não chega a nada, né? Então, ele fez o prêt-à-porter e não tinha onde vender. Esse nicho não existia. Então, ele não tinha como distribuir o jeans. Não tinha. Era difícil pra ele. Foi difícil.

Pois é, foi difícil e não só pra ele. Toda aquela geração que conheceu o sucesso com o sob medida penou para se adaptar ao novo modelo de produção. O principal problema? A dificuldade de controlar o número de estoque e o número de vendas. E quem fala um pouco mais disso é o professor de história da moda, João Braga.  

“Eles estavam acostumados com a moda sofisticada, e prêt-a-porter é moda em produção para atender uma demanda maior, é produção em série, não pode ter a sofisticação porque fica mais caro, vai encarecer o produto e não vai dar produção, então, de certa forma, eles tinham uma certa dificuldade, digamos assim, um certo desconforto com a realidade do prêt-a-porter, talvez a dificuldade seja melhor do que o desconforto, enfim, e a outra coisa, tá, faltava no Brasil investidores, porque mesmo esses grandes nomes internacionais da moda, até hoje, tem grandes investidores por trás. Então, eu acho que a falta de investidor, ainda hoje, tem muita gente talentosa e que às vezes não tem a condição financeira, e acaba não indo adiante por falta de um investidor.”

Apesar dos pesares, Clodovil resistiu na moda durante toda a década de 80, levando em paralelo uma carreira na TV. Em 1988, no entanto, ele já havia desistido do prêt-à-porter e indicava uma certa desilusão em entrevista no Show de calouros, de Silvio Santos.

(Rosângela): Boa noite, Clo! Eu queria saber se você ainda trabalha com costura ou se você está na televisão porque no Brasil costureiro não tá dando nem para ganhar pra comer? 

(Clodovil): Não, não é verdade. Claro que a gente tem problemas. Jamais seremos um costureiro francês ou americano. Mas o artista brasileiro não é artista a nível de comparação com nenhum estrangeiro. Nós somos um país de brincadeira. Tudo aqui é uma mentira. Nosso dinheiro e profissão são uma mentira porque o brasileiro não tem orgulho do país que tem. Portanto, não pode respeitar e nem se respeitar. As coisas começam por aí. Eu faço moda, essa roupa é minha. A Isabel me trouxe, me entregou no hotel agora, as costureiras fizeram. Eu continuo fazendo roupa. Mas eu faço alta-costura, não faço butique.

No início dos anos 90, Clodovil acabou fechando seu Jardim da Moda na rua Itália. Na época, alguns veículos noticiaram que o costureiro teve que cerrar as portas por causa de dívidas trabalhistas. Em 92, ele colocaria novamente o ateliê para funcionar em sua própria casa, na Granja Viana. Mas a essa altura, a moda não era mais fonte de fama nem fortuna para ele. 

Seja como for, entre altos e baixos, Clodovil estava conseguindo cumprir o que prometeu naquela entrevista à Manchete, em 1979: estava fazendo – e faria – o que fosse preciso para não ter o mesmo fim melancólico de Dener.

Clodovil do Avesso é um podcast produzido pela ELLE Brasil. Reportagem, roteiro e narração, Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Gravação e finalização, Compasso Coolab. Trilha sonora original, In Sonoris Causa. 

Este episódio usou trechos do programa A Praça é nossa e Show de Calouros, do SBT, e Fantástico, da Rede Globo.

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