Ocimar Versolato do Avesso: O melhor aluno do Studio Berçot

No primeiro episódio de Ocimar Versolato do Avesso: a infância no ABC paulista, em São Bernardo do Campo; o encantamento por Ney Matogrosso; os primeiros fervos; a chegada a Paris; e o aprendizado com Marie Ruckie, no Studio Berçot.


Ocimar Versolato do Avesso




Ouça Ocimar Versolato do Avesso em:
Spotify | Apple Podcasts | Amazon Music | Deezer

Se preferir, você também pode ler este podcast:

Paris, 17 de outubro de 1994. O local é o luxuoso hotel Lutetia, um edifício histórico, de 1910, com fachada que mistura elementos de Art Nouveau e Art Déco.

Nesse hotel-palácio, no bairro de Saint Germain dès-Prés, na margem esquerda do Sena, Ocimar Versolato apresentaria sua segunda coleção em Paris, para uma plateia com representantes dos mais importantes veículos de moda do mundo e compradores de peso.

A primeira coleção, desfilada sete meses antes, havia sido um sucesso surpreendente, tanto de críticas quanto de vendas. E, naquela temporada, os olhares da moda estavam todos voltados para aquele estilista brasileiro de 33 anos, sempre de óculos e boné preto, que prometia ser a nova sensação do mercado. A expectativa era grande. E o desfile… foi um sucesso.

Eu sou Patricia Oyama. Eu sou Gabriel Monteiro. E este é o primeiro episódio de Ocimar Versolato do Avesso, o podcast da ELLE Brasil que vai contar a história do primeiro designer brasileiro a desfilar na semana de moda parisiense, a assumir a direção criativa de uma maison internacional e a ser convidado para integrar o seleto calendário da alta-costura de Paris.

Ao longo de quatro episódios, a gente vai acompanhar a trajetória dessa personalidade controversa, que alcançou o Olimpo da moda, caiu e se levantou mais de uma vez, numa montanha-russa que continuaria até a sua morte, há oito anos. E vamos também tentar entender por que, apesar do enorme talento e dessa lista de conquistas, Ocimar Versolato foi praticamente apagado da memória da moda brasileira.

“The location was classy, backstage was cramped. But the air was ripe with a Carnival atmosphere. How appropriate, you have to be Brazilian  to be able to pronounce the name Ocimar Versolato.”

Esse é o trecho de uma reportagem do jornalista neozelandês Tim Blanks, exibida no programa Fashion File, da TV canadense. Naquele outubro de 94, Blanks registrou os bastidores lotados e a atmosfera de Carnaval, como ele definiu, do segundo desfile de Ocimar Versolato em Paris. 

A coleção, batizada de Anjos do Inferno, transformava tecidos normalmente associados ao guarda-roupa masculino, como tricoline e lã fria, em vestidos com decotes, recortes e fendas que seduziram a plateia. Eram apenas 21 looks, mas eles foram o suficiente para firmar o nome do brasileiro entre as apostas mais quentes da moda naquele momento. 

O sucesso ficaria ainda mais evidente no terceiro desfile, em março do ano seguinte, quando as criações do designer foram desfiladas por algumas das maiores modelos da época, entre elas, Naomi Campbell, Karen Mulder e a brasileira Gisele Zelauy. Gisele, la Belle, como a top ficou conhecida nos anos 90, foi uma das várias pessoas com quem a gente conversou para este podcast nos últimos três meses, na tentativa de montar esse quebra-cabeça complexo chamado Ocimar Versolato. 

A modelo, que vive há muitos anos em Nova York, acompanhou de perto os primeiros anos de carreira do brasileiro em Paris e falou um pouco da dualidade que marcava a personalidade de Ocimar.

“Ele estava no caminho certo. As pessoas estavam abrindo as portas pra ele por causa do jeitinho dele, super naïf, assim, mais nice. Só que ele tinha uma língua acid. Aí, batia o veneno, ele virava, era outra pessoa. Como se ele fosse o Dr. Jack and Mr. Hyde. Ele tinha os dois lados que oscilavam no matter when. Ele não tinha um filtro. E ele era aquela coisa luz e sombra. Era superlight e o dark.”

Gisele conta que mesmo o lado dark de Ocimar era superdivertido. Essa, por sinal, foi uma característica citada por todos os entrevistados. O estilista tinha definitivamente um senso de humor afiado e, quando queria, sabia ser sedutor e carismático como poucos. Inteligência e talento, aqui, não foram colocados em dúvida por ninguém. Mas alguns entrevistados também apontaram um lado cruel e vingativo do estilista, que deixou muita gente magoada pelo caminho. 

Antes de entrar nesses detalhes e se aprofundar no trabalho do designer, no entanto, a gente tem que voltar para o início de tudo. E a história de Ocimar Versolato começa no ABC paulista, em São Bernardo do Campo.

“Então, o Ocimar sempre foi diferenciado, né, Patricia? Sempre.”

Essa é Omara Versolato Calandreli, a única mulher numa família de seis irmãos: Odamar, Ocimar, Omara, Omar, Antonio e Francisco. E essa interrupção na sequência de nomes começados com a letra O tem uma explicação. Antonio e Francisco são filhos do segundo casamento da mãe, Maria Aparecida Versolato Calandreli.

O pai de Ocimar, Odaci Calandreli, morreu em 1965, juntamente com o cunhado Roque, em um acidente de barco, durante uma pescaria em alto-mar na região de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. Na época, Odaci e Roque trabalhavam na empresa de móveis da família, que tinha fábrica e lojas próprias em São Bernardo. 

A tragédia interrompeu a linha sucessória na tradição moveleira dos Versolato na cidade e deixou Maria Aparecida viúva aos 27 anos, com quatro filhos pequenos. Ocimar, o segundo mais velho, tinha só quatro anos de idade. Três anos depois, Maria se casou novamente e teve mais dois filhos com o médico e professor universitário Antônio Nunes de Oliveira.

Pra Omara, Ocimar nasceu com um dom, e mostrava suas habilidades desde pequenininho. Guardanapos viravam saias plissadas pras bonecas Susi da irmã. E, com a mãe, professora de corte e costura, o menino começou cedo a dar palpite nos moldes.

“Pelo fato da minha mãe ser professora de corte e costura, então, ele era muito pequeno. Ele ficava de madrugada. Então, a mamãe tinha que apresentar algum trabalho, fazer alguma coisa, ele, desde pequeno, ele já dizia para minha mãe: “Não, mãe, e se você não fizer assim, fizer assim. Então, ele mudava o molde e explicava para minha mãe, entendeu? Então, ele nasceu com dom. É um dom. Então, a minha mãe olhava e falava: “Mas será que vai dar certo?” E a minha mãe fazia e dava certo.”

E o comportamento precoce de Ocimar não se resumia à essa inclinação pra moda, como conta o irmão mais velho, Odamar.

“Ele era chato quando era criança. Assim, ele sabia receber pessoas em casa, com 5, 6 anos de idade. Então, tem algumas coisas assim no Ocimar que eram características de nascimento dele, de… Tipo, a minha avó fazia strudel. Putz, que é fantástico. E ele sabia o corte que tinha que dar no strudel. Sabe assim?”

Odamar é artista plástico e, como Ocimar, morou boa parte da vida em Paris. Na longa conversa que a gente teve com ele no estúdio da Compasso, onde é gravado este podcast, Odamar levou recortes de jornal, convites de desfiles e fotos de Ocimar ainda criança. E lembrou também do papel que o avô materno teve na formação dos irmãos.

“Então, meu avô tinha uma educação de base normal, como todo mundo da época tinha. Qualquer pessoa comum tinha. Só que meu avô assinava algumas revistas que eram muito interessantes. Aquelas seleções de Reader’s. Assinava dois jornais, um era o Diário da Noite e o outro era o Jornal da Tarde. E tudo que vinha, assim, de arte, ele me passava. Ele segurava e falava: ‘Ó, lê aí, né?’ História de Rothko, Picasso, Sam Francis, tal. Isso tudo eu aprendi ali, com 5 anos de idade. E o Ocimar, em contrapartida, meu avô também passava pra ele o interesse que vinha. De coisas sociais, de atitudes que pessoas tomaram. Principalmente, vamos supor… Kennedy, não sei o quê… Tinha morrido, fazia pouco tempo, né? Mas já falava do assassinato, quem é que matou, quem não matou, tal, tudo. Ocimar gostava muito dessas coisas assim. E tinha, não sei se era o Faces ou o Life, que de vez em quando aparecia. Aí era a revista do Ocimar, né? Era Jackie O., o Onassis, ele não entendia como… Era o assunto dele, tá? E era diferente de uma criança.”

A diferença de idade entre Ocimar e Odamar é de apenas um ano: Odamar nasceu em 1960 e Ocimar é de primeiro de abril de 1961. Os dois ficaram especialmente próximos na adolescência, frequentando tanto baladas quanto programas culturais com a mesma assiduidade.

“Assim, essa liberdade, eu e o Ocimar, a gente já começou muito cedo. Com 13, 14 anos. A sair. A ir pra noite. Frequentar. Ver. Principalmente peças de teatro. Eu sei que chegou uma época que eu não aguentava mais ver peça de teatro, porque o Ocimar… Assim… Caiu na cabeça dele que ele tinha que assistir tudo que era teatro. Falou: teatro. Vamos ver o que tá passando. Ele tava maluco com esse negócio de teatro.”

A morte do caixeiro-viajante, de Arthur Miller, e O Santo Inquérito, de Dias Gomes, foram duas peças que Odamar lembra que mexeram com o irmão. Ele acredita que Ocimar se conectava com algumas obras que remetiam à sua própria história, em especial, com o episódio da morte precoce do pai. 

“E o Ocimar, nesse quesito, ele mantinha essa coisa de sempre… retornar nas obras algum momento que pegasse ele. Que levasse ele pra aquele universo de perda. Pra aquela coisa de… Sabe? É… Não sou coitadinho. Sabe? Se é pra brigar, vamos brigar de igual. Vamos dar porrada um no outro e vamos embora. Um morre.”

Mas nada teria um impacto maior para aquele adolescente do ABC do que um show que os dois foram assistir em Santo André, nos anos 70.

“Eu virei pro Ocimar e falei assim: ‘Olha, vai ter um show de uma banda nova, lá em Santo André. Ninguém sabe nada deles e tal. Você quer ir comigo?’ Ele falou: ‘Quero”. E a gente pegou o ônibus e fomos, num domingo à tarde. Chegamos lá… Nossa, eu achei demais aquilo. Mas o Ocimar não achou demais aquilo. O Ocimar achou aquilo a coisa da vida dele! O Ocimar estava em êxtase. De um jeito que eu nunca tinha visto ele. Não sabia nem que aquilo era um êxtase. Saímos, ele não falou nada. Eu falando – deu pra perceber que eu sou tagarela –, a gente saiu conversando, pegamos o ônibus. E aí ele virou pra mim e falou assim: ‘Eu já sei’ – a única coisa que ele falou depois do show – ‘Eu sei o que eu quero da minha vida’. ‘O que que é?’ ‘Eu quero ser igual aquele cara que cantou’.”

“Aquele cara” era Ney Matogrosso e a banda em questão era o Secos e Molhados, que poucos dias depois iria fascinar e escandalizar o Brasil com uma apresentação no Fantástico, o show da vida dominical da Rede Globo. 

A influência de Ney, que mais tarde usaria figurinos de Ocimar em seus shows e se tornaria um de seus melhores amigos, perdurou por toda a vida do estilista. E o impacto não foi só artístico. Ver Ney Matogrosso naquele palco, com o rosto pintado, o torso nu e um jeito de cantar e dançar que desafiava qualquer convenção de gênero, virou uma chave na cabeça de Ocimar.

“E o Ocimar fica assim, meu, você não segurava mais ele! Então, acho assim… Ele vem a ter a questão dos relacionamentos com 15, 16 anos. Mas eu percebi que ali, a sexualidade dele… Aquele show fez com que ele começasse a entender dali pra frente como se comportar sexualmente, tá? Mas eu sei que foi naquele show que a cabeça dele abriu. Que ele viu aquela roupa, que ele entendeu que era aquilo que ele queria fazer. Ele viu aquela maquiagem, ele viu que o cara não era um bobo. Não era um cidadão qualquer. Que ele tinha coisa pra dizer. E o Ocimar achava que tinha muita coisa também pra dizer. E isso eu achei, assim… Pra mim, é o momento do Ocimar. Como pré-adolescente, foi esse.”

Ocimar, como conta o irmão mais velho, resolveu cedo essa questão da sexualidade. E pôde viver intensamente aquela virada pros anos 80, antes do surgimento da Aids, quando tudo parecia que ia dar certo.

“E a noite era muito viva. Tipo, as mães saíam com os filhos, né? Então, numa boate, você encontrava um filho de 18 anos com a mãe, que saía junto. E tudo era muito livre. Sexo era muito livre, muito aberto. Você podia fazer com quem você quisesse, a hora que você quisesse, né?”

Esse é Georges Robert. Filho de pai grego e mãe alemã, Georges viajou o mundo como professor de inglês, trabalhou na empresa da família, que comercializava gaiolas de ratos e camundongos, e teve por dez anos uma pousada LGBT+ em Maresias e hoje é artista plástico. E, muito antes de tudo isso, Georges foi namorado de Ocimar.

“Então, eu fui o primeiro namorado, acho que dele. Ele foi o meu, desculpe.”

Georges conheceu Ocimar em 1981, na boate Off, que funcionou no Itaim Bibi, em São Paulo, até meados daquela década. Ele conta que o lugar tinha uma hostess na porta, que decidia quem podia e quem não podia entrar, no estilo do Studio 54, e que a pista parecia um iglu, com acrílicos pendurados no teto, simulando estalactites. E foi nesse ambiente meio Era do gelo que ele viu o estilista pela primeira vez.

“Bom, aí eu fui conhecer esse lugar, e tava bem vazio. E aí eu vi um menino superbonito, que era o Ocimar, ele era lindo. E ele veio conversar comigo, a gente tinha um amigo comum, que se chamava Christos, que era o amigo dele, que por coincidência era grego, e meu pai é grego. Então, aí a gente começou a conversar. Só que eu não tinha experimentado nada, mas ele era lindo. Ele era magro e lindo.”

Georges tinha 18 anos na época e Ocimar era um pouco mais velho, tinha 20 anos. Em seis meses de namoro, com mais um tempinho de idas e vindas, Ocimar apresentou a Georges o circuito mais fervido de São Paulo, onde boates como a Nostro Mundo e a Homo Sapiens reuniam a comunidade gay, e drags lendárias, como Kaká di Polly, reinavam na noite.

“Ele morava na Consolação, do lado do Nostro Mundo, que era uma boate que existia. E ele dividia o apartamento com um militar, que eu não me lembro do nome, mas era gay também, que não gostava de mim. E aí eu comecei a ir direto pro apartamento dele. Ele era amigo de modelos, e então eu fiquei amigo delas também. Bom, aí ele começou a me mostrar um monte de coisas. Primeiro, a vida gay, como era. Então, os gays se chamavam de entendidos. E como era pré-Aids, tipo 81, 82, era todo mundo liberal. Então os caras andavam de mão dada. E… não sei, foi uma época muito livre, né?”

Entre as várias entrevistas que a gente fez pra este podcast, Georges foi o único ex-namorado com quem a gente conversou. E olha que não foi por falta de procurar. Apesar de Ocimar ter tido, sim, outros relacionamentos, a impressão que fica, e é confirmada por amigos e familiares, é que ele nunca teve um grande amor na vida, e que esse tipo de envolvimento sempre ficava em segundo plano. Ocimar foi um amigo presente, era extremamente ligado à família e, acima de tudo, muito dedicado ao trabalho. As relações amorosas não estavam na lista de prioridades. Georges também atribui essa falta de interesse a outro lado que já estava aflorando em Ocimar.  

“Um lado que estava aflorando, né? Que era o lado do dinheiro, o lado da ambição. E o lado de querer muito alguma coisa, mesmo sem medir muitas consequências, né? E ele ia em frente. Ia atrás do que ele queria, que era a fama, que era dinheiro, né? E isso era o mais importante, né, pra ele.”

Bom, Ocimar, de fato, sabia o que queria. Com 16 anos, ele já tinha aberto uma pequena confecção com o irmão, Odamar. Como não havia um curso de moda no Brasil, na época, ele entra na faculdade de arquitetura aos 18 anos e consegue um emprego em um escritório da área. Mas logo abandona os dois e volta a se dedicar à confecção.

Ocimar e o Odamar passam a vender as peças para lojas de shopping e logo chamam a atenção de um cliente, que propõe um acordo de exclusividade.

No livro de crônicas autobiográficas Vestido em Chamas, que lançou em 2005 pela editora Aleph, Ocimar conta que se tornou sócio do ex-cliente e que a empreitada ia muito bem. A empresa já contava com mais de 200 costureiras, e Ocimar desenhava os modelos, cuidava das modelistas e supervisionava as entregas. Em dado momento, no entanto, o sócio resolveu substituir Ocimar por outro estilista, por sugestão do diretor comercial, que achava que ele não tinha talento algum.

Ocimar conta que, ao ser perguntado pelo sócio qual era o sonho da sua vida, ele responde que era o de ser o maior estilista do mundo. O sócio dá a ele então um envelope lacrado e diz: “Parece que enfim chegou a hora de ser o maior estilista do mundo. Aí está tudo o que você precisa: passagem aérea e 3 mil dólares. Vá para Paris.”

Os irmãos Omara e Odamar acham que Ocimar deu aí uma romanceada nessa demissão, com a história da passagem e dos dólares no envelope. Mas fato é que, com esse acerto de contas, Ocimar finalmente começou a executar o plano que tinha há muito tempo, desde que assistiu a um desfile do Studio Berçot no quadro da jornalista de moda Cristina Franco, no Jornal Hoje, aos 13 anos.

“O Studio Berçot era, digamos, a escola de moda. Porque não tinha faculdade de moda. Mas… Não só de vanguarda, mas era aquela escola de moda que quem saía de lá virava um estilista como criador. Assim, uma pessoa que tinha um talento criativo, excepcional. Meio que a Saint Martins, hoje. Na época, era o Studio Berçot.” 

Quem explica aqui pra gente a importância do Studio Berçot é Lilian Pacce, uma das jornalistas de moda mais tarimbadas do país. Mais pra frente, a Lilian vai falar sobre a complicada relação de Ocimar com a imprensa nacional e de como ela passou da fila A pra um standing, que é o lugar de pé, nos desfiles do brasileiro em Paris. Por enquanto, neste episódio, a Lilian vem só dar a dimensão do Studio Berçot e de Marie Ruckie, a francesa que dirigiu essa instituição por mais de cinco décadas.

“E a Marie Rucki, ela tinha uma capacidade de extrair das pessoas essa potência. E ela percebia muito rapidamente. Sabe quem… Assim, porque ela deu muitas aulas aqui no Brasil, ela fez muitos cursos em parceria com a Rhodia. E ela me falava, não, esse vai, esse não vai. Ela já sabia quem que ia e quem que não ia. As qualidades e defeitos de cada um, sabe? Tipo, esse aqui, se superar tal coisa, vai para frente. Esse, não. As marcas procuravam o Studio Berçot para contratar as pessoas. Os estagiários, os assistentes e tal. Então, era muito dinâmico.”

Assim que surgiu a oportunidade, Ocimar se matriculou em um dos cursos que Marie Rucki veio ministrar no Brasil nos anos 80. E vale aqui reproduzir a descrição que ele faz dela no seu livro:

“Marie Rucki era uma mulher de meia-idade, rosto simpático e olhos afetuosos. Dona de instintos apurados para novos talentos, trajada em elegante saia de algodão, camisa masculina com nó na frente e sapatos baixos, Marie é um marco no universo da moda e sua aparência merece um comentário à parte. Ela mantém os cabelos bem cortados em estilo Chanel. Nunca usa joias ou calças. Está sempre de saia, todas com o mesmo comprimento, um pouco abaixo do joelho, respeitando, assim, um dos princípios de mademoiselle Chanel: nunca mostre os joelhos nem os cotovelos, pois são as partes mais feias do corpo da mulher.”

Durante o mês que durou o curso, Ocimar não só se esforçou para se destacar nas aulas, como também acompanhou Marie em passeios por São Paulo, gastando todo o francês que estava aprendendo em aulas noturnas. Quando se despediram, Marie o incentivou a se matricular no Studio Berçot. E, em 1987, Ocimar deixou o Brasil para ir atrás do sonho de ser o maior estilista do mundo em Paris.

Nesse início de vida na França, em paralelo às aulas no Studio Berçot, Ocimar virou um frequentador assíduo do Centro George Pompidou, onde passava tardes lendo livros de arte. Também fazia maratonas de visitas a galerias, exposições e filmes, pra tentar superar o desnível de conhecimento que sentia existir entre ele e os colegas franceses.

Bem, ele realmente superou esse desnível e não só. Quando se interessava por um assunto, Ocimar estudava aquilo com obstinação, como conta a sobrinha Yasmine, com quem ele teve uma relação muito próxima, e hoje vive em Madri, na Espanha.

“Viajamos muito juntos ele me apresentou muita coisa, mas principalmente esse gosto por ir a museus. Cada obra de arte ele sabe dizer o pintor, o ano, o porquê ele usou cada cor, porque ele usou a iluminação. Então, para mim, é uma maravilha ir com ele a qualquer museu do mundo, porque ele era como um audioguia! Ele sabia tudo, tudo, tudo. Ele era muito curioso, ele estudava muito, muito ele sempre estava buscando conhecimento – desde pedra preciosa até um Goya. Um dos nossos passeios favoritos aqui em Madri era ir ao Museu do Prado e entrar nas esculturas negras de Goya. Era o nosso programa favorito.”

Pra arcar com as despesas em Paris, Ocimar começou a fazer figurinos pra peças de teatro e, informalmente, roupas pra eventuais clientes. Mas esses bicos não fechavam as contas e o brasileiro não conseguiu mais pagar a mensalidade do Studio Berçot.

Depois de três meses de inadimplência, Ocimar foi chamado à sala de Marie Rucki pra explicar o que estava acontecendo. Segundo seu relato no livro, Marie permitiu que ele continuasse a frequentar as aulas de graça e teria dito ainda que: “Nenhum desses milionários que estudam aqui tem talento, de forma que só servem para pagar o curso daqueles que têm, mas, normalmente, não podem pagar, como é o seu caso”. 

O Studio Berçot fechou as portas em 2023, depois de 69 anos de existência, mas Marie Rucki continua viva e atuante. E a gente conseguiu entrar em contato com ela, por meio da sua filha, Anne Rucki, que também conheceu Ocimar e, inclusive, trabalhou com ele depois que ele se formou. A Marie respondeu as perguntas por email, por isso, a gente convidou a diretora editorial da ELLE Brasil, Susana Barbosa, pra ler as respostas dela.

E se você está fazendo contas aí pra tentar descobrir a idade da nossa entrevistada, já vou ter que avisar que não tem essa informação aqui. Por dever jornalístico, eu cometi, sim, a indelicadeza de perguntar quantos anos Marie tem e se continuava trabalhando após o encerramento do Studio Berçot. E ela respondeu na maior elegância: 

“Sim, continuo fazendo coisas que me interessam, especialmente um belo livro que está por vir. Já não tenho idade – isso não conta mais. Estou entre a Terra e o Céu.”

Sobre a conversa relatada por Ocimar no livro, Marie negou ter feito o comentário sobre os alunos milionários:

“Eu jamais teria falado dessa maneira sobre quem quer que fosse. A situação financeira de uns e de outros não diz respeito a ninguém. Mas, no caso de Ocimar, devo ter dito que compreendia seus problemas financeiros e que ele poderia continuar mesmo assim.”

Sobre o estilo das criações do ex-aluno, Marie disse que Ocimar gostava mais da construção do que da matéria. Ou seja, era mais um arquiteto do que um pintor. E que se interessou imediatamente pelo brasileiro por uma razão simples: 

“Ele era capaz de trabalhar com habilidade e muito rapidamente. Conseguia materializar suas vontades, mas não no papel, que não era sua melhor forma de expressão. Isso me agradou muito, porque me fazia lembrar grandes estilistas daquela época.”

Depois de dois anos, Ocimar se formou e fez valer a bolsa de estudos concedida por Marie. Foi eleito o melhor aluno do Studio Berçot e, como tal, viajou a Zurique, na Suíça, para representar a França no concurso Reencontro de Jovens Talentos.

Mais uma vez, o jovem de São Bernardo do Campo levou a melhor: conquistou o primeiro lugar com a bênção do convidado de honra do júri, o estilista Christian Lacroix. O concurso teve uma boa cobertura da imprensa e, com o nome em reportagens de jornais europeus, Ocimar já sentia o gostinho do que estava por vir. Pelo menos, da parte boa.

Em seu livro, ele relata que quando teve que fechar o ateliê de alta-costura, anos depois, se lembrou de uma das conversas que teve com Marie Rucki. Ela dizia que dinheiro e fama eram coisas boas, mas não podiam se tornar mais importantes do que a própria criação.  

Nessa passagem, Ocimar faz uma espécie de mea-culpa. Ele diz que Marie o fez prometer que ele não ficaria pretensioso como outros ex-alunos, que se tornaram estilistas famosos e se esqueceram dos amigos que fizeram parte desse processo. 

“Naquela oportunidade”, escreve Ocimar, “o sucesso para mim era algo muito distante, parecia impossível de acontecer. Contudo, aos poucos, foi acontecendo, e Marie sempre esteve presente ao longo dessa jornada, evidentemente me lembrando da promessa que havia feito. Infelizmente, não consegui cumpri-la. Segui a mesma trilha dos outros estilistas. É praticamente impossível ficar indiferente ao sucesso. Foi muita pretensão minha achar que poderia dar uma de superior, que tiraria essa situação de letra. E tudo isso serviu para que eu descobrisse que, no fundo, sou igualzinho a todos, e  que Marie era realmente um gênio!”

Eu reproduzi esse trecho do livro pra Marie Rucki. Perguntei se Ocimar a tinha decepcionado em algum momento e, caso tivesse, se ele tinha conseguido se redimir antes de morrer. E a resposta de Marie foi com a mesma elegância das anteriores.

“Ocimar era um homem simpático e espontâneo. Eu conhecia suas qualidades e, infelizmente, também suas fragilidades – a principal delas era a não aceitação do mundo da moda com suas regras implacáveis. Não tenho lembrança dessa conversa. Ocimar era muito jovem e não teve tempo de compreender as regras da sociedade.” 

No próximo episódio de Ocimar Versolato do Avesso:

“Eu nunca tinha ouvido falar dele, de repente ele estava em todos os lugares, né? De repente assim, cheguei a fazer o desfile, eu falei: ‘Nossa!’ Eu falei: ‘Gente, parece que eu estou fazendo Dolce & Gabbana, parece que eu estou fazendo Chanel’ Todas essas meninas aqui, era incrível. Realmente, é… São poucos os que conseguem.”

“E aí quando ele foi fazer esse desfile, ele me explicou, ele falou: ‘Vera, eu quero desconstruir a tua imagem, sabe? Eu quero botar você com uma… Uma roupa preta. Mas eu quero que você use uma peruca branca, parecendo uma coisa louca. E aí ele sugeriu… Eu não sei se era uma saia longa ou era uma calça pantalona longa, com aquele… Com uma coisa transparente preta, toda bordada por cima. Então ele falou pra mim assim… Ah, eu tenho um sutiã assim. Eu falei, vamos usar sem sutiã? Aí ele falou, você tem coragem? Eu falei, eu tenho! Eu estou fazendo uma coisa diferente. E foi um furor no dia do desfile! Porque as outras atrizes também estavam meio caracterizadas. Mas o meu chamou muito a atenção.”

“Daí tem o desfile da Lanvin, que foi uma das coisas mais chatas e equivocadas que eu já vi na minha vida. Acho que ele fez, assim, cento e… Era, assim, mais de cem looks.”

“Ele achava que ele tinha o right de insult. E ele falava o que ele queria. Ele não tinha medo de fazer inimigos. Ou talvez ele nem achasse que o que ele estava falando era tão venenoso ou tão detrimental.”

A estreia de Ocimar na semana de moda parisiense, a entrada na Lanvin e as tretas pelo caminho. Não perca!

Ocimar Versolato do Avesso é um podcast jornalístico produzido pela ELLE Brasil e faz parte da série Do Avesso, que resgata grandes nomes da moda brasileira. O primeiro biografado foi Clodovil Hernandes, que teve sua trajetória destrinchada em seis episódios, também disponíveis nas principais plataformas de áudios. Reportagem, roteiro e narração, Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Gravação e finalização: Compasso Coolab. Trilha sonora original, In Sonoris Causa. 

Este episódio usou trechos do programa Fashion File, apresentado por Tim Blanks e exibido pelas TVs CBS Television e CBS Newsworld, do Canadá, da abertura do Fantástico, exibido pela Rede Globo, e do quadro Ponto de Vista, apresentado por Cristina Franco, no Jornal Hoje, da Rede Globo.

 

 

 

 

 

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes