Clodovil do avesso: a guerra das tesouras
Segundo episódio aborda os primeiros anos de Clodovil em São Paulo e a disputa entre os costureiros dos anos 1960, incluindo a histórica rivalidade com Dener.
Ouça Clodovil do Avesso em: Spotify | Apple Podcasts | Amazon Music | Google Podcasts | Deezer
Se preferir, você também pode ler este podcast:
O ano é 1956. Juscelino Kubitschek acaba de ser eleito o presidente do Brasil e o país vive o auge dos Anos Dourados, em plena euforia desenvolvimentista e na expectativa de um crescimento econômico como nunca havia se visto. Afinal, JK assumiu o governo sob o lema “Cinquenta anos de progresso em cinco anos de governo” e os seus eleitores apostavam que o mineiro ia conseguir.
Já a família de Clodovil não estava em sua melhor fase. Domingos Hernandes tinha perdido o seu armazém de secos e molhados em Floreal e o dinheiro estava curto. Na cidade com a economia movida pela agricultura, muita gente só pagava depois que recebia o dinheiro da safra. Domingos vendia fiado e levava calote, até que acabou quebrando.
Leia também:
Clodovil do avesso: o menino que desenhava
Clodovil, por sua vez, não conseguiu se manter em São Paulo sem a ajuda da família. Desistiu dos planos da faculdade de Filosofia e voltou a morar com os pais. Parecia o fim do sonho da carreira de costureiro, que mal havia começado. Mas Clodovil iria receber uma ajuda inesperada.
Eu sou Patricia Oyama.
E eu sou Gabriel Monteiro.
E este é o segundo episódio de Clodovil do Avesso, o podcast da ELLE Brasil sobre Clodovil Hernandes. Dessa vez, a gente vai destrinchar os primeiros passos de sucesso como costureiro e a chamada Guerra das Tesouras, travada principalmente com Dener.
Em 1956, no mesmo ano em que JK toma posse na presidência do Brasil, os Hernandes deixam Floreal, no interior paulista. Eles se mudam para Mandaguari, no norte do Paraná, que era um pólo produtor de café e estava em um momento promissor – a avenida principal era completamente asfaltada e a cidade tinha até aeroporto próprio.
A essa altura, Clodovil não era mais um estudante. Com o diploma do Curso Normal, recém-concluído, e as suas habilidades artísticas, ele conseguiu um emprego de professor de desenho na Escola Estadual Vera Cruz, no curso ginasial.
E, aqui, aquela contextualização rápida: o ginásio equivale hoje ao Ensino Fundamental 2, que vai do 6º ao 9º ano. Ou seja, Clodovil dava aulas para alunos que tinham entre 11 e 14 anos de idade.
Pelo contrato com a direção da escola, a carga horária de Clodovil era de apenas 15 horas semanais. Então, o jovem professor tinha tempo de sobra para se dedicar a uma atividade paralela: a de criar vestidos para as mulheres da sociedade de Mandaguari.
E a fama de Clodovil não demorou a se espalhar pelas redondezas. Ele também começou a ganhar clientes em Londrina, a 70 km dali e, por volta de 1957, fez o primeiro desfile de sua vida no salão do aeroporto da cidade.
Tanto burburinho em torno do rapaz acabou chamando a atenção do prefeito da cidade, Elio Duarte Dias. Nascido em Minas Gerais, Duarte Dias foi para Mandaguari para trabalhar como dentista e acabou conquistando dois mandatos na prefeitura.
E fez um trabalho bem elogiado: implantou um sistema de creche em período integral, asfaltou as vias principais da cidade e ganhou até o prêmio de oitava melhor administração do Brasil, dado em mãos por Juscelino Kubitschek.
Mas, aqui pra nossa história, o que ele fez de mais revolucionário foi apostar no talento do professor de desenho da Escola Vera Cruz. O prefeito resolveu pagar uma passagem de avião e dar uma ajuda inicial para aquele jovem tentar a vida na capital paulista. E, então, Clodovil se muda novamente para São Paulo. Dessa vez, disposto a fazer acontecer.
Nos seus primeiros anos em São Paulo, Clodovil trabalhou em esquema de freelancer.
Ele vendia desenhos de moda na Rua Barão de Itapetininga, que liga a Praça da República ao Theatro Municipal, e, na época, era considerada a rua da moda, em São Paulo.
Depois, começou a trabalhar como figurinista (o termo mais comum naqueles tempos, para designar um costureiro), em butiques como a Scarlett Modas, de Maria Augusta Teixeira. Dener já havia trabalhado lá, mas este é um nome que a gente fala mais daqui a pouco.
Na virada dos anos 1950 para os 60, Clodovil começa a trabalhar na La Signorinella, na Rua Maranhão, em Higienópolis. E é lá, numa dessas casas de madames, onde ele passa a ganhar destaque. João Braga, professor de História da Moda na FAAP e de história da arte na Faculdade Santa Marcelina, explica a importância desses ateliês:
Esses ateliês, essas casas de costura, elas têm uma importância muito grande, porque ajudam a criar esta aura de sofisticação da moda. E antes desses costureiros, nós tivemos o período das madames. Sim. Madame Rosita, madame Boriska, aqui em São Paulo, e tinha as madames no Rio, em Florianópolis, Porto Alegre, tudo mais. Então a moda brasileira deve muito a essas senhoras judias, que vieram para o Brasil com conhecimento técnico e começavam a fazer essa moda mais sofisticada. Algumas chegavam até a industrializar também.E muitas dessas casas convidavam jovens que tinham um bom desenho, que estavam trazendo um novo ar dos tempos.
Digamos que Clodovil estava no lugar certo, na hora exata. Nessa fase, entre as décadas de 1950 e 60, a indústria têxtil brasileira estava investindo pesado para se modernizar e se fortalecer. Começaram a surgir, então, os primeiros desfiles de moda no país, com a participação dessas casas de costura apresentando suas coleções em passarelas montadas em eventos.
Umas das ações do setor na época, por exemplo, foi a criação do Festival da Moda em 1955, promovido pela Matarazzo-Boussac, que, por sua vez, era uma associação das Indústrias Matarazzo, de São Paulo, com o industrial têxtil francês Marcel Boussac.
O professor João Braga lembra como foi aí que a cultura da moda no Brasil começou a florescer.
Esses eventos tinham também muito uma intenção de caráter social. Costumavam ser eventos beneficentes. Porque no momento em que é um evento beneficente, ele ganha um determinado valor ou ganhava um determinado valor. Então, esses desfiles que aconteceram a partir dos anos 50 via Rio de Janeiro, depois São Paulo ainda, no final dos anos 50 e nos anos 60, eles contribuíram, sim, muito para a formatação de uma cultura de moda no Brasil. Era para valorizar a produção dos nossos tecidos. Foi ganhando um corpo ou outro, que passou a ser uma feira com o tempo, obviamente, uma feira de confeccionados. Você mostrar um tecido numa vitrine, ou colocar um busto e colocar um tecido, simulando uma roupa, tem, sim, uma visualidade. Mas se você faz uma roupa com aquele tecido, ganha um corpo maior. As pessoas entendem melhor a possibilidade daquilo virar uma roupa.
Pois bem, foi no Festival da Moda, em 1960, onde Clodovil ganhou o troféu Agulha de Ouro por um traje criado via Signorinella.
A Agulha de Ouro era dada à melhor criação de moda-esporte, que, no caso, tratava-se de um tailleur listrado de popeline cinza e branco, desfilado com um chapéu de aba curta e scarpin branco.
Numa passarela em que predominaram os modelos ultrafemininos, com cintura bem marcada, Clodovil mostrou que estava um passo à frente. O look que ele apresentou era uma roupa de homem feita para uma mulher, como ele explicaria mais tarde.
Não à toa, o modelo foi batizado de George Sand, o pseudônimo da escritora francesa do século 19 Amandine Lucile Dupin. Além de escrever romances sob um pseudônimo masculino, para ser aceita no meio literário, Amandine também usava eventualmente roupas masculinas, que ela considerava muito mais práticas que os espartilhos da época.
“O Clodovil era mestre no Flou. Sabe o que é o Flou? Flou é francês. Flou é Musseline. Ele sabia trabalhar muito bem com musseline, organza, esses tecidos leves.”
Sim, a voz que você acabou de ouvir é a de Ronaldo Esper. O costureiro contemporâneo de Clodovil ficou famoso por suas alfinetadas, inclusive no próprio Clo. Mais pra frente a gente vai tratar dessa relação complexa entre os dois, mas, aqui, vale ouvir uma característica do trabalho de Clodovil que o fez ganhar o seu segundo prêmio no Festival da Moda.
E dessa vez, foi o prêmio máximo: a Agulha de Platina, justamente por um vestido de musseline, considerado o melhor traje de gala. Batizado de Turandot, ele era em degradê amarelo e, por cima do longo sem alças, havia uma espécie de túnica translúcida e o busto tinha pedrarias.
O traje também foi feito para a Signorella e o nome do modelo mostra mais uma vez as super referências do Clodovil. Turandot era o nome da personagem principal da ópera homônima de Giacomo Puccini. Ela era uma princesa chinesa, bela e cruel, que odiava os homens e jurou nunca se casar. Para se livrar dos pretendentes, Turandot impôs uma condição: só se casaria com quem adivinhasse os três enigmas propostos por ela. Quem errasse era decapitado.
Bom, mas apesar dos prêmios rolando e o sucesso batendo à porta, a verdade é que os primeiros anos de Clodovil em São Paulo não foram fáceis. A vida, que já era apertada, piorou em 1961, quando o seu pai, Domingos Hernandes, morreu em um acidente de caminhão em Mandaguari. Dona Isabel se mudou para São Paulo e foi morar com o filho.
Domingos não deixou nenhuma herança e Clodovil viveu tempos duros com a mãe. As coisas só não eram piores porque eles contavam com a ajuda de duas benfeitoras.
Em 2006, em uma entrevista ao repórter Ronaldo Ruiz, Clodovil contou que viveu meses sustentado por dona Abigail, amiga de Isabel e dona da casa em que eles foram morar após a morte de Domingos.
Dona Abigail era dona da casa onde eu morava com a mamãe, quando meu pai morreu. E eu nunca descobri as coisas que ela fez, a não ser muito tempo depois, porque a mamãe tinha um pacto com ela, a mamãe nunca me contou nada. Eu fui procurá-la e ela não me recebeu. Ela disse que o que ela tinha feito por mim era exatamente acreditando naquilo tudo que eu seria. E ela nunca me cobrou nada. Ela tinha me dado a linha telefônica… Na verdade, eu não tinha dinheiro pra comer porque era muito pobre, meu pai morreu e não deixou absolutamente nada, também não precisava deixar mesmo. E a mamãe quando veio morar comigo, era uma vida dura, muito dura. E em casa nunca faltava comida. E eu nunca perguntei nada, porque a gente não pergunta isso. Eu achava que minha mãe tinha um dinheirinho guardado e tal. E não era verdade, era a dona Abigail que nos sustentava. Durante meses ela nos sustentou.
Na mesma entrevista, ele relembra também da ajuda de Dora Cavalcanti Ferraz, uma mulher rica, que disponibilizava seu carro com motorista particular para que Clodovil não passasse por pé-rapado nesse novo mundo em que ele estava tentando ingressar.
Essa senhora, ela foi muito querida comigo, numa época, logo no começo da carreira, quando papai morreu e tal, que a mamãe veio. Ela punha o carro de na porta de casa com motorista pra dar a aparência que eu estava bem. Ela não queria que as pessoas soubessem que eu estava recomeçando uma vida.
Afinal, em paralelo, acontecia a ascensão da sua imagem. E Clodovil foi galgando esse espaço até conseguir abrir um ateliê próprio – o primeiro –, na Avenida Pacaembu, em 1962.
E foi por meio desse ateliê que ele começou a apresentar coleções mais pessoais, como uma inspirada na op-art, toda preto e branca.
Conta Clodovil, esse desfile fez ele ouvir de uma fiel cliente de Dener que ela iria jogar todo o seu guarda-roupa antigo fora, porque as roupas que ele fazia eram muito mais modernas.
“O Guilherme Guimarães era o grande costureiro do Rio de Janeiro. Grande copiador do Oscar de La Renta. Ai… Morreu já. Aliás, eu enterrei todos, graças a Deus. Eu sabia desde o começo que eu ia enterrá-los todos. Eu falei, olha, não se apresse, bobo. Você vai enterrar todos. E acho que enterrei até a suposta auto-costura brasileira, porque, depois disso, o que se faz é lamentável.”
Sentiu o clima de rivalidade? A voz é mais uma vez de Ronaldo Esper. E ele não mente quando diz que enterrou todos. Esper, que completa 80 anos em 2024, é o único da sua geração que continua na ativa, costurando para algumas poucas clientes selecionadas e dando dicas de moda na Rede TV.
Na época em que ele entrou para o ringue fashion, nos anos 1960, diziam que a rivalidade entre os novos expoentes da moda nacional era tão grande, que dava para cortar essa tensão toda no ar com uma tesoura.
Eu tinha 18 anos. Nem isso. Tinha acabado de entrar na faculdade. O Dener me acolheu e ele já tinha birra com o Clodovil. Ele falava uma grande verdade. O Clodovil era o costureiro das interioranas, das mulheres. Porque naquela época não tinha internet, não tinha nada. Então havia essa coisa que… Talvez uma tendência para chegar em Ribeirão Preto demorasse um mês. Hoje chega na hora. Então o Clodovil vestia as fazendeiras, as coisas. Porque ele nasceu no interior e ele badalava por ali e ele pegava. Mas não era gente… Não era gente, assim, vamos dizer, desprezível. Pelo contrário, eram grandes fortunas. Algumas ainda resistem, outras desapareceram. E o Dener era o… Como é que fala? O primeiro costureiro do Brasil, da granfinada brasileira. Quando eu entrei, eu entrei justamente no momento que… Esse mundo grã-fino e tudo, parece que estava procurando uma coisa nova. Aí muita gente passou para mim. Era uma disputa tremenda. Aí o Clodovil, o Dener é que falava que ele era o costureiro do interior. Das fazendeiras, das… Eu não desprezava ninguém porque, no fim, o que acontece? O vestido é uma mercadoria. Não importa se é vendido aqui, ali, acolá. É o dinheiro que entra, né? Então, o Clodovil cismou um pouco comigo. Ele fez tudo para que o meu começo não fosse adiante. O Dener, não. O Dener me apresentou para a Hebe. Eu comecei a fazer continuamente desfiles na Hebe. E o Clodovil, sempre que podia, dava uma patada.
Então, na esteira de eventos como o Festival da Moda, da Fenit e da Rhodia, com seus desfiles, os primeiros estilistas brasileiros foram se estabelecendo, marcando os seus nomes. No Rio de Janeiro, era Guilherme Guimarães, José Ronaldo, Fernando José e João Miranda. Em São Paulo, Amalfi, Ugo Castellana, José Nunes e Ronaldo Esper. No sul, Ruy Spohr. No nordeste, Marcílio Campos. E por aí vai. Mas, aqui, nós vamos nos atentar a dois nomes que costuravam e barbarizavam na cidade de São Paulo: Clodovil e Dener.
Dener Pamplona de Abreu foi o grande pioneiro entre todos esses costureiros. Nascido na Ilha de Marajó, no estado do Pará, ele se mudou para o Rio de Janeiro na década de 1940 e começou, já na adolescência, a colaborar com desenhos para a famosa Casa Canadá, de Dona Mena Fiala – a butique carioca era uma das maiores casas de madame e vestiu quatro primeiras-damas: Darcy Vargas, Santinha Dutra, Sarah Kubitschek e Dulce Figueiredo.
Dener também foi o primeiro a dar as caras na televisão. No programa de Flávio Cavalcanti, na extinta TV Tupi, o costureiro afirmava o que considerava lixo ou luxo naquele momento.
(Flávio Cavalcanti): Nove! Marisa!
(Marisa Raja Gabaglia): Nota oito.
(Flávio Cavalcanti): Oito! Dener!
(Dener): Eu acho a voz dele tão doce quanto a cara dele, porque ele parece um quindim de iaiá, né?!
E, para a imprensa em geral, soltava elogios e xingamentos à Clodovil, na mesma proporção.
Dener dizia que Clodovil era bom costureiro, mas que ele próprio já estava bem mais a frente, era um industrial. Ele atiçava o companheiro de desfiles o chamando de chato, invejoso e imitador, nas entrevistas. Enquanto isso, se gabava de ser um homem magérrimo e de olhos verdes.
Zombar da cor da pele de Clodovil, aliás, era uma das atitudes preferidas de Dener. Chamava Clodovil de “nêga-vina”, uma maneira de atacar a possível ascendência indígena ou negra do costureiro. Vina, segundo o próprio Dener, significava, abre aspas, negra retinta, carregado na cor, preto mesmo, fecha aspas.
Do lado oposto, Clodovil não deixava barato. Ele fazia piada da aparência esguia de Dener com um falso elogio, o chamando de “gênio asmático”, ou “magro feito uma caveira”. Além disso, dizia que o ódio de Dener o colocava em destaque, jogava holofote para o seu trabalho.
Fato é que a imprensa, que na época não estava nem aí pro fato dos comentários serem escancaradamente racistas e preconceituosos, se esbaldava com as faíscas e chegou a apelidar a briga de Guerra das Tesouras. Outra verdade é que tanto lá quanto cá, ambos saiam ganhando em marketing com esses xingamentos. Com aquela história de falem bem, falem mal, mas falem de mim, os dois não saíam das colunas sociais e, consequentemente, chamavam a atenção de novas clientes.
José Gayegos, que foi assistente de Dener, conta que muitas vezes esteve no meio de um arranca-rabo desses:
“O Clodovil era uma pessoa especial. Claro, ele era uma pessoa difícil, muito difícil, mas muito especial. Ele brigava com todo mundo. Comigo, nunca. A gente nunca brigou. Ele tinha muito respeito por mim como profissional. E eu também dava, de vez em quando, umas duras nele e ele aceitava. Coisa rara também.”
Deu pra pegar, né? Era um tal de morde e assopra que ninguém sabia ao certo o quanto um xingamento era verdadeiro ou um teatro com fundo de verdade. Enquanto Clodovil dizia para todo mundo que Dener havia feito um contrato para excluí-lo dos eventos da Rhodia, o costureiro também assinava junto com o parceiro-inimigo o figurino da peça Sinistra Comédia, em 1966, e os dois volta e meia eram vistos lado a lado, à noite, em boates como a Blow-Up.
Mas a Guerra das Tesouras criou cenas memoráveis, como em agosto de 1967, quando um vestido de noiva quase acabou com a festa. Era o I Festival de alta-costura, organizado pela Fenit, com Guilherme Guimarães, José Nunes, Dener e Clodovil convidados para desfilar juntos. E só havia um acordo: ninguém deveria apresentar um vestido de noiva naquele dia. José Gayegos conta mais dessa história:
Uma tecelagem japonesa que estava se instalando no Brasil. A dona da tecelagem queria que o Denner usasse um tecido. E ficou combinado que ninguém ia fazer vestido de noiva. Porque o vestido de noiva dava o grande vestido e tal. Então não ia ter vestido de noiva. Só que o Denner… Sim. Colocou o vestido no baú das roupas. Eu pensei comigo. Isso vai dar merda. E deu? E aí o que aconteceu? Chegou lá… Quando ninguém ia fazer vestido de noiva, de repente aparece o Dener com um tecido novo. E aí evidentemente o Clodovil… Por causa desse vestido de noiva, eles se pegaram. O Clodovil saiu contando que ele tinha rasgado o vestido de noiva. Isso é uma coisa que não teria acontecido, porque o Dener era franzino, mas era muito forte. Ele era um menino de praia do Rio de Janeiro. Então, ele teria ido na cara do Clodovil, de tapa. A história do vestido é real. Eles brigaram por causa do vestido. Mas não existiu essa história de que ele rasgou o vestido. Teve bate-boca, baixaria, do tipo Nega Vina, sabe? Porque o apelido do Clodovil era Nega Vina.”
Como o Gayegos disse, Clodovil podia até crescer a história mas o bafafá era sempre certo, acontecia mesmo. E se a cena de dois estilistas com egos nas alturas brigando como dois lutadores dentro de um ringue parecia roteiro de novela, a TV Globo não hesitou em levar para as telinhas essa história por meio de Ti-Ti-Ti. O folhetim de Cassiano Gabus Mendes foi lançado em 1985 e, na arte, Reginaldo Faria, como Jacques Leclair, e Luiz Gustavo, como Victor Valentim, imitavam a vida, ou melhor, Dener e Clodovil.
(Malu Mader): Quem é o costureiro?
(Yara Amaral): Victor Valentin
(Reginaldo Faria): Vamos estabelecer uma coisa? Esse nome está proibido de ser dito aqui em casa. Foi sua estreia e sua despedida. Victor Valentin morreu!
Em outro episódio de bate-boca, Clodovil diz que chegou até a ficar envergonhado pela maneira como os costureiros brasileiros se portavam. Em 1969, aconteceu o desfile Os Quatro Grandes da Moda, mais uma vez com Guilherme Guimarães, José Nunes, Dener e Clodovil. O evento contaria ainda com o estilista italiano Valentino Garavani desfilando pela primeira vez no Brasil.
A gente estava discutindo para ver quem começava antes. Se ia ou não ter noiva na passarela. Olhamos para trás e as modelos de Valentino estão organizadas, todas de lã bege e looks de execução primorosa.
Mas, claro, a língua afiada de Clo não se limitaria apenas ao mea culpa. Ele jurava também que semanas após aquela apresentação, dois de seus vestidos de noite foram copiados descaradamente pelo designer italiano.
No fim das contas, então, a rixa entre Clodovil e Dener de fato existiu ou era encenação? Durante as entrevistas feitas para esse podcast, várias pessoas que conviveram com os dois costureiros garantiram que tudo não passava de teatro e de uma esperta jogada de marketing de ambos os lados. O próprio Clodovil, em diferentes ocasiões nas décadas seguintes, afirmaria que ele e Dener, na verdade, eram muito amigos. E que ele era até grato ao colega paraense por ajudar a projetá-lo no início da carreira, como ele contou a Silvio Santos no programa de auditório Nada Além da Verdade, em 2008.
(Silvio Santos): Você tinha rivalidade com o Dener no tempo em que os dois eram costureiros famosos?
(Clodovil): Jamais, que bobagem! Eu devo minha carreira a ele. Porque ele precisava de alguém pra disputar uma primazia. Ele concorria sozinho. Então, ele precisava de alguém, e ele me estimulou muito, me ajudou muito no começo, porque ele inventou uma briga comigo. E ele passou a disputar com alguém, inclusive, eramos nós dois, nós trouxemos essa coisa da moda, que dá tanto dinheiro hoje em dia. Nós fomos os precursores. Agora, toda vez que ele concorria comigo depois dessa coisa ele perdeu.
Bom, mas agora uma curiosidade. No programa Nada Além da Verdade, o convidado respondia a várias perguntas e era submetido a um polígrafo, popularmente conhecido como detector de mentiras. A cada resposta considerada verdadeira, o participante ia acumulando um prêmio em dinheiro.
Nessa noite, Clodovil já havia respondido 18 questões e tinha sido aprovado em todas. Só faltavam 2 para ganhar o prêmio máximo de 100 mil reais. A pergunta a respeito da existência de uma rivalidade com Dener era a penúltima. E qual foi o veredito do polígrafo?
(Silvio Santos): Você tinha rivalidade com Dener no tempo em que vocês dois eram costureiros famosos?
(Clodovil): Não, magina, eu acho o seguinte, eu tenho até saudades dele, porque ele era uma pessoa divertidíssima.
(Silvio Santos): A sua resposta é não?
(Clodovil): Não.
(Silvio Santos)
Vamos ver o que diz o polígrafo!
(narrador): Esta resposta é…
Falsa!
Clodovil saiu do programa só com 15 mil reais e colocou a culpa no detector de mentiras.
Clodovil do Avesso é um podcast jornalístico produzido pela ELLE Brasil. Reportagem, roteiro e narração, Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Gravação e finalização, Compasso Coolab. Trilha sonora original, In Sonoris Causa.
Este episódio usou trechos do vídeo antigo sobre Mandaguari, da Hilton Filmes, da apresentação da ópera Turandot no Theatro Municipal de São Paulo, da entrevista do repórter Ronaldo Ruiz com Clodovil, do programa A grande chance, apresentado por Flávio Cavalcanti e exibido pela TV Tupi, do documentário Fenit – 45 anos de histórias da moda no Brasil, da primeira versão da novela Ti-ti-ti, da Rede Globo, e do programa Nada Além da Verdade, do SBT.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes