Clodovil do Avesso: a lente da verdade

No quarto episódio, o podcast da ELLE Brasil fala sobre o sucesso e as demissões de Clodovil na TV, as polêmicas e a homofobia sofrida e reproduzida por ele.


clodovil do avesso episodio 4
Arte: Gustavo Balducci



Ouça Clodovil do Avesso em: Spotify | Apple Podcasts | Amazon Music | Google Podcasts | Deezer

Se preferir, você também pode ler este podcast:

Meus queridos amigos, meu Brasil querido, boa noite! 

Olha, abre o jogo, olha para aquela lente, que é a lente da verdade e me diz uma coisa.

Ai, que vontade de vomitar, Eufrásia, para com isso, para! 

Por hoje é só, mas eu não quero ficar com esse programa tão sério dessa forma. Quero me divertir muito, quero que vocês se divirtam, porque, acima dos problemas importantes da moda, eu quero que a moda seja muito engraçada.

Foram quase 30 anos na televisão. Não dá pra dizer “ininterruptos”, porque sempre tinha uma demissão no meio do caminho. Mas Clodovil, sem dúvida, foi um dos apresentadores mais populares da TV brasileira, que impôs um estilo próprio, lançou bordões e alcançou uma fama que atravessou gerações.

Ao longo da carreira, ele entrevistou centenas de pessoas das mais diferentes profissões. A atriz Fernanda Montenegro, a cantora Elza Soares, o educador Paulo Freire e os ex-presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff são algumas das personalidades que encararam as perguntas diretas e retas do apresentador. 

Ser entrevistado por Clodovil não era pra qualquer um, afinal, a sinceridade sem limites era a sua marca registrada. E, muitas vezes, foi também a sua desgraça.

Eu sou Patricia Oyama.

E eu sou Gabriel Monteiro. 

E este é Clodovil do Avesso, o podcast da ELLE Brasil que mergulha na vida de Clodovil Hernandes, o costureiro que virou apresentador, virou deputado e ainda hoje, 15 anos depois de sua morte, continua a despertar paixões e polêmicas.

Leia também:
Clodovil do avesso: a moda de Clô

Neste episódio, a gente vai destrinchar o caso de amor entre Clodovil e o microfone, que começou antes ainda da sua entrada na televisão, lá no rádio, no final dos anos 1960. E vamos falar também sobre o peso da homofobia na vida do homem e da figura pública. Homofobia não apenas sofrida, como também muitas vezes reproduzida por ele mesmo. 

(Antonio Abujamra): Estilista, crítico, temperamental, inquieto, homossexual: como foi a ditadura pra você?

(Clodovil): Ah, tem coisas duras melhores que a ditadura.

Clodovil estreou como apresentador durante a ditadura militar, em 1968, na rádio Jovem Pan, em São Paulo. No quadro Clodovil, o Divino, dentro do programa Show da manhã, o jovem figurinista dava dicas de moda às ouvintes. 

Mas não demorou muito para a língua solta do costureiro colocá-lo em apuros, como aconteceria muitas e muitas vezes depois. Em setembro de 1968, Clodovil teria criticado a roupa que a então primeira-dama Iolanda Costa e Silva havia usado na recepção da primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi.

Em 2003, no programa Provocações, apresentado por Antonio Abujamra, Clodovil relembrou o episódio:

(Antonio Abujamra) 1968, ato institucional número 5, Jovem Pan, você criticou as roupas da mulher do general Costa e Silva e foi demitido. Você esperava outra coisa?

(Clodovil): Não, eu não critiquei a roupa dela. Eu critiquei a atitude dela. Ela recebendo a Indira Gandhi, ela parecia uma espanhola enlouquecida, com vestido de veludo azul-marinho, com cetim azul-marinho. Uma espanhola louca, pior que uma brasileira enlouquecida, pelo menos ela tava de candomblé.

Roupa ou atitude, o fato é que nem bem havia começado sua carreira de apresentador e Clodovil já foi tirado do ar. Mas o motivo oficial não foi a crítica à senhora Costa e Silva, não. De acordo com notícias divulgadas na época, Clodovil foi proibido de apresentar seu quadro porque o seu timbre de voz era, abre aspas, afeminado, e atentava contra os bons costumes. Fecha aspas. 

Quer dizer, a Censura não estava nem interessada no que ele dizia, mas não gostou da forma como ele falava. Clodovil tentou reverter essa decisão na Justiça, mas não conseguiu, como relata essa nota publicada no periódico carioca O Jornal, em 16 de outubro de 1969, com o título: “Censura não foi com a voz de Clodovil”.

“O Tribunal Federal de Recursos negou provimento a agravo do costureiro Clodovil Hernandes, que aparecia em programa de rádio em São Paulo, intitulado Clodovil, o Divino. Clodovil recorreu ao TFR depois de ver indeferido pelo juiz da 4ª Vara Federal de São Paulo mandado de segurança que impetrou visando, como agora, liberação para levar ao ar seu programa interditado pelo Departamento Federal de Censura. O veto da Censura ocorreu porque esse serviço, colocando um de seus funcionários na escuta, constatou que Clodovil realmente estava indo de encontro aos bons costumes dando inflexões à voz bastante comprometedoras. Por esse motivo, foi enquadrado no item c do Decreto 20.945, que enquadra as pessoas por divulgar ou induzir aos maus costumes.”

Clodovil perdeu esse round, mas não ficaria longe do microfone por muito tempo. Em 1971, foi chamado para ser jurado de uma das atrações com maior audiência na TV da época, o programa Flávio Cavalcanti.

E, não demorou muito para ele já ser cooptado pela concorrência. Ainda em 1971, Clodovil foi convidado para integrar o júri do Programa do Chacrinha.

Clodovil estava na TV, nas capas das revistas, na boca do povo. Mas não era todo mundo que estava achando bonito esse sucesso todo, não. Em 1972, alguns colunistas especializados em notícias da televisão começaram uma campanha acirrada para tirar o costureiro da telinha. Aliás, não só ele. O colega Dener Pamplona de Abreu e o museólogo e carnavalesco Clovis Bornay também estavam na mira dos supostos defensores da moral. Um telegrama enviado por um grupo de senhoras mineiras dá uma dimensão dos ânimos dessa parcela da população: na mensagem, elas pediam, abre aspas, a imediata saída desses homens indecorosos e indesejáveis das nossas salas de visita, fecha aspas.

A gritaria foi tamanha que a Censura Federal emitiu um ofício a todas as emissoras de TV recomendando a não exibição de Clodovil, Dener e Clóvis Bornay em seus programas. 

Na reportagem intitulada “Os indesejáveis fora da TV”, publicada no periódico O Jornal, em maio de 1972, o texto fala da recomendação da censura e traz uma enquete feita com pedestres no centro do Rio de Janeiro. Aqui a gente traz só uma amostra das opiniões colhidas. 

Abre aspas: As autoridades agiram certo. Tanto Dener como o Bornay e o Clodovil na televisão eram sérios riscos pra nossa juventude. Se os espectadores já estavam imitando falas como lixo e luxo, imagine só se eles continuassem. Daqui a alguns dias, estava todo mundo imitando os gestos dos três, fecha aspas. 

A entrevistada é identificada como Dona Etelvina Chaves, mãe de três filhos homens.

Leia também:
Clodovil do avesso: a guerra das tesouras

Mas, apesar dos protestos dos conservadores, Clodovil na TV era um caminho sem volta. Nos anos seguintes, ele não teria um quadro fixo, mas faria várias aparições na sala de visitas da família brasileira, em programas de auditório e até novelas – além de Mulheres de Areia, que a gente citou no episódio passado, Clodovil também fez uma ponta no sucesso Marrom Glacê, de Cassiano Gabus Mendes, e exibiu seus dotes musicais cantando o hit Ma Melo Melodie, da cantora franco-egípicia Dalida, no Fantástico

Outra participação marcante do costureiro na TV foi no programa 8 ou 800.

No show de perguntas e respostas apresentado por Paulo Gracindo, na Rede Globo, Clodovil respondeu perguntas referentes à Dona Beja, a personagem histórica que encantava os homens no século 19 e virou uma das personalidades mais influentes de Araxá, em Minas Gerais.

O costureiro gabaritou todas as perguntas sobre a cortesã, ganhou o prêmio máximo, de 800 mil cruzeiros, e saiu aclamado do programa. O problema é que Clodovil não contava com o imposto sobre o prêmio, que reduziu a bolada pra 566 mil cruzeiros. O vencedor ficou indignado e se recusou a receber o valor descontado.

Anos mais tarde, Clodovil diria que não participou do programa só pelo dinheiro. Ele disse que, com essa demonstração de cultura geral, ele queria mudar a imagem que as pessoas tinham de um costureiro. Tanto que ele fez questão de levar sua mãe, Isabel Hernandes, para a final do programa, para mostrar que sim, ele também tinha família. 

Mas a grande consagração de Clodovil viria mesmo com a estreia da TV Mulher, na Rede Globo.

Apresentado por Marília Gabriela e Ney Gonçalves Dias, o programa estreou em abril de 1980 e foi um marco na televisão brasileira. Nas manhãs de segunda a sexta, a TV Mulher trazia diferentes quadros, que abordavam assuntos como direitos femininos e orgasmo, passando por astrologia, carreira, filhos e também moda. 

Para falar sobre esse último tema, o escalado era justamente Clodovil Hernandes. Em seu quadro, o costureiro recebia cartas de telespectadoras perguntando sobre dicas do que vestir e outros dilemas fashion. Clodovil também fazia croquis de modelos a pedido do público. Quer dizer, nem sempre o pedido era atendido, como no caso da Ilza, de São José do Rio Preto, que queria uma sugestão de traje social e acabou ganhando um sermão.

Tenho 11 anos, 1,46 de altura, 70 de busto, 78 de quadril e 67 de cintura. Sou morena de cabelos castanhos escuros… e aí ela quer um traje social e aquelas coisas: um casamento e beijos e recepção e mais não sei o que com 11 anos de idade. Ô, Ilza, passa a mão no seu caderninho, vai pra mesa, estuda bastante, que com 11 anos ce não tem nada que fazer traje social, tá entendendo? Tem que fazer outro departamento. Tem que estudar pra ficar bonita, maravilhosa, porque não é esse o pique, não. Com 11 anos a gente não pede nada disso. A gente pede outra coisa. Boneca, coisa de menina, realmente. Sapatinho de pulseirinha, meinha, vestidinho de algodão. Faz um calor louco em Rio Preto. Agora, você com 11 anos vem pedir traje social? Estudar é bom, viu? Vai estudar.

Bom, mas quando o pedido fazia sentido pra ele, Clodovil, sim, desenhava croquis ao vivo, sugeria tecido e acessórios. Os desenhos recebiam a assinatura do estilista e eram enviados para a casa da telespectadora. E aqui a gente tem outra grande contribuição de Clodovil para a moda brasileira. Nessas manhãs na Globo e, posteriormente, nos programas vespertinos em outras emissoras, ele fez muita gente descobrir a moda como profissão. 

Ele ajudou a popularizar essa ideia. Crianças assistiam Clodovil na TV, antes ou depois da escola, e viam, pela primeira vez, um estilista em ação. 

Uma dessas crianças, por exemplo, era ninguém menos do que Alexandre Herchcovitch, um dos maiores nomes da moda nacional contemporânea.

Pra mim, pessoalmente, eu não recebi nenhuma influência dele em moda, na roupa que ele fazia. Mas ele era o único estilista na televisão quando eu era criança. Então, eu esperava ele aparecer na televisão, nos diversos programas que ele fazia, porque ele recebia cartas de telespectadores e daí ele lia, daí ele desenhava na hora, dava uma sugestão. Então, era a única coisa que eu via de moda quando era criança. Era o Clodovil. Então, ele era a referência de como ser estilista. Pra quem hoje tem 50 anos, e quando tinha 10, 12 anos, ou um pouco antes até, era o Clodovil que aparecia na TV.

Foi também nessa época da TV Mulher que Clodovil fez a sua mais bem-sucedida incursão no teatro. Com Seda Pura e Alfinetadas, escrita pela dramaturga e ex-modelo Leilah Assumpção, ele foi sucesso de público e crítica, interpretando um costureiro no palco. Uma curiosidade: a peça foi também o primeiro trabalho de grande repercussão da atriz Lilia Cabral, recém-formada na Escola de Arte Dramática da USP.

Bom, então, nesse comecinho dos anos 80, Clodovil era sucesso nos palcos, tinha lançado a sua linha de jeans, que a gente comentou no episódio passado, e era uma celebridade das manhãs com a TV Mulher. Só que, nos bastidores da Globo, o clima não era de festa. Na verdade, era uma verdadeira guerra.

Apesar de ter só um quadro no programa, Clodovil se sentia e se comportava como o dono da atração, e batia de frente com a âncora Marília Gabriela, às vezes, em pleno ar. As brigas eram de conhecimento geral e culminaram com a demissão de Clodovil em 1982.

A gente procurou a Marília pra contar um pouco sobre essa época, mas ela agradeceu e preferiu não dar entrevista pro podcast. Em 2015, no entanto, ela falou sobre esses bastidores em um bate-papo com o dramaturgo e escritor Aguinaldo Silva.

(Marília Gabriela): E ele era despudorado, entrava no ar e tentava derrubar a âncora no ar mesmo, entendeu? Aí eu saía, dizia que não ia mais fazer, houve de um tudo lá. 

(Aguinaldo Silva): Essa inimizade com o Clodovil perdurou?

(Marília Gabriela): Olha, o Clodovil era muito cruel. Não quero incomodar os fãs do Clodovil, que ele era divertido, tinha talento, ele era um estilista sensacional. E ele tinha um talento, ele tinha o dom da palavra. Ele era uma pessoa, que teve uma existência… Que teria sido melhor se ele não tivesse sido tão cruel. Ele era capaz de crueldades imensas.

Após a saída da Globo, Clodovil não demorou a conquistar outro espaço na grade televisiva. Em 1983 ele é contratado pela TV Bandeirantes para ter finalmente um programa só seu, batizado com seu nome. Mas a lua-de-mel dura pouco e o ex-global Clodovil logo começou a se queixar das condições de trabalho para as câmeras. Nesse mesmo ano, o apresentador troca a Bandeirantes por uma emissora nova, que chegou trazendo grandes expectativas: a Rede Manchete, de Adolpho Bloch.

Clodovil primeiro comanda o Manchete Shopping Show, que traz o formato de programa feminino para o horário vespertino. E, em 1985, passa a apresentar Clô para os Íntimos.

Nós faremos um programa, como sempre pra cima, pro alto, tentando mostrar pra vocês coisas bonitas, como sempre com muita frescura. De frescura eu gosto, faço questão, aliás, entendeu? Mas de uma maneira saudável, não aquela frescura doente, que é um outro departamento.

(narrador): Clô para os íntimos, segunda a sexta, uma da tarde.

Rede manchete!

No cenário com vitrôs coloridos e teto de vidro, Clodovil desenhava croquis e recebia nomes como o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, o dramaturgo Augusto Boal e a atriz Nicete Bruno. Mas claro que a calmaria não seria eterna.

Em 1988, foi promulgada a nova Constituição Brasileira, após 20 meses de trabalho da Assembleia Nacional Constituinte. O clima era de euforia, afinal, a elaboração da chamada Constituição Cidadã marcava o fim definitivo do longo período em que o Brasil passou sob as ordens do regime militar. 

Bem, mas Clodovil, que já havia sido censurado lá atrás, na ditadura, pegou ainda um rescaldo de autoritarismo ao chamar a Constituinte de prostituinte, por causa dos acordos e negociações realizados para a aprovação do texto final. Em entrevista a Antonio Abujamra, ele relembrou o episódio.

O poderoso é um merda qualquer. O líder é líder. É como a andorinha: não é dona de nada, porra nenhuma e as outras vão todas atrás dela. Isso que eu acho maravilhoso. Agora, poder… Quando eu falei naquela época na televisão, que eu disse assim: mas, escuta aqui, isso é uma constituinte ou uma prostituinte? Ulysses Guimarães ligou pra Manchete e disse assim: “Tire esse viado filha de uma puta do ar hoje!”

(Antonio Abujamra): Eles tiraram?

(Clodovil): Claro!

Em 1988, então, Clodovil estava novamente desempregado.

A virada dos anos 80 para os 90 não foi fácil para Clodovil. Ele já havia sofrido a perda da mãe, Isabel, em 1986, por causa de uma úlcera supurada. Estava fora da TV e a carreira na moda também estava em declínio, com o fechamento do ateliê na rua Itália, depois das tentativas frustradas de emplacar seu prêt-à-porter. 

Em 1990, pra complicar ainda mais a situação, Clodovil passou a ser alvo de boatos de que estaria com Aids. A onda de notícias falsas era tão grande que ele se viu obrigado a convocar uma entrevista coletiva para apresentar seus exames e desmentir publicamente o diagnóstico. 

Quem também ajudou Clodovil a esclarecer a situação na época foi Marília Gabriela, que deixou as velhas rusgas de lado e convidou o ex-colega da TV Mulher pra uma entrevista no programa Cara a Cara, da TV Bandeirantes.

(Clodovil): Mas essa coisa de fazer uma coletiva, pagar pra uma coletiva, pra mostrar que eu não tenho uma doença, pra poder sobreviver, é uma violência brutal. Você não pode imaginar o que eu passei. E outras coisas que aconteceram ao lado disto, né? Enfim, acontecem coisas que a gente envolve, outras coisas, outras pessoas. E desaforos e contratos que se perdem, coisas que eu… Porque eu sobrevivo do meu trabalho, né? Por exemplo, os meus shows no Nordeste agora estão com um problema porque parece que lá dá de meia-meia hora na FM.

(Marília Gabriela): Que você tá com a Aids.

(Clodovil): É.

Mas em 1992, finalmente, os ventos favoráveis voltaram a soprar para Clodovil. Ele foi recontratado pela TV Manchete e passou a apresentar o programa Clodovil Abre o Jogo, onde lançou o bordão que ficou famoso:

Olha aqui praquela lente, que é a lente da verdade, e abre o jogo aqui. Vem cá. Aquela vermelha ali.

Apesar dessa nova temporada na Manchete ter durado pouco tempo, Clodovil abre o jogo trouxe algumas das melhores entrevistas feitas pelo apresentador. Como esta, com a também apresentadora Hebe Camargo.

(Clodovil): Mas essa coisa é uma coisa. Quando que pinta esse romance com você com o Lelio, do romance no sentido físico mesmo? Não é todo dia?

(Hebe Camargo): Magine! Magine! E quem disser que é todo dia está mentindo! Ah!
(Clodovil): É de mês em mês, semana em semana, como é?
(Hebe Camargo): Ah, três vezes, assim… Uma no verão, outra no outono e outra no inverno. 

Um ano depois do retorno, Clodovil deixa de novo a TV Manchete e aí começa uma peregrinação de emissora em emissora, com uma alternância de contratações e demissões em intervalos de 1 ano, em média. 

Entre 1993 e 2002, o apresentador passa pela CNT, pela Bandeirantes, pela Rede Mulher e pela TV Gazeta, incluindo idas e vindas pra mesma emissora, em alguns casos. Nesse meio tempo, brigou com colegas de canal, como Adriane Galisteu, com colegas de bancada, como Christina Rocha, se divertiu com vários entrevistados, constrangeu outros tantos e, pelo menos uma vez, topou com uma convidada ainda mais sincerona que ele. Foi Dercy Gonçalves, entrevistada por Clodovil em 2002, na TV Gazeta.

(Clodovil): Vou te dar as flores, Dercy. Vou jogar tudo no chão?

(Dercy) Vai me dar flor? Puta que pariu, eu tenho ódio de flor. Me dá. Eu acho que flor… Não gosto! Eu dou pra você. Ce me dá?

(Clodovil): Ce tem ódio de flor por quê, Dercy?

(Dercy): Por que que eu quero flor? Daqui a pouco fede a defunto, cara!

(Clodovil): Mas o gesto não vale nada, Dercy?

(Dercy): Seu gesto é você estar aqui, comendo comigo.

(Clodovil): Ah, isso é.

Em 2003, Clodovil estreia o programa A Casa é Sua, na Rede TV, e dá início a um de seus períodos de maior popularidade, desde os tempos da Rede Manchete. Popularidade e também polêmica, porque quanto maior o Ibope, mais solta ficava a língua de Clodovil.

O amigo José Augusto de Souza, que foi produtor e depois diretor da Casa é Sua, lembrou dos apuros que a produção passava.

E ele já sabia como eu estava reagindo. Uma vez, ele pegou um ponto eletrônico, jogou dentro do copo d ‘água e falou, nesse momento estou livrando o diretor do processo. Aí tinha as brigas com a prefeita Marta na época. Teve uma época que a gente chegou na situação que o programa tinha um processo por programa.

Por outro lado, Clodovil conseguia segurar três horas e quarenta minutos de programa ao vivo, de segunda a sexta feira, sem deixar a peteca cair.

Era incrível. “O Clodovil, o convidado, não veio”. “Me arruma uma caixa de alfinete e um pano.” Aí ele montava um vestido com o alfinete no ar e a audiência ia para o segundo lugar. Eu aprendi muito. Ele foi um mestre. Eu aprendi a fazer televisão com o Clodovil. Foi o mestre dos mestres. Totalmente soberano. Aqui rendo, nesse momento, todas as homenagens à capacidade do Clodovil de fazer televisão. Ele sabia e gostava.

Leia também:
Clodovil do avesso: o menino que desenhava

Quem também conta que aprendeu muito de televisão com Clodovil, apesar dos pesares, é a atriz Vida Vlatt, a Ofrásia, de A Casa é Sua

Era bem difícil. Porque tinha um temperamento muito difícil. Ao mesmo tempo em que foi um desafio pra mim, né? E foi uma época em que aprendi tudo o que eu teria que aprender sobre televisão eu aprendi com ele.

O quadro de Ofrásia e Clodovil era todo na base do improviso. Inclusive aquela famosa festa de aniversário, que virou um enterro, ou melhor, meme, com Clodovil estourando os balões. 

(Clodovil): Achei tão lindo o que você fez! Uma decoração linda, viu? Linda, a decoração. Eu adorei a decoração. Achei chique, realmente!

(Ofrásia): Tem presente. Presente!

As brigas e provocações no ar às vezes também aconteciam na vida real, conta a atriz.

“Às vezes a gente brigava. Ele queria brigar. Clodovil, às vezes, ele queria brigar. Ele não bebia, mas sabe gente que bebe e quer brigar? Ele tinha isso. Quando ele queria brigar, ele conseguia. Mas depois ficava tudo bem.”

Uma das maiores brigas que Vida e Clodovil tiveram foi justamente quando ela pediu demissão do programa após um ano, por causa de desentendimentos com o diretor na época.

Nossa, ele ficou uma fera. Ficou puto comigo. Brigou comigo. Falou: “Você é um absurdo você fazer isso”. Eu falei: “Clodovil, eu não estou contente, eu não estou satisfeita. Eu falei, bom, não adianta eu querer conversar com você. Outra hora a gente vai conversar”. E fui embora. Aí, depois de um tempo, a gente voltou a se falar. Ele não era assim, de ficar guardando o rancor. Porque também era sempre ele que brigava com a gente. Não era a gente que brigava com ele.

Vida Vlatt acabaria voltando pra Casa é Sua meses depois, mas Ofrásia não trabalharia mais com o antigo patrão. Sim, porque Clodovil havia sido novamente demitido. Durante meses, o apresentador foi atormentado pelos colegas do programa Pânico, que queriam porque queriam que o estilista calçasse as chamadas sandálias da humildade. 

O cerco a Clodovil incluiu perseguições de carro pela Marginal, plantões na porta do prédio do apresentador e em sua casa, em Ubatuba, além de abordagens nos corredores da própria Rede TV.

Clodovil por diversas vezes se queixou do assédio e fazia reclamações no ar contra os humoristas e contra a própria emissora. Mas o motivo final da demissão não foi o embate com o Pânico, não. Foram comentários ofensivos que ele havia feito contra a colega Luisa Mell.

Bom, mais uma vez então, a língua incontrolável de Clodovil tirou o apresentador do ar. 

E o caso é que as falas problemáticas do estilista não eram dirigidas somente a uma ou outra personalidade. Muitas vezes, ele acabava ofendendo todo um grupo de pessoas, em especial, minorias das quais ele mesmo fazia parte.

Em 2005, Clodovil foi condenado a pagar uma indenização de 20.800 reais, em um processo por injúria qualificada por preconceito racial, por ter chamado a então vereadora Claudete Alves, do PT, de “macaca de tailleur” em uma entrevista à Folha. 

O apresentador também comprou briga com entidades israelitas ao insinuar que os judeus manipularam o Holocausto e teve que se retratar publicamente.

Não faltaram também acusações de misoginia contra Clodovil, por declarações como aquela dada já como deputado, em Brasília, em que dizia que as mulheres trabalham deitadas e descansam em pé.

 Mas no rol de falas polêmicas, as de maior repercussão, provavelmente, foram em relação à homossexualidade. “Gay homofóbico” é uma definição constantemente aplicada a Clodovil.

O apresentador era um crítico da então chamada Parada Gay, hoje Parada do Orgulho LGBT+, e dizia não se orgulhar de ser homossexual. Por diversas vezes declarou que, se pudesse escolher, não seria gay. Como nessa entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia

(Clodovil): Uma coisa que me deixa muito feliz. Porque eu nunca tive nenhum grilo em ser homossexual. Sempre disse isso muito claro e abertamente, porque realmente isso é um processo que me foi doado. Eu não pedi pra nascer homossexual.

(Jô Soares): Você foi um dos primeiros a assumir…

(Clodovil): Mas assumir é uma coisa tão feia, né?
(Jô): Tudo bem, então a aceitar…

(Clodovil): A entender. A encarar a coisa da maneira que tem que ser. Porque é assim. Eu, se eu pudesse escolher, eu não seria homossexual, sem sombra de dúvida. Mas eu não seria brasileiro, não seria tanta coisa… Se eu pudesse escolher, eu ia ser um machão, na Alemanha, com um… Claro, de olho azul, muito rico, com 450 mulheres pra atender o sistema. Mas não é assim, a vida não é isso. Você é aquilo que você tem que ser.

A fala parece meio ambígua, não é mesmo? A impressão que fica é a de que, quando Clodovil conversava sobre a sua sexualidade, ele agia, ao mesmo tempo, com naturalidade e bastante julgamento. Um ouvinte atento percebe, por exemplo, que ele falava de homofobia reproduzindo uma máxima homofóbica, ou, quando mencionava o racismo, acabava, ele próprio, sendo alguém que reproduzia uma expressão racista, como esse tal desejo de ter olho azul para atender o sistema. Era como a fala do oprimido e do opressor numa mesma sentença. 

Isso aconteceu também em outra entrevista, no ano de 2003, quando o costureiro foi sabatinado por uma plateia bastante jovem, no Programa Altas Horas, de Serginho Groisman, na TV Globo. Em meio a um pensamento sobre liberdade, Clodovil divagou, como era de costume, até chegar a um conselho bem questionável aos presentes: o de que eles não falassem abertamente sobre as suas sexualidades. 

Se vocês tiverem alguma preferência na vida, disfarcem o mais que vocês puderem. É mentira que o mundo gosta das coisas expostas. As pessoas que fazem isso pagam um preço muito alto por isso. Eu, se eu tivesse um outro tipo de voz, um outro tipo físico, não tivesse essa pele sem pelos e tal, e tivesse características bem masculinas, eu seria o mais masculinizado possível, se vocês querem saber. Porque as pessoas sofrem mais. Eu não gostaria de ter um filho parecido comigo, porque ele iria sofrer. Eu, casualmente, não sofri, mas ele sofreria. Porque o mundo finge que aceita, que acha bonito, mas é tudo porque é um circo, não é verdade. Tem que se esconder tudo, fazer tudo de uma maneira muito discreta, muito velada. Porque é assim que é melhor pra viver. Acreditem no que estou dizendo. Não liberem nada, não contem nada. Essa história de chegar em casa e contar tudo… Conversa! Não contem nada. Vocês só contem, sem mentir, aquilo que perguntarem a vocês.

Poucos minutos depois, Clodovil então revela que ele só havia aceitado a sua homossexualidade muito recentemente, aos 60 anos. 

“Eu vou fazer 66. Então, há seis anos que eu aceito a homossexualidade. E antes eu não aceitava. Em ninguém. Mas não por crítica. Mas por achar que estava errado diante de Deus. E não está.”

Ele odiava os gays. Ele humilhava, ele achava todas ridículas, medíocres. 

Quem você acabou de ouvir falar é o jornalista Leão Lobo, que tem ao menos 30 anos de carreira com colunas sobre o mundo dos famosos, em programas de TV. Nós nos encontramos com o Leão num café no bairro da República, em São Paulo, uma região que ele conhece bem, onde vive desde a infância. 

O primeiro encontro com o costureiro, lembra Leão, foi bastante pacificado, em um jantar num restaurante grã fino, em São Paulo. Na ocasião, Clodovil pediu que ele fizesse uma ponte com o seu então patrão da época, Silvio Santos. 

O jornalista conta que o dono do SBT até convidou o costureiro para participações em seus programas, mas nunca, de fato, desejou contratá-lo. Daí em diante a relação entre Leão e Clodovil nunca foi das melhores. 

Eles até chegaram a dividir o mesmo ambiente de trabalho, mas, entre alfinetadas em um elevador da TV Gazeta e uma demissão da Rede Mulher que deixou Clodovil engasgado, Leão afirma guardar as piores memórias possíveis do estilista e apresentador. 

Ele sempre estava do lado errado, na minha opinião. Politicamente. Ele era sempre contra os gays. Ele era contra a liberdade de expressão. Era contra isso. Era contra. E virou deputado e não fez porra nenhuma. Não fez nada por nós, por ninguém. Ele só achincalhava, xingava. Dizia que tudo era um horror lá. Que as pessoas eram mal vestidas.

Já o DJ e figurinha carimbada da noite paulistana, Johnny Luxo, conheceu Clodovil em 2002, quando o costureiro ligou para ele, o convidando para uma participação em seu programa da época.

Johnny conta que, por medo de ser gongado por Clodovil, ele se preparou para o encontro. Pediu emprestado um vestido da mãe da apresentadora Didi Wagner, Tânia Wagner, que havia sido criado por Clodovil na década de 1980. E ainda gravou um CD com músicas francesas para o estilista. 

Deu certo! O encontro profissional evoluiu para uma amizade, a ponto de Johnny ser chamado para almoços na famosa casa de Clodovil em Ubatuba e, meses depois, a criar trilhas para o programa de Clodovil na Rede TV, em 2003. 

E, mesmo sendo de gerações diferentes, Johnny recorda que um trocava experiência com o outro. Clodovil dizia para ele que amava Billie Holiday. E Johnny, por sua vez, convenceu Clodovil a ir a São Paulo Fashion Week e, enfim, ver um desfile de um estilista contemporâneo. 

E aí eu falei, olha, vai ter desfile do Alexandre, seria incrível se você fosse, vamos? Daí ele pensou um pouco e acabou topando. Isso foi o verão 2003, 2004. Aí eu passei na casa dele na República do Líbano, naquele predinho, peguei ele e fomos pra Bienal, que era onde ia acontecer o desfile do Alê. Ele levou um buquê de copo de leite pra entregar pro Alê no final do desfile. Quando a gente chegou na Bienal, foi uma loucura, um acontecimento, parecia a Princesa Diana chegando em algum lugar. Assim, enxurrada de fotógrafos, imprensa toda atrás dele, até a gente entrar na sala de desfile, até começar o desfile. Aí rolou o desfile, ele amou, quando o Alexandre entrou na fila final, ele levantou e entregou o buquê de flores pro Alê durante a fila final.

O episódio faz pensar no quanto o preconceito anda acompanhado do desconhecido. 

Se antes Clodovil detonava os estilistas de gerações posteriores à sua, Johnny conta que ele ficou encantado pela produção de Alexandre Herchcovitch. Tanto, que depois também convidou Alexandre para um ou outro evento. 

Para Johnny, esse desconhecimento de Clodovil podia ser facilmente combatido com um simples convite, uma mão amiga que o levasse a olhar o mundo com novos olhos e talvez o fizesse mudar de opinião. 

Ele era uma bi como qualquer outra bi, falava de boys, de coisas que qualquer bi fala, entendeu? Eu acho que o que pegava e o que causava, sei lá, impressões erradas era quando ele tinha que falar alguma coisa sobre casamento gay, sobre parada gay, que eram assuntos que ainda não eram falados com tanta frequência e naturalidade naquela época, entendeu? Era muito diferente. E também não acho que essa era uma pauta que ele falava com os amigos dele. Assim, eu acho que se eu tivesse tido mais tempo de convivência com ele, com certeza a gente teria falado sobre esses assuntos e talvez eu até tivesse levado ele numa parada gay, entendeu? Porque ele nunca tinha ido, ele meio que se mostrava um pouco assim, ele tinha um certo, não digo preconceito, mas eu acho que era a mesma história do São Paulo Fashion Week, que faltou alguém chegar pra ele e falar assim, vamos que vai ser interessante.

Entre memórias divergentes de quem o conheceu, o que nos importa aqui é o que ficou na história. E um episódio lá da infância de Clodovil é importante para entender como a sua relação com a homossexualidade tinha, mesmo, muitas camadas. 

Em uma entrevista à revista Isto É, de 2003, ele recordou: aos 13 anos, voltava de uma missa, num domingo, quando viu o próprio pai na cama com outro homem. No caso, o outro homem era ninguém menos que o irmão de sua mãe, o seu tio. 

Em outra entrevista à mesma revista, mas desta vez em 2009, Clodovil afirmou que, naquele dia, não conseguiu fazer muito a não ser se sentar no chão e pensar, abre aspas, meu Deus, a minha mãe não é amada por ninguém. Fecha aspas. 

Segundo Clodovil, ele nunca revelou ao pai ter presenciado o ocorrido, isso, mesmo nos momentos em que uma faísca de ódio era uma tentação que o fazia querer soltar o segredo. E quando isso acontecia? Alguns anos depois, por exemplo. Durante um almoço, Domingos Hernandes encurralou o filho, questionando-o sobre a sua sexualidade. Clodovil falou sobre o episódio em 1978, em entrevista ao Lampião da Esquina, o primeiro jornal de circulação nacional feito para a comunidade gay, que circulou entre o final dos anos 70 e início dos 80. E quem dá voz a essa memória de Clodovil é o nosso editor de beleza Pedro Camargo: 

Quando eu tinha 18 anos, meu pai falou comigo sobre o assunto pela primeira vez. Eu tinha vindo da fazenda, estávamos na cidade, e à mesa, eu, ele e minha mãe para o jantar. Ainda hoje me lembro: tinha salada de agrião. Aí meu pai perguntou: “Então meu filho é fresco?” Eu quase caí duro. Imagine: minha mãe sentada com a cara dentro do prato, acho que ele tinha falado antes com ela. Aí eu perguntei: “mas quem foi que disse isso?” Ele disse o nome da pessoa e eu comentei, “mas então você acredita num estranho?” Ele continuou: “Pouco importa que seja um estranho, porque é verdade”. Então eu lhe disse: “Verdade ou não, o meu afeto por você não muda nada. Agora, se o seu afeto por mim mudar, o problema é só seu”.

O jornalista Carlos Minuano que, em 2017, lançou a primeira biografia de Clodovil, o livro Tons de Clô, afirma que, em suas entrevistas, ele percebeu que a aceitação da sexualidade de Clodovil tinha mais nuances do que ele poderia imaginar e isso estava atrelado não só com o momento em que o costureiro viveu, como também por sua história particular.

Ele era desafiado o tempo todo nesse sentido por ser gay. Sempre tinha alguém fazendo piadinha, uma risada, e os trejeitos dele. Então, essa carcaça, esse jeito dele duro também com as pessoas, provavelmente foi uma forma de ele se defender desses ataques que ele sofria no meio. Acho que, no fundo, ele nunca se aceitou. Não conseguiu se entender com a sexualidade dele. Acho que, no fundo, ele veio de uma família católica e, ao mesmo tempo, aquilo tudo era uma coisa muito confusa para ele, essa própria religiosidade. Acho que isso afetou muito a vida dele.

Apesar das várias afirmações ao longo da vida sobre ver diferenças entre a união hetero e homoafetivas, em 2007, quando foi eleito o primeiro deputado federal assumidamente homossexual do Brasil, Clodovil foi o autor do Projeto de Lei 580, cujo objetivo era justamente legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Com o passar dos anos, porém, o projeto foi reeditado por outros deputados a ponto de o texto atual ser contrário à ideia do texto original. No final do ano passado, uma proposta incluída no relatório, apresentada pelo deputado Pastor Eurico, revertia o projeto de tal maneira que ele passou a proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o texto alterado com 12 votos a favor e cinco contra. 

O projeto ainda está em tramitação, mas já há entendimentos de diversos especialistas de que essa PL é inconstitucional. Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as uniões entre pessoas do mesmo sexo se equiparam, no âmbito do direito civil, às uniões entre pessoas de sexos opostos.

Quando apresentou seu projeto, Clodovil visava legalizar a união homoafetiva principalmente para fins patrimoniais. A ideia é que em caso de morte de uma das partes, o companheiro ou companheira ficasse protegido juridicamente e tivesse assegurado o direito aos bens adquiridos durante a união. Como qualquer outro casal.

Ou seja, a visão de Clodovil em relação ao amor de duas pessoas do mesmo sexo podia ser manchada por traumas, lembranças difíceis, muita homofobia interna, mas, ainda assim, ele a compreendia de alguma forma, a sentia e a respeitava do seu modo. E isso fica claro em outra memória, sobre a morte de seu pai, contada naquela mesma entrevista ao Lampião da Esquina.

Meu tio morreu de morte natural. Logo depois, meu pai anunciou em casa que tinha visto meu tio, que este tinha vindo buscá-lo e que ele sabia que ia morrer logo. O resto da história eu não presenciei, foi minha mãe quem contou. Meu pai começou a trabalhar muito, porque sabia que meu tio morto viria buscá-lo, e queria deixar a família na situação melhor possível. Aí aconteceu que um dia ele saiu de casa e sofreu um acidente, voltou todo machucado. Era perto do Natal, eu fui passar o Natal em casa e o encontrei todo machucado. Bom, dias depois ele saiu para ir à cidade, mas voltou da porta e anunciou: eu voltei para vestir uma roupa de fulano – o meu tio morto –, porque sei que não vou voltar pra casa e quero morrer vestindo uma roupa dele. Pois bem: ele saiu e, a caminho da cidade, sofreu um acidente a poucos metros do local onde tinha sido acidentado da outra vez, e ali mesmo morreu, vestido com a roupa do meu tio. Os dois foram inclusive enterrados lado a lado. Agora você vê: essa é uma história belíssima, eu acho; que filho da puta vai me impedir de encarar essa história de amor como uma coisa natural e bonita? Eu podia ter jogado tudo isso na cara dele naquela noite, do jantar, porque eu era muito novo e via o mundo com outros olhos. Mas não fiz isso, e bendita a hora, porque depois aprendi que há coisas que a gente não pode julgar. Há histórias, relacionamentos entre pessoas, que ninguém tem o direito de sujar. Isso ninguém contou pra mim: isso eu vivi, é coisa minha.

 

No próximo episódio de Clodovil do Avesso:

O Clodovil nunca, ele nunca soube demonstrar afeto. Mas na essência o Clodovil ele era extremamente carinhoso. Então, assim, se ele sabia que eu gosto de arroz doce, e eu tinha tido qualquer embate com ele no dia anterior por alguma razão, no dia seguinte ele chegava e falava assim, escuta, fiz arroz doce para você. Assim, era a forma de pedir desculpas, era a forma de acarinhar.

É uma pena que Clodovil era, desculpe, mau caráter, ele era muito falso, muito mentiroso, fazia coisas que você nem sabe a metade da missa. Ele não valia nada!

Lembro da gente numa dureza, eu e ele, Réveillon. “Vamos para Ubatuba, pelo menos lá nós estamos no castelo e não tem problema. Passe na delicatessen e tal. Vamos lá”. “Clodovil, não acha melhor a gente parar em uma padaria, em uma coisa mais básica, porque na Delicatessen vai ficar pesado.” “Não!” Chegou lá na delicatessen, pegou um carrinho, botou duas caixas de champanhe Cristal no carrinho e um pote de caviar Beluga. Chegou no caixa e falou: “Peça para a fulana vir me cobrar se ela tiver coragem” E o caixa passou as compras e nós fomos embora!

Amigos e também desafetos relembram casos e histórias de altos e baixos na vida de Clodovil. Não perca!

 

Clodovil do Avesso é um podcast produzido pela ELLE Brasil. Reportagem, roteiro e narração, Patricia Oyama e Gabriel Monteiro. Gravação e finalização, Compasso Coolab. Trilha sonora original, In Sonoris Causa. 

Este episódio usou trechos dos programas 8 ou 800, TV Mulher, Fantástico e Altas Horas, da Rede Globo; Flávio Cavalcanti e Chacrinha, da TV Tupi; Provocações, da TV Cultura; Clodovil abre o Jogo e Clô para os íntimos, da Rede Manchete; A Casa é sua, da Rede TV!, entrevista de Marília Gabriela por Aguinaldo Silva; promulgação da Constituição; Jô Soares Onze e Meia, do SBT, Cara a Cara, da TV Bandeirantes e programa Clodovil, da TV Gazeta.

Participação especial: Alexandre Lupi, na leitura da notícia sobre a censura a Clodovil, publicada em O Jornal, em 1969.

 

Leia também:
Novo podcast da ELLE Brasil mergulha na vida de Clodovil Hernandes

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes