E agora, como fica o “pacto coletivo” do isolamento?

Raiva, revolta e medo. Conversamos com neurologistas, pesquisadores de linguística e psicanalistas, como Christian Dunker e Maria Lucia Homem, para entender como a flexibilização da quarentena nos afeta.


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Há cinco meses, a pandemia do Covid-19 se impõe como a nossa nova realidade. O pânico inicial levou muitas pessoas a enxergarem o isolamento social como estratégia de mitigação do problema, mas com a flexibilização da quarentena, a angústia e a raiva viraram emoções cada vez mais presentes.

A pandemia expôs as nossas desigualdades tanto materiais quanto estruturais. À medida em que o tempo em isolamento avança para aqueles que permanecem em casa — mesmo com todo o conforto e recursos — fica difícil lidar com quem descumpre o isolamento por opção própria.

Nos indignamos ao assistir via redes sociais, ou por meio dos discursos de governantes, aqueles que relativizam a crise e usufruem de pequenos-grandes privilégios em tempos de exaustão emocional. Um post compartilhado de um céu azul na beira da praia ou cenas de bares lotados para quem só enxerga a parede de sua casa há meses, pode ser a gota d’água.

De acordo com a pesquisa do Datafolha do dia 29 de junho, apenas 12% dos brasileiros seguem em isolamento, saindo somente para realizar tarefas extremamente necessárias. Paradoxalmente, explode o número de vítimas da doença, e nunca antes tememos tanto o vírus: 47% da população afirmou sentir muito medo de ser infectado.

Como podemos navegar, então, por esta fase em que se desenha uma retomada do cotidiano, mas ainda convivendo diariamente com os efeitos da pandemia?

O mal-estar que decorre do pacto coletivo

Segundo Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, o isolamento social é uma espécie de pacto coletivo que criamos e que passamos a entender como uma regra em resposta ao “novo normal”.

“Para interiorizar essa regra, a gente pensou que ela valia para todo mundo. Eu fiz uma renúncia, me impus severas abstinências – de planos, de afetos, de liberdade —, mas entendi esse sacrifício como um bem comum. Aquele que fura a quarentena abala o nosso processo de interiorização da regra, e é normal que a gente se sinta enganado.”

Esse pacto coletivo pode ter diferentes motivações, como a nossa noção de cidadania, a nossa moral, o nosso altruísmo, a nossa capacidade de obedecer a uma ordem, de se sentir útil ou até mesmo a nossa hipocrisia. Em O Mal-estar na Cultura (1930), Freud reflete sobre as renúncias individuais que precisamos fazer para que a vida em sociedade seja possível, e expõe o quanto esse esforço também é acompanhado de um preço a ser cobrado.

“Aquele que fura a quarentena abala o nosso processo de interiorização da regra, e é normal que a gente se sinta enganado”, Christian Dunker

“O que Freud chamou de mal-estar é o fato de que a renúncia toca pontos muito caros ao sujeito, como liberdade de escolha, de deslocamento, de expressão dos desejos. Não é tudo que se pode dizer e fazer, sob pena de comprometer o arranjo que permite a vida com o outro, e do qual todos podem se beneficiar”, explica a psicanalista e pesquisadora em Linguística Aplicada (PUC-SP) Amanda Mont’Alvão. “É uma renúncia porque, como humanos, somos constituídos de desejos que pressionam por satisfação, e algumas destas realizações implicam no prejuízo ou até mesmo destruição de uma outra pessoa. Daí a necessidade de a sociedade possuir leis e instâncias mediadoras que estabeleçam e zelem por pactos coletivos possíveis”.

Convivemos incessantemente com esse conflito e se em condições normais a renúncia individual em prol da coletividade já é desafiadora, que dirá em um contexto de muito medo e desigualdade. Do ponto de vista cognitivo, o desencontro de informações torna tudo ainda mais difícil, como explica Fabiano Moulin, neurologista da Unifesp.

“Nós precisamos de uma narrativa que contextualize o nosso sofrimento. E é aí que entram os nossos vieses, espécie de ‘atalhos’ que o nosso cérebro cria para facilitar os nossos processos. Dois deles, principalmente, permitem que a gente seja muito resiliente: a nossa sensação de pertencimento e o nosso senso de propósito.”

No Brasil, porém, o especialista aponta que esses dois consensos foram destruídos pela forma como a pandemia foi encarada politicamente. Passamos a conviver com discursos simplistas de uma realidade complexa, resumidos a quem acredita no vírus ou não, quem espera um milagre salvador ou não, quem advoga pela retomada da economia ou não.

Mas há uma guerra simbólica que compõe a nossa realidade. À medida em que julgamos quem fura o isolamento, nos diferenciamos daqueles que preferem negar o real e nos aproximamos daqueles que defendem o discurso científico na construção de soluções para o enfrentamento da pandemia.

Apenas 12% dos brasileiros seguem em isolamento, saindo somente para realizar tarefas extremamente necessárias.

“Chegamos em um cenário que agora está mais claro: nem todos compartilham da mesma noção de realidade. Mas como você desmonta sistemas imaginários de quem nega o real? É preciso lembrar: o real se apresenta, e se reapresenta, e insiste. A Terra é realmente redonda. O vírus realmente existe. Mas a gente tem que se colocar numa posição subjetiva humilde para criar ferramentas de compreensão desse real”, aponta a psicanalista e pesquisadora do Núcleo Diversitas (USP), Maria Lucia Homem. “Eu sei que gritar ‘fascistas!’ nas redes sociais pode trazer algum alívio, mas ainda acredito na comunicação não violenta como ferramenta para furar essa bolha de sentidos”.

Os nossos limites emocionais são expostos pela pandemia

Para os especialistas, durante o processo de reabertura das cidades, e de um potencial retorno à quarentena caso o nível de contaminação volte a aumentar, cada um vai precisar fazer uma avaliação individual de suas concessões. E é esperado que desse processo surjam emoções como culpa, vergonha, medo e depressão.

“Você pode até acreditar que a quarentena é importante e você pode querer cumpri-la à risca, mas todos nós temos limites psíquicos. Não somos infinitamente elásticos. A gente quebra. Precisamos ponderar a nossa moralidade versus a matéria-prima de que a gente é feito. E esse é um exercício muito difícil, porque significa que a gente precisa sair da nossa moral binária”, explica Dunker.

Se até agora entendemos a quarentena como uma lei de tudo ou nada – ou você cumpre, ou você está fora dela — a situação que se impõe, sem qualquer perspectiva de acabarmos com o vírus a curto prazo, vai nos exigir uma outra racionalidade, igualmente ética.

Talvez, tenhamos que enxergar a nossa realidade com as diversas camadas que ela exige, e isso, segundo Dunker, envolve um criterioso trabalho de avaliação de riscos: quem é você, com quem sua quarentena se comunica, quais os custos disso e quais os riscos você apresenta para os outros.

É um trabalho que envolve análise de informação para sermos o mais prudente que podemos, mas também um exercício de coragem para conviver com aquilo que não conhecemos ou controlamos. No caso, o vírus.

Em tempos como o nosso, e também na pós-pandemia, muita reconstrução vai precisar ser feita. E o luto, seja de quem perdeu entes queridos ou do abandono de uma realidade que outrora existia, precisa de espaço para se estabelecer.

“Lidar com o sofrimento, com a impotência, chorar, falar sobre a finitude de nossos corpos e de nossas certezas, e também pedir ajuda. Por mais que cada um enfrente a pandemia com a sua subjetividade, precisamos tomar todas essas perdas como nossas, porque elas são. Um país que parou e perdeu mais de 60 mil vidas, muitas vezes de forma solitária, vai precisar aprender a honrá-las”, reforça a psicanalista Mont’Alvão.

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