Exu segue vitorioso

Um desfile de escola de samba nos faz esquecer, suportar, continuar: o babalorixá Rodney William mergulha na força motriz da Sapucaí.


ala das baianas vestidas de azul e amarelo rodam na imperio serrano
Foto: Mauro Pimentel/AFP via Getty Images



Em 2023 vivemos o Carnaval do retorno. Sabemos que nada será como antes. Passamos pelo luto da pandemia, pela luta contra um governo antidemocrático e vencemos, porque Exu venceu. Dono absoluto da rua e da festa, Exu celebrou com o povo.

Dos bairros Madureira ou Casa Verde aos morros de Santos e Niterói, percorrendo as comunidades da Baixada Fluminense e Zona Leste paulistana, há um elo, uma liga espessa tal qual o dendê mais puro. Há uma cor que persiste e se impõe com o peso da tradição, que não morre.

Laroiê! O Império Serrano pede passagem e celebra  Xangô e São Jorge, irmanados na encruzilhada do sincretismo. O verde-esperança irradia a confiança de quem veio do grupo de acesso e quer ficar. Junta-se ao vermelho-vivo da Grande Rio e ao branco da paz entre as escolas “rivais” que celebram os parceiros Arlindo e Zeca.

Das mãos escapam beijos, olhares se abraçam e o canto nos une. Um sol nordestino é a estrela da Mocidade. O barro molda a saga dessa gente independente que sempre nos salva. De lá, chega a Bahia de todos os santos e orixás. Desce a Tijuca, do Morro do Borel, com as águas de Oxalá purificando a Sapucaí. E vem o Salgueiro, num paraíso humanizado e quente, que acolhe sem restrições, inclusive os pecadores.

Ouve-se a gargalhada de Exu. “Vem das Áfricas?” “Vem novamente da Bahia?” Vem da Mangueira, onde “toda preta é rainha”! O rio mais baiano deságua no fim ou no recomeço? Realmente, não cabe explicação.

Sono, sonho e os acordes da segunda noite nos despertam nas terras da Ilha de Marajó. O búfalo encarnado em Oyá chega nos mistérios da Tuiuti, na excelência de Rosa Magalhães renovada com o talento de João Vítor Araújo.

Apontando para o futuro, a ancestralidade é exaltada na centenária Portela. São 22 estrelas, títulos que reluzem no azul do céu infinito. Esqueçam os detalhes, as intercorrências. Nada pode apagar tamanho brilho. Os azuis se fundem e a Vila Isabel vem com fé e faz a maior festa. Vinho que anima e sorve o milagre. E o sol brilha de novo. A Imperatriz se impõe com a grandeza de sua história e conta as aventuras dos revolucionários cangaceiros para além deste mundo.

Revolução se faz com o povo na rua cantando, sambando e ouvindo em uníssono o grito dos excluídos na voz de um Beija-Flor. Há um levante em curso e, contra o apagamento, a mais bela Rosa sagrou-se Santa e contou sua História em uma Viradouro apoteótica. Parece o final, mas nunca acaba, porque, na verdade, é uma síntese que explode em possibilidades para a construção de outros sonhos.

Carnaval é feito de senhoras que giram e nos religam à ancestralidade. Batidas vigorosas que fazem vibrar a cadência mais linda em cada coração. E rolam lágrimas e suor, sabores que temperam a vida. Uns se encontram, outros se perdem, alguns se despedem.

As encruzilhadas não são exatamente uma surpresa. Há certa previsibilidade nos gestos de quem vai ou de quem vem. Exu nos fala o tempo todo, avisa, mostra, externa, mas é preciso saber ouvir. Ler os signos que se inscrevem em olhares que se cruzam (ou não), saber que até o silêncio grita.

Um desfile de escola de samba é uma procissão de magia, um rito que encanta e nos lança a pensar nos dias que ainda virão, em tudo que precisaremos aguentar até o próximo Carnaval. É força motriz que se insere entre o que foi e o que surgirá. Faz esquecer, faz suportar, faz continuar.

Não há como chegar sem passar pela encruzilhada. Não há como voltar sem passar pela encruzilhada. Entre um “oi” e um “adeus” há uma vida: breve ou longa, por vezes interrompida. O Carnaval abre o portal do Orun, que, ao fechar-se, leva o que já não serve, o que não soma e o que não transforma. Deixar ir não é uma escolha, é uma necessidade.

Um Carnaval não pode ser eterno, já que esperar pela festa é exatamente o que potencializa sua vitalidade. Sim, o Carnaval é vivo, é perene, apesar de efêmero. Transcende o tempo. Regride, persiste e avança. É movimento, é diálogo, é Exu.

Aquele que sempre esteve e seguirá, porque se adapta e flui como o azeite. Ele passou em cada corpo que cruzou a avenida. Em cada sorriso que se abriu. No choro, na tensão, no alívio.

A emoção – voz mais expressiva da humanidade – é o elo que nos conecta, é a alma de Exu. Ao cantar seus enredos, cada escola nos envolve numa trama misteriosa, revelando que tudo que não se explica se sente e tudo que se sente se torna (ou se revela) real.

Desde que Exu venceu, nada mais foi igual. Subverter é a ordem do retorno, pois quem opera o tempo mata um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. A palavra distorcida é a lógica e o suicídio de quem se acha sempre certo.

Chega o dia de regressar pela mesma encruzilhada e prestar contas a Exu. Encará-lo é inevitável, e ele verá seu coração, ainda que você o esconda.

No pulsar, a verdade sempre se revela e testemunha o mau e o bom caráter. Não se trata de ser salvo ou condenado. Um dia, no rodar da saia da velha baiana, no exato momento em que a ancestralidade se levanta, uns serão esquecidos e outros, lançados à eternidade.

Rodney William é babalorixá e antropólogo, doutor em ciências sociais pela PUC-SP e autor do livro Apropriação cultural, da coleção Feminismos Plurais (ed. Jandaíra).

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