Tecnologia é assunto de mulher

Nova faculdade voltada para a formação de lideranças tecnológicas traz a executiva Maira Habimorad no comando: "Precisamos ter mais mulheres mentorando a entrada de garotas nesse mercado".


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Foto: Divulgação



No início de outubro, Estella Habimorad, de 12 anos, foi visitar o novo trabalho da mãe, Maira Habimorad, CEO do Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli), que conta com dois prédios no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), na Cidade Universitária, em São Paulo. No final do passeio, a menina, que sempre tirou notas boas em matemática, ficou bem animada e, se pudesse, teria se inscrito naquele momento para o vestibular do curso de Ciências da Computação, no primeiro processo de seleção da faculdade, que começa a receber alunos em fevereiro de 2022.

Bem, você pode pensar: “Grande coisa, a maioria das crianças sonha um dia trabalhar no mesmo ambiente dos pais”. Mas esse lugar parece completamente diferente da faculdade como conhecemos.

Se as corporações entenderam, já faz um tempinho, que a humanização do lugar e da relação de trabalho leva seus empregados a uma maior produtividade, esse conceito parece estrear agora no meio acadêmico no Brasil. Além das tradicionais salas de aula, auditório, laboratório e biblioteca, o Inteli oferece sala de yoga e mindfulness, local de apoio psicoemocional e espaços que estimulam a convivência. Mas o maior diferencial está na metodologia de ensino, que pretende aliar teoria e prática: desde o primeiro ano, os alunos vão tentar solucionar problemas reais de empresas que de fato existem.

Com passagens por instituições de recrutamento e educação, como a Cia de Talentos e a Adtalem Educacional do Brasil, Maira Habimorad foi escolhida para capitanear o projeto, que nasceu em 2020, quando sócios do BTG Pactual se uniram para criar uma instituição para formar futuras lideranças em tecnologia. “Precisamos olhar para a educação de uma forma holística e, acima de tudo, ajudar a formar bons seres humanos. Afinal, competências comportamentais são tão importantes quanto as técnicas. Nesse novo mercado de trabalho, ser vale tanto quanto conhecer“, ensina Maira.

Entre os desafios que a CEO da Inteli vai enfrentar, está o de incentivar a participação das mulheres numa área tradicionalmente masculina. Em 2022, serão oferecidos quatro cursos para 240 alunos: Engenharia da Computação, Engenharia de Software, Ciências da Computação e Sistemas de Informação. A partir de 2023, deverão vir também cursos livres e pós-graduação. Nessa primeira turma, 40% ganharão bolsa de estudos durante todo o curso, graças a doações de instituições parceiras, como Behring, o Instituto MRV e a MRV&CO e a Gerdau. Dessas, pelo menos 10 vagas serão reservadas para mulheres. As inscrições podem ser feitas até o dia 2 de novembro pelo site da Inteli.

A seguir, Maira fala mais sobre o mercado de trabalho, a inclusão feminina e o futuro tecnológico.

Você é uma mulher ocupando o cargo de CEO em uma faculdade de tecnologia, área que ainda hoje é bem masculina. Como avalia o seu desafio e a evolução do mercado de trabalho?

Antes de tudo, precisamos pontuar que o mercado de trabalho fez avanços importantes. Quando analisamos as estatísticas de modo geral – não apenas na área de tecnologia, mas como um todo – vemos que nas faculdades e na entrada do mercado de trabalho existe um equilíbrio entre homens e mulheres. Hoje, o problema ainda começa mais para frente. No casamento ou na maternidade, muitas mulheres ficam sobrecarregadas e sentem a necessidade de abrir mão de algo. E acabam abrindo mão da carreira. Isso não significa parar de trabalhar, mas não conseguir dedicar a mesma quantidade de horas que os homens dedicam. Durante muito tempo, esse fator pesava na escolha da promoção. Hoje, gestores começam a perceber que quantidade não é qualidade. E começam a acontecer alguns avanços rumo a um equilíbrio.

Mas o mercado de tecnologia parece estar ainda pior, não? Uma pesquisa da Women in Tech, do Reino Unido, aponta que apenas uma em cada seis especialistas em tecnologia naquele país é mulher. Se for analisar cargos de liderança em TI, o número despenca de uma em cada dez. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), apenas 20% dos profissionais de TI representam a participação feminina. Como mudar esse cenário?

Essas estatísticas, infelizmente, ainda correspondem à realidade do mercado. Aqui no nosso processo seletivo, por exemplo, as meninas representam 20% das inscrições até agora. As inscrições ainda estão abertas, o cenário pode mudar, mas… Tudo começa por referências. A menina precisa se inspirar em alguém e falar: “Puxa, que atividade incrível, isso também é pra mim”. Esse processo começa no ensino médio. Tem um dado interessante que diz que até o sétimo ano do ensino fundamental o desempenho de meninos e meninas na área de exatas é muito parecido. Depois, isso começa a desequilibrar e elas vão perdendo o interesse. Acredito que precisamos de mais referências. Se a gente quer aumentar o número de meninas na área de tecnologia, a gente precisa tomar atitudes mais sistêmicas, e isso significa ter mais mulheres mentorando a entrada de garotas nesse mercado. A sociedade precisa entender que a área de tecnologia mudou radicalmente nos últimos anos. O perfil dos profissionais deixa de ser extremamente técnico e será cada vez mais multidisciplinar. Ou seja, não compreende mais só o pessoal de Exatas, mas também, de Humanas.

Como você analisa essa mudança do perfil de profissionais na área, ou seja, esse perfil de profissional que até então era extremamente técnico e se torna multidisciplinar?

Durante um bom tempo, tecnologia era uma área de suporte, com profissionais técnicos. A partir da década de 90, isso muda e passa a ser uma área “core” de qualquer organização, até de não-governamentais. Com isso, o futuro líder precisa ter um perfil multidisciplinar, e isso significa saber a serviço de que está essa tecnologia, ter o conhecimento do ambiente, competências comportamentais, ter empatia e pensar de uma forma sistêmica.

Você, como uma profissional que veio do RH, exemplificaria o novo perfil de líder em tecnologia? Como é liderar uma faculdade nesse novo mercado?

No sentido de que o perfil do profissional de tecnologia é multidisciplinar, acho que sou um exemplo desse novo cenário. Fiz um curso básico de programação, só para conseguir conversar melhor com os demais profissionais. Só programaria se fosse para salvar minha vida. (risos) Na verdade, foi a Ana (Garcia, head de operações) que me indicou para ser a sua chefe. (risos) Fui sua mentora e ela sempre soube da minha trajetória: atuei como CEO da Cia de Talentos, diretora da Adtalem Educacional do Brasil e sempre foquei minha carreira em desenvolver jovens. Claro que nosso time é composto obviamente por pessoas que vêm da área da computação, mas também de outras áreas. E, sinceramente, essa é a beleza dessa combinação. Por exemplo, escolhemos para cuidar da nossa área financeira um advogado. Na hora da contratação, ele alertou, dizendo que não sabia fazer planilhas, não tinha Excel avançado. E respondemos que tudo bem, afinal, Excel aprende-se. Assim como, na contratação dos professores, a pergunta principal foi “Você gosta de aluno?” Isso é mais fundamental do que contabilizar o número de doutorados. A Inteli, como muitas organizações, adota um modelo horizontal de gestão e também de ensino. Nessa proposta, o importante é ter um modelo mental adequado ao momento da empresa, sentir-se confortável em meio ao desconforto de trabalhar em meio a muitos questionamentos, colocar-se numa posição de eterno aprendiz. O mercado de trabalho está mudando. E o ensino precisa se adaptar a ele.

Nesse sentido, como vê essa mudança no mercado de trabalho e como as instituições devem preparar melhores profissionais?

Sempre percebi que havia uma pequena distância entre o que o ensino superior ensinava e o que o mercado de trabalho contratava. E esse abismo começou a se abrir nos últimos anos. Notei essa disparidade quando passei 18 anos fazendo processo de seleção. No início, quando comecei a atuar, a regra era se você tivesse feito uma boa faculdade e falasse um segundo idioma – de preferência, inglês – provavelmente teria um lugar garantido em uma organização. Foi assim durante décadas. Só que nos últimos anos isso mudou, e muito. As empresas perceberam que não adiantava contratar o melhor aluno da melhor faculdade, as competências comportamentais eram tão importantes quanto. E experiências como intercâmbio e projetos voluntários formavam melhores executivos. Ao mesmo tempo, o estudante mudou. Se antes o desejo do jovem era se formar e trabalhar numa multinacional, hoje, há uma procura constante por propósito, por empreendedorismo e a tecnologia entrando como um instrumento fundamental para alcançar esse sonho. Por isso, a Inteli aposta no Project Base Learning, que é unir a teoria aplicada à prática. Ou seja, desde o primeiro ano, os alunos vão solucionar um problema real de uma empresa real.

Você tem duas filhas, Estella, de 12 anos, e Carolina, de 11. Como imagina que será o mercado de trabalho delas?

Elas e toda a sua geração precisarão ser principalmente seres humanos de ponta a ponta. E isso significa ter competências comportamentais muito bem desenvolvidas, dominar a tecnologia, não temer o tipo de contato humano que essa ciência permite. Por exemplo, minhas filhas gostam muito de videogame. Dia desses, a Carol “caiu” numa sala do Discord, em que só havia adultos fazendo coisas que não deviam. Ela percebeu isso e tomou a iniciativa de sair. Ela me chamou e me contou: “Mãe, entrei numa sala que não era para mim”. Nossa, fiquei muito orgulhosa. Porque a ideia, não apenas na educação delas, mas de todos, é desenvolver o senso crítico, usar a tecnologia de forma adequada, produtiva e virtuosa. Também acredito que o ensino médio irá preparar melhor estudantes para o mercado de trabalho e teremos um cenário mais inclusivo, no Brasil também. Ainda falta? Sim, mas há excelentes iniciativas, estamos em um bom caminho. Sou otimista.

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