Sonhos na pandemia documentam a estranheza de nossa época

Parece contraditório, mas durante o sono podemos despertar e reagir ao sem-sentido trazido pela pandemia. É o que explica Gilson Iannini, um dos organizadores do livro que registra os sonhos dos brasileiros durante o confinamento.


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Em 2020, encontramos o absurdo: a pandemia de Covid-19 inaugurou períodos de confinamento total ou parcial no mundo todo, como forma de contenção de um vírus mortal – só no Brasil, ela já tirou a vida de mais de 358 mil pessoas. Acordados, experimentamos o medo da morte. Dormindo, levamos o sem-sentido do dia a dia para a fábrica de sonhos que há em cada um. Dali saía um material deformado, mas desconcertantemente reconhecível, familiar e aterrorizante na mesma medida. Sonhando, pudemos entrar em contato com nossos medos, angústias e preocupações quanto ao futuro, ao mesmo tempo em que tentávamos construir algum tipo de dicionário que decodificasse este presente tão estranho.

Mais do que testemunhos íntimos, nossas incursões oníricas são também o documento psíquico de uma sociedade em uma determinada época. Este é o argumento do livro Sonhos Confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia? (Editora Autêntica), resultado de uma pesquisa nacional de coleta de sonhos e que tem como organizadores os psicanalistas Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski.

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Para a elaboração do livro, lançado esta semana, quase 900 sonhos foram estudados por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Deste total, chama a atenção que 80% deles tenham sido relatados por mulheres.

Além do registro da produção onírica dos participantes, o projeto recolheu as interpretações feitas pelos sonhadores. O objetivo era mapear os efeitos psíquicos do confinamento por meio da análise dos sonhos e, simultaneamente, oferecer escuta a quem estivesse em sofrimento. Sendo os sonhos um acesso privilegiado ao inconsciente, ou seja, ao que não era processado pela consciência do sonhador, histórias particulares se cruzavam com experiências compartilhadas. E assim, um a um, os participantes puderam compor um quadro coletivo em que a pandemia reatualiza batalhas internas e desamparos.

 

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“Mãe” e “casa” foram alguns dos temas frequentes nos quase 900 sonhos estudados para a elaboração do livro.

 

O desamparo, aliás, é denunciado pela alta frequência da palavra “mãe” nos relatos dos sonhos. A relação ambígua com a casa, a mudança de percepção do tempo, os projetos interrompidos da juventude e os sonhos com figuras públicas também aparecem como temas em comum entre muitos sonhadores.

Por mais ilógicos que pareçam, os sonhos ajudam a processar um sentido para o sem-sentido da vida acordada, explica Gilson Iannini, professor do Departamento de Psicologia da UFMG e editor da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud, da editora Autêntica.

Elaborar os acontecimentos atuais é um trabalho psíquico necessário, uma vez que a pandemia provoca também uma crise de saúde mental, como lembra Iannini. Daí o valor inestimável de nossas produções durante o sono. Leia a seguir a entrevista concedida à ELLE pelo pesquisador, que é também membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.

De que forma os sonhos, comumente referidos como um espaço do privado e do individual, podem dizer algo dos aspectos sociais e políticos na pandemia?

O sonho não deixa de ser singular, individual, entrelaçado às histórias de vida e aos dramas particulares de cada um. Porém, especialmente em momentos de maior instabilidade e períodos de exceção, como esse da pandemia, ou como foram os períodos de guerra, de campos de concentração e de crises coletivas maiores, os sonhos têm mais similaridades do que em tempos considerados normais.

Temos algumas hipóteses sobre o porquê disso. É importante a gente entender que, na psicanálise, o sujeito nunca é apenas um indivíduo: ao mesmo tempo em que a gente é extremamente singular e único, em nossas instâncias psíquicas, existem projeções de padrões e normas de estruturas sociais. Então, o sujeito está em um limite mais ou menos tênue entre o individual e o social.

O sonho costuma aglutinar duas camadas principais de material: uma delas tem a ver com a história mais individual de cada um, com as memórias antigas, desejos e traumas. Uma outra camada de material é feita de restos diurnos, ou seja, de material não processado de nossas experiências compartilhadas. Estes restos são lembranças dos dias anteriores ao sonho, percepções que não passaram pela consciência… como quando a gente sonha com o que viu no noticiário ou com uma preocupação específica. Em contextos de exceção ou de instabilidade, é comum que a gente perceba uma intromissão maior dos restos diurnos, um material que parece emprestar aos sonhos as características mais gerais.

Um outro elemento importante é que esses momentos implicam em um trabalho psíquico mais exigente. Nosso psiquismo tem mais trabalho para elaborar a novidade, e isso ficou muito claro especialmente nos primeiros meses da pandemia. A gente não tinha um repertório de símbolos, imagens e narrativas que permitissem entender o que estava acontecendo, e o sonho é uma forma de tentar processar esse material novo. A realidade invadiu a nossa vida psíquica de uma maneira muito mais intensa do que costuma invadir.

Em uma realidade tão difícil de assimilar e, por diversas vezes, descrita como ficcional, tamanho o absurdo e a ausência de sentido, o que os sonhos podem oferecer para nossa travessia coletiva pela pandemia?

A gente vê as ruas esvaziadas, pessoas usando máscaras, coisas que mais parecem saídas de um filme do que da nossa experiência prévia à pandemia. Nesse contexto, onde parece haver uma mistura entre fantasia, ficção e realidade, a impressão que dá é que o sonho nos desperta mais. De alguma maneira, ele dá conta de processar o que está acontecendo, porque nele não há censuras. O sonho não leva em consideração nossas crenças políticas e ideológicas, nossa moralidade, o senso comum; então, ele acaba funcionando como uma espécie de sismógrafo capaz de perceber, de uma maneira mais clara, aquilo que os nossos preconceitos ideológicos, políticos e morais não conseguem. Isso porque, no sonho, o pensamento se permite combinar elementos heterogêneos que a (boa) consciência tem dificuldade de admitir.

É curioso que, às vezes, nos sonhos, a gente está mais desperto e volta a dormir quando acorda. A sensação que estamos vivendo agora, depois de um ano de pandemia, de uma espécie de anestesia psíquica, em que nada mais comove, indiferentes à morte do outro e à brutalidade desse contexto e caos social, político e sanitário, acaba por gerar uma espécie de incapacidade de reagirmos coletivamente. É como se a gente voltasse a dormir e caísse num sono profundo, socialmente falando.

Individualmente, porém, a gente sofre mais agora do que há um ano. As pessoas estão mais adoecidas. A pandemia de Covid-19 é uma pandemia de saúde mental ao mesmo tempo.

“A sensação que estamos vivendo agora, de uma espécie de anestesia psíquica, em que nada mais comove, acaba por gerar uma espécie de incapacidade de reagirmos coletivamente. É como se a gente voltasse a dormir e caísse num sono profundo, socialmente falando.”

O livro demonstra que houve uma notável recorrência da palavra “casa” nos relatos dos sonhos. Guardada a pluralidade de sentidos para cada pessoa, vocês destacam a ambiguidade dos sentimentos: “casa” não significa proteção para todos, pois para algumas mulheres ela as expõe ao perigo da violência doméstica ou ao aumento de cansaço. O que você destacaria desse valor da casa no confinamento?

Encontramos uma frequência alta da palavra “casa” e a rede de conexões que ela estabelece com outras palavras é muito rica. “Casa” costuma ser o cenário de muitos sonhos, inclusive fora da pandemia, mas o que chamou a atenção aqui foi a ambiguidade afetiva relacionada à palavra: um lugar para onde quero voltar, e esse lugar de onde quero fugir. A casa me protege, mas me aprisiona ao mesmo tempo. E os sonhos mostram exatamente isso. Ou alguém invade a casa ou é impossível eu sair de lá: tem um incêndio, uma urgência em que sou obrigado a fugir de casa rápido, mas a escada está inacessível ou a porta se transformou em uma parede.

A ambiguidade da palavra “casa” não aparece apenas para as mulheres. Mas há dados muito importantes que mostram que a violência contra a mulher aumentou na pandemia e aumentou também o nível de estresse psíquico, porque elas tiveram que acumular funções que já acumulavam, mas agora de uma maneira exponencial.

Uma coisa que é extremamente angustiante é você ter que viver o mesmo papel o dia inteiro. Quando uma mãe trabalha fora, ela é mãe só naquelas horas em que está em casa. Enquanto está no trabalho, qualquer que seja, ela está exercendo funções específicas e reassume o papel de mãe quando volta para casa. Em um contexto de home office, você é, ao mesmo tempo, alguém que trabalha e a mãe, 24 horas por dia, sete dias por semana. Isso é extremamente angustiante.

A gente, às vezes, acha que assumir papéis sociais diferentes das próprias inclinações seja angustiante: é importante ser sempre eu mesmo, encontrar meu verdadeiro eu, ser autêntico o tempo todo… Ao contrário. O que é angustiante é ter que ser você o tempo todo. Quando a gente pode exercer um outro papel, não ser eu o tempo inteiro, não ser mãe ou pai o tempo todo, nossa angústia é aliviada. O que é angustiante é ter que viver o mesmo papel 24 horas por dia e isso tem sido especialmente acentuado para as mulheres.

O capítulo “Mulheres” – mãe, sonhei com você: contar o trauma é dedicado aos sonhos das mulheres. Elas representaram 80% dos relatos de sonhos enviados e uma das coisas que chamam atenção é justamente a centralidade da palavra “mãe”.

“‘Casa’ costuma ser o cenário de muitos sonhos, mas o que chamou a atenção foi a ambiguidade afetiva relacionada à palavra: um lugar para onde quero voltar, e esse lugar de onde quero fugir. A casa me protege, mas me aprisiona ao mesmo tempo.”

Essa recorrência da palavra “mãe” dá uma dimensão do desamparo que a pandemia representa?

Sim. A palavra “mãe” apareceu independentemente do gênero dos sonhadores. Tentamos pensar o que isso poderia indicar, e a primeira coisa que fizemos foi correlacionar a frequência da palavra nos relatos de sonhos e nos restos diurnos das pessoas – a gente coletou não apenas os sonhos, como também as associações que as pessoas faziam às suas lembranças dos últimos dias, ou seja, como elas interpretavam o sonho. A palavra “mãe” aparecia com uma frequência muito alta nos sonhos, independentemente de aparecer nos restos diurnos. Não quer dizer que sonhei com minha mãe porque pensei, me preocupei ou conversei com ela no dia anterior. Não foi isso que aconteceu. Então, se a gente retomar aquela relação entre restos diurnos e conteúdos inconscientes, “mãe” mostra a ativação de memórias inconscientes longínquas porque ela (a pessoa) não estava relacionada diretamente aos restos diurnos, às lembranças recentes.

Houve alguns elementos extremamente gerais nos sonhos que permitem a gente falar de uma espécie de trauma coletivo que, claro, significa uma coisa muito diferente para uns e outros, a partir da nossa própria história individual, social, do nosso gênero, raça etc. Nossa hipótese é que esse trauma acaba ativando uma memória inconsciente relacionado à “mãe” e sugerindo a extrema situação de desamparo que boa parte das pessoas experimentou.

Ou seja, a mãe aparece como uma espécie de paradigma da proteção, do amparo e da segurança diante de uma situação extrema de desamparo. Qual nossa primeira experiência de desamparo? Quando a gente nasce. O bebê com fome não sabe resolver a fome por si mesmo, ele precisa da ajuda de um outro. Esse outro frequentemente é a mãe – a gente chama de mãe aqueles que prestam esses cuidados, independentemente de ser homem, mulher ou mãe biológica. Essa mãe é o que ampara o desamparado. Nos primeiros meses da pandemia, especialmente, estávamos todos nessa experiência de um desamparo coletivo.

“Quando a gente pode exercer um outro papel, não ser eu o tempo inteiro, não ser mãe ou pai o tempo todo, nossa angústia é aliviada. O que é angustiante é ter que viver o mesmo papel 24 horas por dia e isso tem sido especialmente acentuado para as mulheres.”

Os sonhos mostraram alterações sofridas na percepção do tempo. Houve redefinição de prioridades ou o que se viu foi uma paralisia do presente?

Um trauma sempre perturba nossas relações com o espaço e com o tempo. No caso específico da pandemia, o tipo de relação com o espaço foi profundamente alterado para as pessoas que sofreram o efeito do isolamento da quarentena. Isso, evidentemente, tem efeitos psíquicos e vai variar com o tipo de ocupação, classe social, gênero ou raça que atravessam as sociedades em geral, especialmente a brasileira. Por exemplo, os garis nunca pararam de trabalhar, assim como os profissionais de saúde, desde o médico até a pessoa que faz a faxina de um hospital.

A relação com o tempo muda para todo mundo, porque há uma quebra das nossas expectativas pela própria emergência da pandemia. Por mais que a gente não saiba exatamente o que é o futuro, por nossa prática, sempre se espera que o Natal vai ser mais ou menos daquele jeito. De repente, com a pandemia, a gente perdeu a expectativa de um futuro já conhecido. É como se a gente ficasse com um horizonte aberto e escuro ao mesmo tempo. Por não termos representações, narrativas, memórias ou esse repertório de experiências do passado, não temos como imaginar o futuro.

Diante desse desconhecido, a gente detectou que as pessoas estavam, de alguma maneira, precipitando decisões. Com o início da pandemia, um casal teve que rapidamente optar por se casar ou se separar. Aquilo que ocorreria em um tempo mais dilatado precisou de decisões mais rápidas, como voltar para casa dos pais ou a definição de quem fica com o filho, no caso de casais separados. Essa precipitação teve efeitos na subjetividade muito intensos.

Nossa pesquisa não se limitou a recolher sonhos, a gente também escutou individualmente as pessoas que tiveram interesse e que estavam em intenso sofrimento psíquico. A gente ofereceu uma espécie de terapia de orientação psicanalítica breve para essas pessoas. E, muitas vezes, o que estava em questão era o fato de a pessoa ter que precipitar uma série de decisões cujas consequências seriam duradouras.

Por outro lado, outras pessoas tiveram uma experiência quase que inversa, que é a do tempo expandido. Isso aconteceu muito com os estudantes, até que as escolas se adaptassem às aulas online, e com os trabalhadores, que aguardaram as empresas se adaptarem ao home office. Muita gente teve a experiência de um tempo alongado. Essa perturbação do tempo apareceu muito nos sonhos.

Freud escreveu em 1915 que a guerra nos obrigou a rever certas convenções morais humanas, já que não houve respeito às milhões de vidas ceifadas e os acordos civilizatórios foram rompidos. É possível fazer uma analogia com a pandemia no lugar da guerra, considerando que estamos observando a proposta destrutiva de alguns líderes e o egoísmo de muitas pessoas?

Este texto (Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte) fala que nesses períodos em que as pessoas não morrem uma a uma, mas às centenas, ou aos milhares, como estamos vendo no Brasil com 4 mil mortos por dia, a gente tem que, de alguma maneira, enfrentar o tratamento convencional dado à morte, que é o de não querer saber dela. Freud falava que a gente tenta matar a morte com o silêncio. Só que a fragilidade dessa estratégia se torna evidente quando a morte ocorre nesse contingente enorme de pessoas ao mesmo tempo.

Então, a gente tem que pensar naquilo que nunca pensa. Freud dizia que, no inconsciente, cada um pensa que é imortal. Intelectualmente, nós sabemos que somos seres mortais, mas, afetivamente, não. Mesmo quando a gente pensa na própria morte, não tem uma representação psíquica, porque é estruturalmente impossível. A gente pensa nela do ponto de vista de uma terceira pessoa, como um outro olhando seu próprio enterro.

“Freud falava que a gente tenta matar a morte com o silêncio. Só que a fragilidade dessa estratégia se torna evidente quando a morte ocorre nesse contingente enorme de pessoas ao mesmo tempo.”

O momento atual seria o de reconhecer a mortalidade?

Freud dizia que em períodos como a guerra, que no tempo dele era concomitante com a gripe espanhola, esse caráter convencional e negacionista da morte caía por terra. Mas a gente vive hoje um contexto em que a sociedade é extremamente polarizada. Isso tem muito a ver com a nossa vida social ter se transformado em uma vida digitalizada, ou seja, vivemos cada vez mais em bolhas de compartilhamento de crenças sobre o que é real e o que não é. Os algoritmos que definem o que aparece ou não pra mim nas redes sociais têm a ver com as minhas escolhas, sempre redundantes. Ou seja, eles tendem sempre a trazer um viés de confirmação para minhas hipóteses. Então eu tendo a cada vez mais receber notícias e experiências de pessoas que, como eu, acreditam na tese x ou y.

Isso explica o porquê dessa atitude negacionista com relação à morte se tornar o divisor de águas entre duas grandes bolhas: existe a que tem medo da própria morte, se sensibiliza com a morte do outro, se dá conta do momento grave que a gente está vivendo e, portanto, toma as medidas de precaução. E temos também a bolha de pessoas que acentuam o comportamento de negar a própria morte. Diante da evidência e do risco da morte, eu entro numa espécie de defensiva que reforça esse mecanismo psíquico que já é padrão. Ele é reforçado quando a gente é confrontado com o que traz uma incongruência com nossas próprias crenças.

 

 

 

 

 

 

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