Você não é o que você come

Como o TikTok se transformou na plataforma ideal para a propagação de um conteúdo que estimula o desenvolvimento de transtornos alimentares (ao mesmo tempo que abriga jovens garotas que estão lutando contra isso).


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Aviso de gatilho: esta reportagem pode apresentar conteúdo sensível para pessoas com transtornos alimentares.

Entre um vídeo de dancinha e outro de alguém dublando um áudio engraçado, eis que surge na tela um post com o título “O que eu comi em um dia”, em que uma menina aparece filmando e narrando todas as refeições que fez. Assisti por não mais do que três segundos até perceber que se tratava de alguém fazendo algum tipo de dieta restritiva. Como aquilo não me interessava, pulei para o próximo vídeo. Na vez seguinte em que abri o TikTok, mais dois ou três vídeos parecidos estavam no topo da FY, a página For You, uma versão tiktoker do feed de notícias. Diferentemente de outras redes, o conteúdo mostrado nessa tela de início não é o de quem você segue ou de quem você conhece, mas sim algo 100% construído por algoritmos, baseado em tudo o que você consome no app — e provavelmente fora dele. A fórmula é simples: quanto mais você assiste a determinado tipo de conteúdo, mais ele será recomendado para você.

Mas o que parece funcionar bem para uma curadoria de conteúdo totalmente personalizada também tem outro lado. No TikTok, desafios que incentivam uma comparação nada saudável com o corpo alheio, publicações que espalham informações erradas sobre nutrição e dão dicas de dietas restritivas têm passe livre. Com uma roupagem atrativa e aparentemente inofensiva de entretenimento, esse material tem se mostrado um gatilho perigoso para o desenvolvimento de transtornos alimentares especialmente entre adolescentes, público que representa a maioria dos 800 milhões de usuários mensais da rede.

Em áudios como “I tried to show my weight loss” [“tentei mostrar minha perda de peso”], publicado mais de 278 mil vezes, meninas puxam camisetas e moletons largos para trás na tentativa de mostrar seu emagrecimento, por exemplo. Em ‘so you think I’m skinny’ [“então você me acha magrinha”], usado mais de 88 mil vezes, os usuários relatam — disfarçando orgulho com humor — situações em que ganharam uma peça de roupa com tamanho pequeno ou em que sua perda de peso foi reconhecida. Nenhum desses vídeos aparece com um “aviso de gatilho” ou com um “aviso de conteúdo sensível”. E por que deveriam?

O áudio “I tried to show my weight loss” foi utilizado mais de 278 mil vezes no TikTok e o ‘so you think I’m skinny’, mais de 88 mil.

Para a nutricionista Fernanda Imamura, esse tipo de conteúdo não traz nada de positivo. “As pessoas em geral já têm essa visão de que deveriam comer menos, e ali [no TikTok] são adolescentes que ainda estão desenvolvendo o senso crítico. A ideia de pensar em quanto o outro pesa, no que o outro come, é muito prejudicial”, diz. “A própria plataforma precisa assumir a responsabilidade do que é veiculado ali. Esses perfis que falam de alimentação de maneira irresponsável têm engajamento muito alto. Vejo até mesmo outros profissionais no TikTok com uma abordagem antiga de recomendar dietas restritivas, dizer o que pode e o que não pode comer. Isso pode levar ao adoecimento das pessoas”. Remando contra essa maré, Fernanda segue a abordagem comportamental na nutrição, que leva em conta vários fatores além da alimentação, como questões sociais, culturais e emocionais. “A gente trabalha não apenas o que a pessoa come, mas como ela come e como é a relação com a comida. É uma abordagem que não tem dieta pronta, cardápio pronto, que tem como foco a saúde mental também”, explica. Em seu perfil no TikTok, ela compartilha dicas sobre o tema.

Quando eu decidi escrever esse texto, não só comecei a dar mais atenção a esse conteúdo, como passei a buscar por ele na rede. Demorou menos de 24 horas para que minha FY virasse monotemática: emagrecimento, como enganar a vontade de doce, dieta do ovo, alimentos proibidos, o tal do “o que eu comi em um dia” e mais regimes absurdos. Com o passar dos dias, me senti entrando em uma espécie de submundo dos transtornos alimentares no TikTok. Os posts que tentavam se passar por saudáveis apareciam menos, dando lugar a cada vez mais desabafos de adolescentes extremamente preocupados com o peso. Em um dos vídeos, uma jovem se mostrava aflita em relação às calorias que poderia ingerir acidentalmente quando usava um protetor labial. Em muitos outros, os usuários falavam abertamente sobre seus transtornos alimentares, como a quantidade de dias que estavam sem comer (um comportamento típico da anorexia) ou ensinando truques para a purgação (o ato de eliminar a comida do corpo, que pode ser por auto-indução de vômito ou uso indevido de laxantes ou de diuréticos, característico da bulimia). O tema já chegou até à usuária mais seguida da rede social: a norte-americana Charli D’Amelio, de 16 anos. Em setembro deste ano, ela revelou ter um transtorno alimentar e que, apesar do medo de torná-lo público, espera que sua história inspire quem também tem problemas de imagem corporal a buscar ajuda.

E o que diz o TikTok? De acordo com as Diretrizes da Comunidade, a plataforma não permite “conteúdo que apoie comportamento pró-anorexia ou outros comportamentos perigosos para perda de peso”. A exceção seria para o “conteúdo que ofereça apoio, recursos ou mecanismos de defesa para pessoas que sofrem de transtornos alimentares ou praticam a autolesão”. À reportagem da ELLE Brasil, a porta-voz do TikTok afirmou, sem exemplos ou números concretos, que “a plataforma possui uma equipe de moderadores de conteúdo capacitados que aplicam as Diretrizes da Comunidade para analisar os conteúdos e contas, que são encaminhados por relatórios de usuários e identificação baseada em tecnologia. Nossos moderadores revisam o conteúdo e as contas que são escaladas e sinalizadas por meio de denúncia de usuários. Também possuímos modelos de detecção de objetos que sinalizam coisas, como símbolos de ódio, para uma análise humana posterior”. Questões sobre por que tantos conteúdos deliberadamente pró-anorexia continuam no ar e quais medidas a plataforma pretende tomar para conscientizar seu público não foram respondidas.

Na prática, o controle é deixado nas mãos do usuário. Se você não gosta ou não se sente confortável com alguma publicação que aparece para você, pode marcá-la na opção “não interessado” ou mesmo bloquear o perfil que postou. Mas quando o assunto é transtorno alimentar não é bem assim que funciona. Quem tem a doença, dificilmente vai driblar por conta própria os conteúdos relacionados a ela — pelo contrário. “Não existem muitas doenças por aí com grupos que as defenda. Você não vê o movimento pró-artrose, pró-infarto. Mas existe o grupo pró-anorexia, o pró-bulimia, e eles se identificam não como uma doença, mas como um estilo de vida, como se fosse uma escolha”, explica Eduardo Aratangy, psiquiatra do AMBULIM (Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares realizado pelo SUS) no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

“A gente sabe que existem alguns fatores biológicos, como a hereditariedade, para o desenvolvimento de transtornos alimentares. Mas a influência do ambiente é muito determinante. Em uma sociedade muito ligada à estética, com modelos irreais que se expõem em mídias sociais o tempo todo, com alvos inatingíveis de corpo, beleza e sucesso, a tendência é que o problema se prolifere”, aponta o médico.

“Os influenciadores são figuras que têm uma representação social de realização, de determinação e até mesmo de felicidade. O adolescente acaba muito exposto a esse conteúdo, e nem sempre vai ter a leitura de que aquilo é mais marketing do que realidade”, diz a psicóloga Carine Nepomuceno

Para a psicóloga Carina Nepomuceno, especialista em comportamento alimentar, a figura do influenciador também tem seu papel na supervalorização do suposto corpo perfeito (seja ele magro ou musculoso) e no estímulo a dietas que limitam o cardápio. “Os influenciadores são figuras que têm uma representação social de realização, de determinação e até mesmo de felicidade. Muitas vezes, as pessoas vão querer repetir aquele padrão de comportamento para obter a mesma recompensa — o sucesso, o dinheiro, os seguidores. O adolescente acaba muito exposto a esse conteúdo, e nem sempre vai ter a leitura de que aquilo é mais marketing do que realidade”. Ainda segundo a psicóloga, tudo isso dificulta até a busca por ajuda, já que os influenciadores contribuem para normalizar um comportamento disfuncional, que ganha a fachada de vida saudável.

Foi na tentativa de mudar a narrativa dos transtornos alimentares no TikTok que Luísa Aguiar, de 17 anos, decidiu compartilhar sua própria história na rede. Para atrair usuários que normalmente não procurariam por um conteúdo body positive e pró-tratamento, ela começou a usar hashtags comuns entre pessoas com distúrbios — como “anorex1a” (com o número 1 no lugar do i, mais difícil de ser rastreada). “O transtorno alimentar é uma doença muito solitária. Nós achamos que somos os únicos a passar por isso, quando, na verdade, muita gente passa. Foi muito difícil me abrir publicamente, mas eu percebi que era necessário porque quero conscientizar as pessoas sobre a doença, ajudar a normalizar a busca por terapia e mostrar que qualquer um pode desenvolver um transtorno. As pessoas precisam saber como ajudar quem passa por isso”, diz ela.

A história de Luísa com os transtornos alimentares começou quando ela tinha 15 anos e recebeu um diagnóstico de diabetes tipo 1 durante um intercâmbio no Canadá. De volta ao Brasil às pressas, a adolescente entrou em cetoacidose (complicação da diabetes que decorre da falta de insulina no organismo), o que fez com que perdesse 15 quilos. “Quando eu comecei a me recuperar, fui voltando para o meu peso normal e fiquei obcecada com o corpo. Eu migrei de um transtorno para outro: fui da bulimia para a ortorexia [obsessão por alimentos saudáveis]. Perdi muito peso, mas quase ninguém percebeu. Eu botei na minha cabeça que queria voltar para o peso de quando tinha cetoacidose, então parei de tomar insulina para a minha glicose ficar alta e eu perder peso de novo. Foi quando desenvolvi diabulimia [quando acontece uma diminuição intencional da dose de insulina com o objetivo de perder peso], um dos piores transtornos que eu já tive. Fiquei muito doente e fui internada. Foi quando eu realmente confessei para as pessoas que tinha um problema. Como todo mundo começou a ficar em cima da minha insulina, fiquei ansiosa e comecei a ter compulsões alimentares. Acabei engordando e isso mexeu muito comigo. Sempre tive uma grande distorção corporal desde que fui diagnosticada. Migrei para a anorexia e perdi muito peso em um curtíssimo espaço de tempo. Tive amenorreia [interrupção na menstruação], irritabilidade, calafrios, tonturas e até crescimento dos pelos do corpo. Foi aí que eu decidi dar um basta. Estou há três meses no tratamento, não só terapêutico, mas psiquiátrico e também comigo mesma”.

“Foi muito difícil me abrir publicamente, mas eu percebi que era necessário porque quero conscientizar as pessoas sobre a doença, ajudar a normalizar a busca por terapia e mostrar que qualquer um pode desenvolver um transtorno”, diz Luísa Aguiar.

Mesmo sem estar completamente recuperada, Luísa vê o compartilhamento de suas vivências no TikTok como parte importante do tratamento. “Eu recebi muito apoio dos meus seguidores, e conscientizar as pessoas sobre o assunto me faz ter ainda mais certeza de que eu fiz a escolha certa em me tratar. Todos os dias eu recebo em torno de 40 a 60 mensagens de pessoas pedindo conselhos, mandando fotos do que comeram no dia e agradecendo pelo meu conteúdo, e eu converso com cada uma como se fosse minha amiga, sempre aconselhando a buscar ajuda terapêutica e psiquiátrica”, conta. “Não é fácil fazer com que elas entendam que merecem comer e que o corpo não as define, porque o transtorno alimentar é uma doença extremamente competitiva e teimosa. Como eu ainda estou em tratamento, sei que muitas coisas podem se tornar gatilho, então eu também só respondo quando estou me sentindo forte o suficiente para ajudá-las”. Em seu perfil, ela fala de temas como a perda de amizades por causa dos transtornos, incentiva outras pessoas a enfrentarem as comidas que mais lhe provocam medo e divulga sintomas pouco conhecidos dos distúrbios alimentares.

Ela não está sozinha. A estudante de Nutrição Gabriela Ortiz de Camargo, de 23 anos, usa seu espaço no TikTok para falar de alimentação de um jeito acessível, saudável e contra todo o tipo de restrição. “Passei a adolescência pulando de dieta em dieta, e só melhorei quando passei por uma reeducação alimentar, que me fez conhecer novos sabores e equilibrar a alimentação. Pouco a pouco, fui me desprendendo da ideia do corpo perfeito, de ‘comer certinho’ o tempo todo. Como eu vi uma melhora muito significativa na minha autoestima, quis passar isso para outras pessoas. Ainda é muito naturalizada a ideia de que ter uma barriga chapada significa ter saúde”. Em seus vídeos, ela usa linguagem e estética características da rede social, com dancinhas, desafios e áudios bem-humorados. Há também perfis como o de Lela, que tem só 16 anos, e Bella Russo, que compartilham a recuperação de transtornos alimentares com abordagens positivas em relação à comida e à autoaceitação.

São meninas jovens, em muitos casos ainda em tratamento, que expõem suas vulnerabilidades para evitar que outros passem por tudo o que elas passaram. É de uma força admirável. “As pessoas costumam associar uma ideia de fragilidade às meninas com transtornos. Mas é muito curioso conviver com essas pacientes porque elas têm uma potência absurda, que a gente não vê nas outras pessoas”, diz o psiquiatra Eduardo Aratangy. “É como o mito do curador ferido: ninguém melhor para compreender uma pessoa que tem dor do que alguém que já passou por aquele sofrimento. E, ao curar o outro, esse curador também se cura”.

Para além das redes

No caso de Beatriz [nome fictício para proteger a identidade da entrevistada], a relação com os transtornos alimentares ainda ganhou outra camada: a da gordofobia, central tanto no desenvolvimento quanto no tratamento da doença. “A gordofobia se apresentou desde cedo na minha família, então eu sempre relacionei comida a coisas terríveis. Meu pai era mais agressivo nisso. Ele vigiava meus comportamentos alimentares, dizia que eu não seria feliz se fosse gorda, que não teria um amor, que eu era preguiçosa e gulosa, sendo que muitas vezes eu só estava tentando me alimentar. Também desenvolvi depressão, que só se intensificou junto com o transtorno. Nessa época, eu fazia dietas restritivas e também vomitava muito, porque tinha episódios de compulsão em que comia até sentir meu estômago doer. Eu nunca emagreci, eu não conseguia. Sempre fui uma pessoa gorda e isso não mudou. Fazia exercícios, ficava sem comer, mas as compulsões logo voltavam e eu engordava”, relata.

Assim que ela reconheceu sua condição e se sentiu pronta para buscar ajuda, foi vítima de gordofobia médica. “Falei ao psiquiatra que não conseguia dormir, contei sobre minha automutilação e sobre provocar vômitos, sobre o diagnóstico de depressão e ansiedade. Ele me deixou falar e, em seguida, olhou para o meu pai, que estava comigo na sala, e começou um monólogo sobre como jovens são mal-educados. Disse que meu problema devia ser decorrente de uma criação ruim, que eu parecia ser preguiçosa e, depois de falar de mim e do meu corpo como se eu não estivesse ali, ele finalmente se virou para mim e me ofereceu um remédio para emagrecer. Depois disso, eu me recusei a ir em outros psiquiatras, desenvolvi pânico e a ansiedade só aumentou”, diz ela. Por causa de seu peso, ela se sentia que precisava se provar merecedora de um tratamento digno. “Continuei meu tratamento com uma psicóloga, mas nada me convencia a voltar a um psiquiatra. Eu digo que a gente não se cura nem aprende a lidar com isso sem passar por um tratamento, e é real. Hoje eu até me sinto melhor comigo mesma, mas tudo são fases”.

“É impossível olhar para uma pessoa e dizer se ela tem ou não um transtorno somente pela aparência”, afirma a psicóloga Valéria Palazzo, do Grupo de Apoio e Tratamento de Distúrbios Alimentares e da Ansiedade (GATDA). “O transtorno alimentar não tem cara, não tem tamanho. Ele pode existir em qualquer gênero, em qualquer idade e em pessoas de todos os pesos”. Disfarçado de preocupação com a saúde, o preconceito com a pessoa gorda age justamente contra seu bem-estar, contaminado por discriminação e incentivo a odiar o próprio corpo. Quando entram em cena os estímulos vindos das redes sociais, as chances de desenvolver uma relação problemática com a comida só crescem. Hoje, Beatriz escolhe bem quem vai seguir online. “No TikTok, o algoritmo indica o que você já procura, então eu aprendi a me munir de pessoas parecidas comigo, que não tenham posicionamentos gordofóbicos para evitar cair em algum gatilho pesado”. A jovem conta que dá sempre preferência para pessoas gordas, que falem não só de questões com o corpo, mas assuntos variados, que gerem identificação — ela indica as @s Bia Gremion e Luana Carvalho.

De acordo com o psiquiatra do AMBULIM, nos últimos 30 anos, 85% dos casos de transtornos alimentares começaram entre os 12 e os 18 anos. “Quanto mais cedo começa, mais grave o problema se torna. Nas meninas, o início da menstruação é um dos eventos mais determinantes para o disparar do quadro. Isso vem junto com o papel social da menina na puberdade”, pontua. Em casos mais graves, as pessoas com anorexia chegam à caquexia, um grau extremo da desnutrição que pode levar à morte. Pesquisas mostram que a doença apresenta a maior taxa de mortalidade entre todos os distúrbios psiquiátricos, variando entre 15 e 20%. Para se ter uma ideia, pacientes com câncer de mama têm uma taxa de sobrevida mais alta. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), os transtornos alimentares frequentemente coexistem com depressão, ansiedade e/ou abuso de substâncias, e também têm participação ativa em casos de suicídio.

Nos últimos 30 anos, 85% dos casos de transtornos alimentares começaram entre os 12 e os 18 anos

Por isso é tão importante a participação da família na recuperação das pessoas com transtornos alimentares. “É preciso encontrar um equilíbrio entre o acolhimento e o limite”, avalia Aratangy. “Se a vida da pessoa só gira em torno do transtorno alimentar, ela provavelmente vai precisar de uma intervenção. Se ainda existem outros interesses, o acolhimento é mais importante, porque é isso que vai fazer a pessoa ter forças para sair desse quadro. Quando um paciente que já está se sentindo sozinho e incompreendido é confrontado na única coisa que se sente potente para fazer, ele se volta ainda mais para o comportamento alimentar. Por isso, se você me perguntar qual o tratamento mais importante para o adolescente, eu não tenho dúvidas: terapia familiar. Muito mais do que remédio, do que só a renutrição física. É claro que um tratamento ideal deve ser amplo, multidisciplinar, mas se eu precisasse escolher um só, seria esse.”

Minha psicóloga sempre diz que este não é um caminho em linha reta. “São dois passos para a frente e um para trás. Ainda assim você está caminhando para frente”, foi o que ela me garantiu quando eu tive uma recaída e achei que tivesse colocado todo o progresso a perder. Nunca mais esqueci. Ela também faz questão de me lembrar das minhas vitórias, por menores que elas sejam. Escrever este texto, eu confesso, foi uma delas. Aos 18 anos, tive meu primeiro transtorno alimentar. O que começou com uma dieta absurda — e que era um sucesso lá em 2011 — logo se transformou em uma anorexia nervosa que me fez parar de menstruar, ter as minhas primeiras crises de ansiedade e não conseguir separar, até hoje, comida de culpa. No ano seguinte, mergulhei de cabeça na compulsão alimentar e entrei num engorda-emagrece que pareceu eterno enquanto durou. Meus episódios compulsivos ainda continuaram por mais alguns anos, sempre estreitamente ligados às emoções que eu não compartilhava com mais ninguém, só com a comida. Hoje, aos 27, posso dizer que estou estável, mas levei muito tempo até conseguir admitir para mim mesma o meu diagnóstico. As pessoas ao meu redor também se comportavam assim, como se ignorar a existência da doença (ou não pronunciar seu nome, ao menos) pudesse fazer com que ela desaparecesse mais rápido. Spoiler: Não funcionou.

Eu só saí do lugar quando, meio a contragosto, comecei a pensar no meu corpo como uma engrenagem. Por mais que não me fizesse feliz, era o que me fazia funcionar, e eu precisava funcionar para conseguir pensar e viver outras coisas. Eu queria recuperar parte do que a anorexia tinha tirado de mim — meus gostos, meus amigos, minha curiosidade, meu tempo. Perto disso, a parte estética do meu corpo começou a parecer menos importante, e tudo fez ainda mais sentido quando eu finalmente busquei ajuda profissional.

Não se costuma falar em diagnóstico precoce para transtornos alimentares, mas ele também é fundamental. Assim como em outros distúrbios mentais, barreiras sociais ainda ajudam a criar uma redoma de culpa e vergonha em torno da doença. Para a tiktoker Luísa Aguiar, sua experiência teria sido mais fácil se não tivesse sido ensinada a sentir vergonha de seus transtornos. “Eu passei um ano da minha vida sem conseguir falar a palavra ‘anorexia’. Queria que alguém tivesse me dito que não é só culpa, que não é vergonhoso por ser uma doença mental, que é tão séria quanto uma doença física. Também gostaria que tivessem me dito que eu teria que ficar atenta à minha alimentação para o resto da vida, porque quando me falaram que eu estava estável, achei que tudo tinha acabado. Só que é preciso estar sempre atenta a algum pensamento negativo, algum ato distorcido. É uma luta diária para sempre”, ela completa.

Mas este não é um desfecho sobre cura. Nas palavras do psiquiatra Eduardo Aratangy, “é uma fratura que fica marcada, que deixa cicatrizes, que vai ser sempre uma questão sensível”. Da minha parte, descobri que ficam mesmo algumas cicatrizes. Mas chega um momento em que a gente se dá conta de que é mais do que o nosso transtorno.

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