O cringe e a minha, a sua, a nossa vergonha

Não adianta zerar a lista, ainda assim você pode ser o cringe de alguém neste exato instante.


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Se você usou qualquer rede social na última semana já sabe que, não bastasse a hecatombe brasileira, você agora precisa se preocupar em saber se é cringe ou não. Nem que seja pra não ficar de fora do passatempo do momento

To cringe é um verbo em inglês que descreve o ato de não apenas se sentir envergonhado, mas de se encolher de vergonha de alguma coisa. O termo usado como gíria pra algo próximo da vergonha alheia não é novidade. Desde 2016, teve picos de audiência no mundo e em contextos ligeiramente diferente. Exemplo: vídeos ruins de youtubers comentados por outros youtubers por serem constrangedores.

A nova onda de interesse por aqui começou com um tweet que virou lista. Uma lista de coisas que a geração Z acha vergonhosa, digo, cringe, nas preferências millennial. Um crash entre essas duas entidades geracionais que, vamos combinar, parece que foram inventadas pra promover exatamente esse tipo de polêmica.

A lista parece aleatória. Taylor Swift é tão cringe quanto tomar café ou falar sobre boletos. Mas, se a gente pensar só um pouco, isso nem é tão aleatório assim. Estamos falando de obsessões das redes. De tendências que precisam ser derrubadas em nome de outras porque é assim que a banda toca no mercado.

Eu amo café e se nem ordens médicas me fizeram desistir dele não tenho o que temer diante do alarme cringe. Mas quando começo a pensar na quantidade de fotos de xícaras e cafés da manhã com abacate postados diariamente na última década começo a simpatizar com a ideia dos Gen Z. Vai ver é isso, excesso de exposição.

Boleto todo mundo tem. Mas, sei lá, antes a gente pagava contas. De novo, um termo que vai ficando obsoleto rápido porque também subiu rápido demais. Como um meme velho ou um tipo de bolsa que datou em seis meses. Os preços de tudo seguem aumentando, seja como você escolhe chamar a facada. Que fase.

Mil Taylors cairão à sua direita, mil Olivias à sua esquerda, mas a capacidade do mercado de eleger e derrubar estrelas pop seguirá intacta até sabe-se lá quando.

Ou seja, o conteúdo da lista em si é banal, pra não dizer besta. E, sim, que atire a primeira pedra quem nunca se distraiu com uma besteira coletiva qualquer.

Mas me interessa muito esse deslocamento da palavra.O cringe fora da lista. Uma pessoa constrangedora simplesmente por existir em certo contexto. A expressão se espalhou para usos mais livres. Não adianta zerar a lista, ainda assim você pode ser o cringe de alguém nesse exato instante, causador de uma misteriosa vergonha que faz encolher, que faz o corpo querer se fechar diante da presença de um outro incômodo, vergonhoso.

Por que será que temos essa vergonha do outro, pelo outro, alheia?

Nosso cérebro é equipado de tal forma que fazer ou ver alguém fazendo alguma coisa tem registros não iguais, mas muito semelhantes. Mas não é só isso. Nossa reação diante da vergonha do outro tem muito a ver com nossa proximidade com ele, não só espacial, mas especialmente em termos de identificação. Em geral, podemos considerar que quanto mais nos identificarmos com o passador de vergonha, mais afetados seremos.

E podemos manifestar isso de jeitos diferentes. Rindo muito, virando o rosto, fingindo que não nos importamos, sofrendo junto. Muitas variáveis possíveis. E não seriam todas essas cenas formas de “to cringe” diante do cringe alheio? Isso porque, em algum lugar, vemos a vergonha alheia como um pouco nossa, tão nossa que sentimos no corpo e nos encolhemos, nos escondemos. Sabe quando você ri meio torto, meio sem querer, com medo de que se não rir possa virar alvo da piada? Por aí parece que temos uma pista dessa história.

Vergonha tem a ver com narcisismo e aceitação social. Tem a ver com angústia e formação de laços. É algo que todos temos em certo grau, mas que pode ser patológico.

A vergonha pode ser paralisante e estar relacionada a diferentes tipos de fobia social. A pessoa pode se encolher muito e de diferentes formas. Deixando de sair ou de se comunicar, de fazer amigos, por exemplo. Ou escondendo quem é de jeitos mais extremos, massacrada pela paranoia de que é ruim, insuficiente e de que, se o grupo souber quem ela realmente é, vai rejeitá-la de forma brutal.

Os grupos muito rígidos, as cabeças fechadas, a sociedade de performance, os moralismos controladores, os imperativos de gozo (do tipo aproveite o máximo, seja positivo, seja feliz, seja tudo muito, mas desse jeito assim ó) e os contextos de bullying em geral evidentemente agravam esse quadro.

A vergonha tem aí também uma dimensão política. O capitalismo trabalha no sentido de endeusar o novo contra o velho e de apagar ou ao menos borrar ao máximo traços singulares, singularidades. E isso está dito de forma muitas vezes leves e inofensivas, numa troca de tendências, por exemplo. No limite, quem não faz a troca vira cafona ou cringe. Mas quando a tendência vira opressão, quando mexe com feridas narcísicas, com traços de identidade mais importantes, bom, a coisa pode ficar séria e triste.

A diferença entre o humor e a humilhação passa necessariamente pela covardia, e tem uma rota complexa.

Terminar texto que começa com babado de internet nesse tom meio grave é cringe, acho. Mas tô aqui pra sabotar a onda do Google mesmo. Gostoso demais.

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