Na quarentena flexibilizada, pessoas “editam” vidas nas redes para evitar julgamento dos próprios amigos

"Compartilho, logo existo" costumava ser a máxima do Instagram. Agora, muitas pessoas (incluindo influenciadores) preferem se fechar em listas privadas.


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Moradora do Rio de Janeiro (RJ), a criadora de conteúdo Roberta*, 32, sempre foi rata de praia. Com a pandemia, deixou o hábito de ir tomar um sol de lado. Até que a quarentena foi flexibilizada (apesar de casos crescentes em todo o país). “Vou sozinha, durante a semana”, fala. O contato que ela retomou com o mar e a areia, antes publicado nas redes sociais, agora é um “segredo” que ela esconde até mesmo da melhor amiga, de quem ela é próxima há 12 anos. “Ela está superisolada e eu não estou a fim de ter gente me enchendo porque estou fazendo algo que julgo estar dentro do meu escopo de segurança sanitária”, diz.

Roberta tem mostrado pouco sua vida nas redes sociais. “Restringi os meus Stories para que pessoas que sei que vão me julgar por estar saindo não vejam, posto menos e, quando quero muito publicar uma foto, faço TBT falso”, narra. “Este já foi um ano muito desgastante para eu estragar também minha amizade com minha melhor amiga.”

A criadora de conteúdo é uma das pessoas que tem “editado” a vida que apresenta nas redes sociais. Editar a vida nas redes sociais, aliás, é um hábito que sempre existiu, mas antes queríamos mostrar todos os restaurantes que visitávamos e todos os passeios divertidos que fazíamos. Hoje há quem, quase 10 meses após o início da quarentena, esteja fazendo o caminho contrário: evita compartilhar que tem saído de casa para não receber julgamento e não criar atritos com amigos e conhecidos.

O hábito de “editar” a própria vida tem a ver com a noção do que é certo ou errado regulada pela moralidade, conjunto de regras que a sociedade inventa e que costuma estar interiorizado profundamente nos indivíduos. “Essa moralidade vai sofrendo transformações, inclusive durante a pandemia”, fala o antropólogo Michel Alcoforado. Segundo o especialista, a partir de março, houve um movimento muito grande de conscientização sobre os cuidados necessários para evitar a propagação da Covid-19. “E, depois dela, surgiu uma nova moralidade sobre como se comportar em sociedade dentro da pandemia”. Evitar contato físico, aglomerações e lavar as mãos se tornaram hábitos básicos – e é quase uma ofensa se você não os mantém.

A publicitária Luana*, 42, de São Paulo (SP) mora sozinha e, por isso, ficou meses sem ver outro ser humano além dela mesma na frente do espelho. Até que, há algumas semanas, decidiu retomar atividades fora do isolamento. “Estou indo ao pilates porque fiz uma cirurgia no quadril e faz parte do tratamento, e encontro um ou dois amigos na casa de alguém para comermos e conversarmos”, diz. “Acho essencial para a vida. O ser humano é social por definição”.

Quando os números de casos deram uma baixada, a publicitária chegou, inclusive, a alugar uma casa no interior para passar alguns dias com mais dois amigos. A única regra da viagem era não publicar imagens para evitar julgamentos. “Quando a gente posta uma foto, dá uma sensação de que está tudo normal, sendo que faço as coisas tomando muitos cuidados que outras pessoas não tomam.”

Luana* pondera cada passo que dá e toma os cuidados que ela julga necessários para não correr risco de se contaminar e manter pelo menos parte de sua vida social. Isso não quer dizer, no entanto, que ela está tranquila em flexibilizar a quarentena. “Eu me sinto um pouco culpada porque acho que deveria ficar quarentenada para sempre”, afirma. Por trás dessa fuga de julgamentos está, também, uma certa dose de consciência pesada.

Dentro da nova moralidade da pandemia, você sabe que não deveria encontrar seu amigo, mas a vontade pode falar mais alto. “Viver em sociedade é quase uma guerra entre o que a gente quer fazer e o que podemos fazer dentro da moralidade. É como se houvesse dois centros de gravidade”, afirma o antropólogo Michel Alcoforado. E as redes sociais tornaram essa batalha ainda mais complexa. “Com elas, a gente tem o peso da sociedade olhando para nossos comportamentos. Há esse controle social, essa vigília. E, como nós compartilhamos tudo o que fazemos, a captação da moralidade é maior, o que potencializa as consequências de quando você vai contra esse controle.”

Parceiros do crime

Para o psicanalista Christian Dunker, especialista em relacionamentos 2.0, isso se dá porque, psiquicamente, é como se seus seguidores do Instagram fossem o Grande Irmão, do livro 1984. “As redes sociais criaram esse Super Ego que julga e que castiga. Você pode receber um stalker, uma crítica e um cancelamento”, fala.

Uma das saídas encontradas para burlar o Grande Irmão nas redes sociais foi uma curadoria diferente para a lista de melhores amigos. Ali, a pessoa coloca apenas quem ela sabe que não a julgará e tira quem pode lhe mandar mensagens negativas. Mesmo que o excluído seja alguém próximo. Foi o que Roberta* fez com sua própria melhor amiga, por exemplo. Isso estaria redefinindo as relações de amizade, uma vez que começamos a escolher quem são “nossos parceiros no crime”, que poderão validar a escapulida. “Quando fazemos algo errado e compartilhamos isso com os outros, isso é uma tentativa de amenizar o efeito rebote. Se aquela pessoa que respeito vê o que faço e não fala nada, o erro fica psiquicamente mais barato para mim”, explica Dunker.

Entre os que resolveram flexibilizar o isolamento social, a justificativa recorrente é de que “ninguém está aguentando mais essa quarentena”.

“Há oito meses, houve esse ‘pacto geral’ de ficarmos em casa, mas acho que esse tempo foi se estendendo além dos limites da saúde mental. Quanto tempo aguentamos ficar assim?”, pergunta Roberta, que questiona a falta de orientação para encontros. “Em São Paulo, o recomendado é que as festas de fim de ano tenham até dez pessoas. Aqui no Rio, não. Então, estamos em uma situação de autogestão. É claro que sabemos que não é para aglomerar, mas os parâmetros de aglomeração ficam a critério de cada um. E rola essa noção de ter que resguardar o que se está fazendo nas redes. Porque quem não está realmente nem aí, posta foto em bar, festa, sem máscara, sem nenhum cuidado”.

Luana* inclusive diz que torce o nariz para quem está em balada com os números de infectados crescendo. “Pode ser até uma hipocrisia, mas o que me difere deles, eu acho, são os cuidados que tomo. Não vou a uma festa com um monte de gente se abraçando. Costumo encontrar só duas pessoas que se higienizam dos pés à cabeça antes de entrar, com dois metros de distância uma da outra, em lugares ventilados”, fala a publicitária.

Michel Alcoforado acredita que há diferença entre pessoas irresponsáveis, negacionistas, e quem procura fazer uma “redução de danos”. “Quem pede para não postar sabe que está no erro, então, procura cumplicidade. Porque por mais que você queira ver os seus amigos, há essa força moral que te proíbe”.

*Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas

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