Na estica! As insurgências no vestir de homens negros

Refletindo sobre os tempos atuais, em que o direito à vida para homens negros é constantemente negligenciado, o "bem vestir" se torna manifestação cultural, resistência histórica e memória.


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Camisas, coletes, paletós e calças muito bem cortados, vincos perfeitamente desenhados, sapatos lustrosos e adornos como chapéus, anéis e relógios de bolso não só podem ser considerados símbolos de elegância, como também nos contam sobre trajetórias, histórias de vida e códigos sociais que permeiam as existências de homens negros mundo afora.

Não se trata apenas de copiar um estilo de vestir da elite branca e colonizadora, como alguns costumam apontar, o “vestir-se bem”, que muitas vezes está ligado a ideia de roupas de origem europeia como as camisas, paletós e sapatos à moda ocidental, para corpos negros masculinos acaba por alcançar outros significados: respeitabilidade social, demonstração de poder financeiro e resistência contra narrativas coloniais da história.

Cresci com a minha mãe contando como o meu avô, o pai dela, era um homem muito elegante. Sempre “na estica”, como costumamos dizer na nossa família. Meu avô foi um homem negro nascido nos primeiros anos da década de 1930, em São Paulo, vindo de uma família dos interiores paulistas, antigos trabalhadores do campo e ligados aos resquícios da escravidão cafeeira. Dizem que meu avô era um homem muito preocupado com o vestir e estava sempre bem arrumado, com os sapatos sempre brilhosos, trabalho que ele relegava aos meus tios que não gostavam muito da tarefa. Ele era um “negro chic” como costumavam dizer antigamente.

Meu av\u00f4 vestindo o que ele gostava, smoking, rel\u00f3gio de bolso e cravo na lapela por volta de 1960, provavelmente no Aristocrata Clube, famoso local de sociabilidade negra em S\u00e3o Paulo na \u00e9poca.
Meu avô vestindo o que ele gostava, smoking, relógio de bolso e cravo na lapela por volta de 1960, provavelmente no Aristocrata Clube, famoso local de sociabilidade negra em São Paulo na época.Acervo pessoal

A questão dos sapatos é uma coisa que sempre me chamou atenção, pois me lembro de ter aprendido que, durante boa parte do período de escravidão no Brasil, usar sapatos era algo somente possível para pessoas livres e, em raros casos, para algumas “escravizadas da casa”, uma expressão usada para identificar pessoas que trabalhavam de maneira forçada junto aos senhores, dentro de suas casas, com os afazeres domésticos. Essas pessoas poderiam experimentar o uso de sapatos em ocasiões especiais como missas de domingo e outros passeios. O sapato, então, extrapolava a função de parte da indumentária para se tornar parte e símbolo da liberdade de alguém.

Na fotografia abaixo, de autoria de Christiano Júnior, fotógrafo de origem portuguesa que fez muita clientela na segunda metade do século 19, no Brasil, vemos dois homens negros, provavelmente escravizados (notem a falta de sapatos nos dois), vestidos com paletós e calças encenando o trabalho de barbeiro. Os ofícios como os de barbeiros, alfaiates e ourives, muitas vezes, eram exercidos por homens escravizados e pelos que já tinham conseguido a sua alforria. Trabalhos esses ligados aos cuidados com a beleza e com o vestir, que nos séculos passados já eram importantes para criar laços e muitas vezes redes de cuidado e sociabilidade entre homens negros. Importante mencionar que fotografias como esta são superproblemáticas, mas sobre isso falarei mais adiante em um próximo texto (aguardem)!

Escravizados de ganho, encenando o of\u00edcio de barbeiro em retrato de Christiano Junior, 1864-1865. Rio de Janeiro, RJ / Acervo Museu Hist\u00f3rico. Via portal Brasiliana Fotogr\u00e1fica, IMS.
Escravizados de ganho, encenando o ofício de barbeiro em retrato de Christiano Junior, 1864-1865. Rio de Janeiro, RJ.Acervo Museu Histórico via portal Brasiliana Fotográfica, IMS.

Abaixo, vemos o retrato do poeta, advogado e abolicionista Luiz Gama, importante figura do século 19, responsável por muitas articulações de liberdade para pessoas que ainda eram submetidas ao regime escravista brasileiro. Na imagem, Luiz veste camisa de cor clara composta com paletó de cor escura e lapela elaborada com gravata listrada.

Retrato de Luiz Gama, sem data (provavelmente finais do s\u00e9culo 19). Reprodu\u00e7\u00e3o via Biblioteca Nacional.
Retrato de Luiz Gama, sem data (provavelmente finais do século 19). Reprodução via Biblioteca Nacional

James Van Der Zee, importante fotógrafo nascido em Massachussetts no final do século 19, ficou conhecido por retratar a cena cotidiana de cultura e arte do Harlem no início do século passado, registrando os vestires de homens e mulheres negras que por meio de suas indumentárias, contavam histórias de resistência, moda e ascensão social. Abaixo, vemos os intelectuais e ativistas George O. Marke, Kojo Tovalou-Houénou e o ativista e articulador político jamaicano Marcus Garvey vestidos todos de chapéu, paletó, colete e calça, finalizando o vestir com sapatos elaborados e lustrados.

Da esquerda para direita: George O. Marke, Kojo Tovalou-Hou\u00e9nou (ao centro) e Marcus Garvey fotografados por de James Van Der Zee em 1924. Reprodu\u00e7\u00e3o via Feature Shoot.
Da esquerda para direita: George O. Marke, Kojo Tovalou-Houénou (ao centro) e Marcus Garvey fotografados por de James Van Der Zee em 1924.Foto Reprodução James Van Der Zee via Feature Shoot

Saltando no tempo e no espaço, impossível não mencionar os famosos dândis da República do Congo, conhecidos pelos trabalhos refinados em alfaiataria, nos quais ternos e camisas sociais são vestidos e performados dentro da cultura Le Sape, uma comunidade detentora de saberes que envolvem desde o cuidado com a escolha dos tecidos, ao corte e costura das peças até o vestir final que engloba uma série de movimentos e performances que visam mostrar a elegância, a perfeição das roupas e a pertença a essa cultura. Solange, em “Losing You, foi até Brazzaville, capital do país para gravar acompanhada dos Sapeurs e de suas belas roupas e sapatos.

Le Sapeurs (homens de Brazzaville, Rep\u00fablica do Congo) em foto de Daniele Tamagni, d\u00e9cada de 2000. Reprodu\u00e7\u00e3o via https://www.danieletamagni.com/
Le Sapeurs (homens de Brazzaville, República do Congo), década de 2000.Foto Daniele Tamagni

Aqui no Brasil, Silverino Ojú, estilista baiano residente entre São Paulo e Salvador, atualmente resgata o fazer manual para compor as suas criações, dialogando com os saberes dos antigos alfaiates da Bahia, como é o caso do Seu Léo – Leonardo Ramos (1936-2019), último alfaiate vivo e em atividade na histórica rua da Independência, centro antigo de Salvador, região conhecida e ocupada tradicionalmente por essa categoria de profissionais. Em conversa com Ojú, me lembrei de como Salvador ficou em polvorosa no final do século 18 com a Revolta dos Alfaiates, importante movimento articulado sobretudo por negros que faziam parte dessa classe, que iluminados pelos acontecimentos na França, no Haiti e em Minas Gerais, visavam melhores condições de vida para as camadas mais populares do território brasileiro, vislumbrando possibilidades de liberdade e independência no território baiano.

Retrato de Jo\u00e3o de Deus Nascimento, um dos l\u00edderes da Revolta dos Alfaiates, feito por Dalton Paula em 2018. Acervo MASP.
Retrato de João de Deus Nascimento, um dos líderes da Revolta dos Alfaiates, feito por Dalton Paula em 2018. Acervo MASP.

Na coleção Festa Pret’a, Ojú é inspirado por histórias como a da Revolta dos Alfaiates e experiências como as do Sapeurs, fazendo valer das modelagens de alfaiataria tradicionais para a construção de paletós, coletes e calças, dialogando com tecidos e estampas que mesclam bordados e padronagens dos tecidos industriais africanos, que o estilista consegue junto de comerciantes imigrantes africanos, residentes no Brasil, estabelecendo pontes negras e diaspóricas. A concepção das imagens da coleção contou ainda com a presença de Amanda Diva Green na beleza dos cabelos, e trilha dos Dj Raiz e Leandro Vitrola, de Salvador para o fashion film criado com coreografia de Kelvin Kirchner, bailarino e professor de dança angolano em fotos e vídeos captados por Ojú em contexto pandêmico em meados deste ano.

Caminhando através das histórias do vestir de homens negros, percebe-se como os ternos, paletós, chapéus e elaborados sapatos se mostram para além de peças chics que compõem as indumentárias masculinas nas Américas e Áfricas em diferentes tempos e ocasiões. Refletindo sobre os tempos atuais, em que o direito à vida para homens negros é constantemente negligenciado, o “bem vestir” se torna manifestação cultural, resistência histórica e memória, que enraizadas em corpos e vestes negras se mostram importantes plataformas de insurgências e belezas, que há muito tempo se fazem por meio das roupas e de ser e estar no mundo de tais homens.

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