Por outras histórias da (e na) moda…
Podemos recorrer à História sempre que for necessário para lembrar que, há um bom tempo, tem gente negra fazendo moda no Brasil por meio de sofisticados códigos estéticos.
Nesse interminável mês de junho, escrevo este texto ao som da harpa mágica de Dorothy Ashby, harpista e compositora, tocando “Lonely Melody“, no disco Dorothy Ashby de 1962, remasterizado em 1999.
No começo do mês fomos tomados por uma série de denúncias de racismo no mercado de moda, que desestabilizaram estruturas coloniais impostas há séculos! Explicitadas sobretudo por modelos negras, em um levante virtual, as denúncias expuseram, através de valentes relatos, várias situações inaceitáveis protagonizadas por profissionais brancos do mercado. E não é de hoje que acompanhamos casos racistas e posturas inadmissíveis em um ambiente que historicamente é excludente, preconceituoso e elitista. Aqui na ELLE há uma matéria contando mais dessas histórias que precisam ser lidas e compartilhadas.
Quando soube desses relatos, me lembrei dos escritos de Gayatri C. Spivak em “Pode a subalterna falar?”, texto originalmente publicado em 1985 no periódico Wedge e republicado em português no ano de 2018 pela ed. UFMG. No texto, a autora reflete sobre as impossibilidades de fala e agência de mulheres na sociedade patriarcal na qual vivemos, partindo do universo subalternizado relegado às mulheres na sociedade indiana.
Grada Kilomba em seu livro “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano“, originalmente publicado em 2008, com edição brasileira lançada em 2019 pela ed. Cobogó, recorre aos pensamentos de Spivak para sublinhar que “essa ausência simboliza a posição da subalterna como sujeito oprimido que não pode falar porque as estruturas da opressão não permitem que essas vozes sejam escutadas, tampouco proporciona um espaço para articulação das mesmas”. (Para quem tem o livro da Grada, isso está na página 47, corre lá).
Porém, se fizermos uma adaptação para “as subalternas do Brasil”, mulheres negras, indígenas e amefricanas, como nos diria Lélia Gonzalez, perceberemos que elas estão, cada vez mais, conseguindo projetar as suas vozes de diversas maneiras. No caso das denúncias brasileiras, que se concretizam nas brechas institucionais e se amplificam pelas redes sociais, tais mulheres chamaram a atenção para questões raciais, munidas de uma boa dose de coragem. Ficou evidente que historicamente essas questões foram tratadas de maneira insuficiente para se pensar um mercado de moda nacional mais plural e decolonial.
Voltando no tempo, mas especificamente ao século XIX, já conseguimos encontrar histórias e registros de mulheres e homens negros que estiveram ligados às dimensões do vestir. Seja por meio de trabalhos exercidos nos comércios, pelo envolvimento com os ofícios da costura ou atuando como modelos para fotógrafos brancos, estrangeiros e brasileiros, percebe-se uma tentativa de construção de uma narrativa fotográfica que orquestra a ideia de uma terra escravista, porém em contínuo progresso. São nos centros urbanos do império que essas figuras insurgem pelas frestas da colonialidade, exercendo e criando através das roupas costuradas, lavadas e passadas, uma moda brasileira. Uma moda brasileira criada a partir de oralidades e jeitos de fazer negros.
Na imagem que ilustra o começo deste texto, datada de 1862, vemos uma mulher negra recostada a uma caixa de vidro, com os dizeres “manufacture de Paris” no tampão. Provavelmente, trata-se de uma alusão à procedência do conteúdo da caixa: uma porção de aviamentos e outros objetos relacionados ao universo da beleza e da costura. A cabeça da retratada é adornada por um volumoso e triangular turbante branco. Seu colo é coberto por um largo tecido feito em padronagens compostas por linhas que se alternam entre claras e escuras. Conhecido como pano da costa, essa peça, que era muito usada por mulheres negras da época, ainda permanece como parte da indumentária de alguns terreiros pelo país. Ainda não sabemos quem é a mulher da fotografia, porém mulheres como ela eram chamadas de “negras de ganho” ou “ganhadeiras” durante o século XIX, trabalhadoras urbanas já forras ou em processo de conquista de suas liberdades.
Gilberto Freyre, criticado autor que foi um dos maiores responsáveis por estabelecer a falaciosa ideia de “democracia racial” no país, em seu livro “Escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX“, de 1979 (ed. Nacional), faz um levantamento sobre a presença negra escravizada em anúncios de compra, venda e fuga de jornais do século XIX. É sempre bom lembrar que, ao recorrer a Freyre, é necessário fazer uma leitura crítica de sua obra, que muito foi construída a partir de equívocos e preconceitos, como era de costume a homens brancos e letrados que dominavam a produção de conhecimento acadêmico da época. Porém é possível aproveitar os estudos dele sobre raça e presença negra no Brasil, garimpando informações valiosas sobre um passado nem tão distante assim.
Escolhi dois anúncios que podem ser encontrados na edição de 1979 e que evidenciam a presença negra no mercado de moda brasileiro colonial:
“Vende-se uma escrava muito moça, bonita figura, sabe cosinhar e engommar e é uma perfeita costureira, propria para qualquer modista: na botica de Joaquim Ignacio Ribeiro Junior, na praça da Boa-Vista.”
Em outro anúncio lê-se:
“Precisa-se comprar uma mulata moça que seja perfeita costureira de agulha e tesoura, paga-se bem agradando as suas qualidades: na rua do Trapiche, Recife, n.40, se dirá quem pretende.”
Com grafias e termos da época, os anúncios de venda e compra indicam mulheres negras jovens (talvez até menores de idade), de “bonita figura” e “perfeitas costureiras próprias para qualquer modista”. Em boa parte, eram as mãos negras que costuravam as roupas no Brasil colonial. Vale ressaltar aqui que o termo “mulata” é extremamente pejorativo e de cunho racista, já há anos em desuso. Sobre esses anúncios, fica evidenciada a dimensão da presença negra no cotidiano do mercado de moda.
Já no final do século XX, Angela Davis em seu livro Mulheres, raça e classe, originalmente lançado em 1981 nos Estados Unidos, e que recebeu edição brasileira (ed. Boitempo) em 2016, já nos conta sobre a relação entre costura e escravidão. Destaca-se o relato da abolicionista branca Sarah Grimké, que conta sobre o caso de uma escravizada de uma fazenda na Carolina do Sul que era considerada uma “negra rebelde”, tendo que usar um pesado colar de ferro em tempo integral como punição para as suas tentativas de fuga. Tal mulher, da qual também ainda não sabemos o nome, era costureira da família escravista e estava inserida nas dinâmicas familiares costurando, além dos tecidos, seus planos de fuga.
O fato é que em sociedades construídas e estabelecidas pelos moldes da escravidão era comum que pessoas escravizadas possuíssem como atribuições os cuidados com a roupa, seja lavando, engomando e/ou costurando. E isso me faz lembrar do muito questionado, e recentemente criticado filme estadunidense …E o Vento Levou, um clássico de 1939. Na história, “Mammy”, interpretada por Hattie McDaniel — a primeira mulher negra a ganhar um Oscar na história como atriz coadjuvante —, é responsável pelo vestir de Scarlett O’Hara, interpretada por Vivien Leigh, a lendária e bem vestida mocinha de temperamento forte. Indico o discurso de Hattie ao receber a estatueta (disponível na internet).
No filme, Mammy aparece como a sempre zelosa “criada” que lembra a protagonista de levar o seu xale em um dia de passeio, escolhe os vestidos superelaborados da caprichosa Scarlett e aperta os espartilhos da mocinha em uma das cenas mais clássicas do filme. Deslocando o olhar para as possibilidades de resistência, estaria Mammy se aproveitando das responsabilidades do vestir para dar umas belas apertadas no espartilho da mocinha branca?
Mammy apertando o espartilho de Scarlett em cena de “…E o Vento Levou”, 1939.
Silver Screen Collection/Getty Images
O nome “Mammy” é bem sugestivo, considerando a introdução das mulheres negras nas dinâmicas familiares e domésticas das famílias brancas durante a escravidão, que relegava a elas, muitas vezes, um papel maternal em justaposição à opressão. Isso gerou a formação de um estereótipo cultural da “mãe negra”, algo que podemos relacionar à figura das amas de leite negras no período colonial brasileiro. Mammy tem a sua participação no filme construída como uma servidão voluntária e amável.
De volta ao século XXI, e munida de estudos e leituras decoloniais, eu ouso a dizer que tanto Mammy (nos Estados Unidos) quanto a moça negra fotografada por Rafael Ordanez, e tantas outras mulheres e homens negros descritos nos anúncios de jornais do século XIX, não eram pessoas escravizadas que apenas trabalhavam com costura ou com as arrumações das roupas. Eram pessoas de suma importância para se pensar os vestires daquela época, já fazendo parte do mercado de moda brasileiro com suas forças criativas, há pelos menos 150 anos.
Daqui em diante, acompanharemos atentas as narrativas negras que insurgem na moda, alertas também para as iniciativas antirracistas que o mercado diz que está disposto a tomar. Podemos recorrer à História sempre que for necessário para lembrar que, há um bom tempo, tem gente negra fazendo moda no Brasil por meio de sofisticados códigos estéticos que se desenvolveram e continuam se formando nos fazeres das diásporas. Estamos alinhavando outras histórias da moda neste país.
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