Fome de grito
O raríssimo caso de uma racista que entrou berrando e saiu calada
Um grito é sempre outra coisa. Uma desarticulação, uma palavra que falta ou milhares que se seguem, se trombam, despencam e sobram sem dar conta do que se desejaria ter dito. Um grito é uma palavra coisada ou uma coisa assim desarticulada de uma palavra, uma fome de criar não só algo que coincida com um espanto ou uma dor mas que traga junto uma chave, um passo qualquer, uma possibilidade que seja transformação. Um grito é o silêncio do quadro de Munch e seu som imaginado, mesmo que som nenhum. Cada silêncio soa diferente. Cada grito conversa com algo específico, para além da impossibilidade de dizer.
Uma atriz loira e seu marido branco, quatro olhos azuis e seus filhos, dois deles crianças negras e retintas, duas crianças com olhos cheios de abertura para as grandezas do mundo. Mas o mundo trata crianças negras como “menores de idade”, diz a fala de uma pensadora negra em stories que vejo contra a ordem colonial do aplicativo. Outro diz que restringem o mundo para elas, roubam sonhos na largada. Um pede cuidado porque se deposita sobre elas, muito cedo, muita maldade. A realidade se impõe em casos assim para que possamos rejeitá-la ardentemente, não para naturalizá-la, me parece ser o que eles estão dizendo, é o que eu penso como encaminhamento. Ninguém diz que seja tarefa doce como doce é o estereótipo de certa infância. Sentimos, se acordamos desacovardados, o amargor, o gosto podre do que se trata.
Os filhos do casal de atores famosos foram atacados por uma mulher loira da qual nas imagens não se vê os olhos. Os ataques são racistas, são cruéis e territoriais, são desprezíveis. Os ataques têm cor: são brancos. Branco se vive com pele e na pele, mas branco é um jeito de organizar o mundo. Um jeito burro, terrível, indefensável desde sempre.
A mãe das crianças reage com seu amor, como tantas outras. Protege as crianças partindo para cima da mulher adulta que as agride, aproxima seu rosto do dela e diz as palavras que pode. Grita, porque não são aquelas palavras, elas não bastam, nem mesmo os xingamentos, o grito diz que seria preciso mais pra dar conta da covardia que se fez presente, da sordidez de tudo. A agressora se cala diante de seus olhos azuis, a agressora não quer saber que pessoas loiras de olhos azuis, pessoas loiras, ricas e famosas de olhos azuis, amam pessoas negras de pele retinta, que pessoas negras de pele retinta podem ser sim muito amadas por brancos como ela. A imaginação de todo racista é paupérrima. Ela talvez esperasse pais negros ou menos brancos, ela dá o coice mas, como se diz, cai do cavalo. Ela escuta calada, é presa calada. Tudo nela fede a covardia, o álcool é só um perfume.
Mas primeiro ela grita, covardíssima com ares de coragem, agride as crianças. Em seu grito também há muito mais do que ela ouve depois vindo de fora, do ser chamada “racista”. Seu grito é grito para si mesma, essa mulher branca cruel, que a cada passo e palavra horrível decai em sua humanidade, que a cada maldade não sente mais um coração que definha, uma vida que se desconhece como tal, engolida, cuspida e engolida de novo, cada vez mais desprovida de qualquer alegria. Como ela caminham milhões, inclusive em pior estado. Ela segue um modelo, e isso envolve uma responsabilidade.
Grito com grito, o que ela recebe de volta a deixa sem reação. A covardia, o pacto covarde que ela assina diariamente em cada despertar triste e decadente, de repente deixa de garantir seu lugar no mundo. De repente alguém lhe mostra o rumo da cadeia, mesmo que, sem justiça, seja por pouco tempo.
Mães de olhos pretos e marrons, mães de pele preta, retintas ou não, defendem seus filhos todos os dias contra o pacto racista. Poucas vezes com o mesmo efeito sobre os agressores. Quando uma mãe negra grita não só faltam palavras, e que imensidão de absurdos salta desse faltar palavras, como também se desarticula o que seria um ouvido. Os agressores reagem, os apoiadores somem, a ressonância enfraquece. Cobra-se autocontrole, parcimônia. Cobra-se submissão mesmo nas piores horas.
Não deveria gritar Mirtes Renata de Souza ao ver que Sari Cortes Real, condenada por homicídio, segue fora da cadeia? Não poderia ela gritar racista imunda ou criminosa racista? Miguel, filho de Mirtes, está morto por um descaso filmado e comprovado, mas ela tem de evitar palavras duras. Por quê? Porque há racistas ouvindo. Um dos disfarces mais torpes do racismo são os ditos bons modos. Não a educação e a gentileza, mas uma afetação de suavidade, de poses de boneca, de frases prontas.
Às brancas foi entregue a certa altura pelos brancos esse “direito” à finesse dos modos. Presente de grego, cavalo de tróia, nada mais que uma faca de cabo precioso, mas ainda uma faca enfiada na garganta. Dizia-se assim que elas não precisariam gritar, que tudo o que precisassem seria providenciado conforme sua posição no jogo. Mentira, evidentemente, porque essa avaliação é de saída feita segundo critérios de servidão de luxo, um dos nomes do lugar de branca na nossa sociedade.
E esse grito recusado, aprendemos a soltá-lo contra quem o racismo permitia. Contra os subalternizados, especialmente mulheres. É essa uma programação antiga que recuso porque a recusa é a única opção digna. Não há outra. Quem não se recusa se junta, e quem convenientemente se afasta igualmente se afunda em alma sebosa. É preciso ao menos um pingo disso que forma a força de um caráter, um pingo disso que afinal faz brilhar uma existência.
O grito de que nos faltam palavras para dizer como o racismo gera e alimenta a miséria de todo ser humano que respira, esse grito precisa se espalhar. Criar transformação envolve inventar modos de dizer que não sejam pás de cal.
As mães como as de Manguinhos, as mães que assumem o nome do lugar onde seus filhos foram mortos ou sumiram, as mães que fazem geografia desse sofrimento demarcando memória contra as mentiras da história oficial, essas mães precisam de nossas vozes brancas. Silenciar os sensacionalismos e aumentar o volume na vida de todo dia.
Todas as pessoas que perderam ou viram e veem sofrer seus queridos por conta dessa peste que chamamos de racismo, todas essas pessoas merecem que gente branca tire a faca da garganta e grite também. Que defendam com elas, que resistam junto. Que lutem não só pelo direito geral ao grito mas pela tranquilidade de silêncios que sejam de alívio, de descanso, de pensamento que voa, não só de engasgo, de violência, de sentenças de morte.
Contra o lencinho branco e o pensamento que disfarça apartheid como arquitetura racional, contra o pensamento sem o fígado como querem uns e outros, convoquemos gritos que mobilizem todos os órgãos e corpos em cada corpo, que chamem o impossível de todos os discursos da solidariedade e façam deles força e potência.
Que seja fome de grito no que a fome pode articular de frutificação entre necessidade e desejo. Que venha à luz do sonho uma outra mordida capaz de um novo gosto.
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