Tudo sobre os 25 anos da Casa de Criadores

A 50ª edição do evento acontece nesta semana, na Sé, em São Paulo. Estilistas e jornalistas relembram sua história, que comemora um quarto de século em 2022.


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Karlla Girotto / Foto: Divulgação



Dos dias 06 a 10 de julho, a Casa de Criadores reúne 36 marcas para apresentar suas novas coleções. Em um espaço na Sé, no centro de São Paulo, este será o retorno oficial do evento às passarelas físicas, após dois anos em que foram experimentados diferentes formatos digitais e híbridos. Entre os estreantes desta 50ª edição estão as marcas Alexei, Pedra, Sillas Filgueira e Woolmay Mayden.

Falar de Casa de Criadores é falar de coletividade, inclusão e liberdade. E sempre foi assim. O evento foi criado em 1997 por André Hidalgo com o objetivo de ser um celeiro de novos talentos da moda brasileira, com faro aguçado para os mais novos movimentos culturais e da indústria. Marcas e estilistas como André Lima, As Gêmeas, Cavalera, Fábia Bercsek, Isaac Silva, Juliana Jabour, Karla Girotto, Marcelo Sommer, Neriage, Rober Dognani, Ronaldo Fraga, Samuel Cirnansck, entre outros, começaram suas carreiras na passarela da CdC. A lista é extensa e significativa.

Para o aniversário de 25 anos, no entanto, André não quer olhar para trás. “A moda como a gente conhecia acabou. Sempre fomos um pouco na contramão do calendário de lançamentos. Estamos inseridos nele, mas sempre tentamos subverter e mudar as coisas em que a gente acredita que precisam mudar. Ao fazer 25 anos, olho em retrospecto e vejo que esse papel foi cumprido e continua sendo cumprido”, diz. O futuro da moda, para ele, é plural, inclusivo, criativo – tudo o que o evento sempre foi, sem esforço ou demagogia. E a Casa de Criadores bate nessa tecla antes mesmo dessas pautas terem o nível de conhecimento e popularidade de hoje.

“Vi a Casa de Criadores nascer, a ideia sempre foi dar vazão a um outro tipo de criatividade, a vozes dissonantes. Sempre teve uma pegada underground, querendo ser um contraponto à SPFW, que representava o mainstream”, explica a jornalista, gerente de comunicação e design do MAM-Rio e colunista da ELLE Erika Palomino. “Como jornalista, era um respiro, buscar estilistas que criavam de modo cru, ver uma ideia de desfile menos preocupado com o comercial. Era bem experimental, mas sempre foi desafiador. Questões identitárias que demoraram a aparecer em outros lugares da moda sempre foram default no evento, de modo orgânico e espontâneo.”

A colega de profissão, Lilian Pacce engrossa o coro: “O evento é criativo, mais livre e sempre aberto à diversidade e à representatividade. Isso é muito importante para a moda. Hoje, o mercado finalmente entendeu que é importante ter várias expressões. E a Casa sempre foi esse palco, esse espaço.”

Ar fresco

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Isaac Silva na 41ª Casa de CriadoresFoto: Divulgação

Um dos nomes mais fortes da nova geração de estilistas brasileiros, Isaac Silva entrou no evento em 2015, trazendo mais modelos negros e corpos diveros às passarelas, acendendo a chama da pauta afroindígena e falando sobre nossa brasilidade como poucos. Hoje desfilando na São Paulo Fashion Week, o designer conta que o evento sempre vai ser sua casa-mãe e que acompanha todas as edições. “Foi lá que contei minha história, que agora conto na SPFW, mas a Casa é para onde eu sempre volto. É lá que sinto o frescor jovem das novas marcas”, comenta.

Rafaella Caniello, da Neriage, seguiu o mesmo caminho. Especializada em plissados e técnicas de superfície luxuosas, ela foi convidada por Hidalgo para integrar o line-up oficial em 2017 por conta de seu trabalho de conclusão de curso na faculdade Santa Marcelina. “Se eu não tivesse passado pela Casa de Criadores, meu trabalho seria completamente diferente”, diz. “O que todos ali têm em comum é a vontade de falar. No caso da Neriage, a gente tem um discurso filosófico e poético e acabava dividindo a passarela com marcas que tinham discursos mais políticos. E tudo bem.”

É interessante perceber, ao conversar com os estilistas para esta matéria, que todos nutrem um forte sentimento pelo evento e pelo seu criador. Desde nomes pioneiros até quem ainda dá seus primeiros passos, o nome de André Hidalgo é citado sempre com carinho e respeito. E isso vem muito do sentimento de coletividade que paira em torno da Casa de Criadores. “Não sei como são os outros eventos, mas aqui existe essa troca. Toda vez que alguém precisa de indicação, a gente manda no grupo. Quando vai conhecer o local do desfile, todo mundo combina de ir junto. Isso é um grande diferencial e destoa de como o sistema de moda ainda é, infelizmente”, completa Jal Vieira, que integra o line-up desde 2019.

Velha guarda, novas vozes

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Rober Dognani na 46ª Casa de Criadores.Foto: Divulgação

A mistura de estilos, vozes, vivências, técnicas e performances é o que faz da Casa de Criadores a potência que é – e o fato de ela manter sua independência também. “Ser independente é nosso grande lance, o grande ativo, sem dúvida. É uma coisa que percebi há muito tempo e tomo muito cuidado para que se mantenha. Ao mesmo tempo, isso faz com que a gente não tenha uma compreensão e um investimento pleno do mercado”, diz Hidalgo. “Sabemos como o mundo corporativo funciona e para quem ele funciona. O fato de o André colocar limites muito bem definidos no que um patrocinador pode ou não pode ali, libera toda essa potência artística para agir. Só podemos falar de liberdade de criação quando não estamos sendo domesticados”, fala Karlla Girotto, estilista que atuou na Casa de Criadores de 2001 a 2004.

Girotto sempre viu a moda de forma diferente daquela que estamos acostumados. No começo dos anos 2000, começou a apresentar suas roupas delicadas e detalhadas nas passarelas da CdC, onde sentia que podia aprofundar sua pesquisa de linguagem como em nenhum outro lugar. Participou de nove edições e, hoje, faz parte não só do conselho do Instituto Casa de Criadores – braço que visa descentralizar e decolonizar o ensino de moda no Brasil – como também do rol de estilistas que é sempre lembrado quando falamos do evento. “Sei que posso estar lá e contribuir de forma transdisciplinar. Esse campo [da moda] me deu tanto, que era hora de estimular e afetivamente mexer nesse território”, completa.

A Casa nasceu em uma época de grande efervescência cultural em São Paulo. “Essa geração toda que começou ali, foi a última geração underground. Havia ali uma cultura que passava pela noite, abençoada pela cultura clubber, que às vezes tinha um viés esportivo, às vezes sadomasoquista, mas sempre com humor e montação. E a Casa de Criadores era o lugar onde essa moda que falava a linguagem dos jovens acontecia”, relembra André Lima. Com os alicerces da noite e da costura precisa, ele estreou com sua marca própria na Casa de Criadores em 1999, onde apresentou quatro coleções – ao mesmo tempo, criava para a Cavalera, que também integrou o line-up da CdC durante seis edições. Em seu primeiro desfile solo, o estilista contou um pouco de sua história através de peças feitas em moulage a partir de retalhos de tecidos que guardava em um baú na sua casa – algo não muito diferente do que faz hoje. “O que é a moda sem experimentação, né? O que é a moda sem o risco, sem a vontade de arriscar. A moda, sem isso, é chata, ela é negócio. A gente estava ali para provocar”, completa ele.

O espírito provocador é o grande impulsionador dos talentos que saíram da Casa de Criadores, sem nunca perder de vista os ensinamentos trazidos dali. É o caso de Weider Silveiro, que estreou em 2006 no line-up oficial após três desfiles no Dragão Fashion, em Fortaleza. Depois de 15 anos de evento, hoje ele apresenta sua moda na SPFW. “A Casa de Criadores é muito importante para mim, apesar de eu estar em outro evento, exercitando até outro olhar. Agora que estou mais preocupado com o mercado, de certa forma, não quero deixar aquela liberdade de criação morrer”, explica.

A comparação entre a Casa de Criadores e a SPFW é inevitável, já que são as duas maiores semanas de moda da cidade de São Paulo. Nos últimos anos, vários nomes que se fortaleceram no evento independente migraram para o line-up da São Paulo Fashion Week, em um movimento brusco, mas esperado. “Para mim, a grande vingança foi a CdC ter virado o jogo, ter se tornado, tantos anos depois, mais interessante para o mercado do que a SPFW. A comparação é inevitável, apesar de sempre injusta, por todos os motivos. Uma coisa que é muito madura e responsável é a ideia de formar estilistas e público, não apenas jogar as pessoas na passarela, atirando-as aos leões. Orientar, acompanhar, e agora educar, por meio do Instituto, é um modo contemporâneo e inclusivo de verdade, preocupado com o mercado”, diz Erika Palomino. “A gente entende que foi, sim, e continua sendo, responsável por grandes transformações na moda. Isso enche a gente de orgulho porque é bom ser referência, né?”, se diverte Hidalgo. “É muito legal servir de norte, de bússola, de catalisador.”

No futuro

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Nalimo na 49ª Casa de Criadores.Foto: Divulgação

Mesmo com tanta história, é o futuro que interessa o criador da casa. Além do Instituto, a entrada de nomes como Vicenta Perrotta ao line-up trouxe novo gás e novas vivências à equação de sucesso. Pioneira no processo que chama de transmutação têxtil, uma espécie de upcycling, a estilista também trouxe à tona uma moda colaborativa como há muito tempo não se via por lá. “Trouxe o questionamento da necessidade do corpo trans estar presente. Trouxe o corpo não padrão. Óbvio que outros artistas já trouxeram esse diálogo, mas acho que eu estar ali intensificou ainda mais esse movimento. Quando compartilhei processos, duas plataformas se cruzaram e aconteceu tudo isso. Esse foi o ponto de partida que deu outra cara pra moda no Brasil”, diz.

A veia da coletividade, do companheirismo e da ausência de competição também fica evidente na coleção de Rober Dognani. Um dos nomes com mais tempo de evento, se apresentando há 19 anos, ele fará uma homenagem a 25 estilistas que fizeram parte da história da Casa de Criadores. “Vai ser a minha visão, o meu trabalho, os meus códigos em cima de coleções que eu adoro dos últimos 25 anos”, explica. O desfile, que fecha o evento no domingo (10.07), promete relembrar momentos e designers sob o seu olhar dramático.

Nesta edição, quem também estreia nas passarelas físicas após uma apresentação digital é a Nalimo, marca de Day Molina que busca decolonizar a moda através de roupas minimalistas com inspiração na sua ancestralidade indígena. “Quando André me convidou, topei imediatamente. Me senti muito conectada por ser uma semana verdadeiramente diversa e por me sentir livre para criar e questionar todas as coisas que considero importantes”, comenta a estilista, que na sua estreia produziu o maior casting originário da história do evento. “Foi uma forma de dizer que nossos corpos e talentos existem e o que nos falta são oportunidades.”

Outro nome que faz seu debut na Casa esta semana é a Sillas Filgueiras, etiqueta da baiana Sillas Maria, que vai apresentar uma coleção inspirada em sua mãe e nas memórias de sua infância, sempre embaladas por músicas de Roberto Carlos. A estilista já trabalha com moda há vinte anos. “O convite rolou através do André Hidalgo, através da indicação de um amigo meu também de Salvador, o Gefferson Villa Nova. Ele viu meu trabalho e falou que eu tinha que desfilar em São Paulo. Para mim, participar é de uma importância muito gigante, indica representatividade. Desfilar, pra mim, é ser resistência, por ser uma mulher trans, por ter sido ex faxineira, por ser preta. Ser mulher trans não me define, mas, no momento que estou vivendo na minha carreira, é importante ter um reconhecimento nacional, como está acontecendo agora”, conta. Sillas desfila no terceiro dia de CdC.

O evento promete ser uma grande celebração do que vem por aí nos próximos anos. “Vamos usar o mote do nosso curso do Instituto, que se chama ‘qual moda para qual mundo?’. Ele é a razão da nossa existência hoje. A moda mudou tanto que hoje, olhando para trás, tudo me parece antigo. Não antigo no sentido de velho, mas que não faz mais sentido. Todas as transformações pelas quais a moda vem passando, acho que vamos demorar um tempo para entender, assimilar e decodificar. Mas prometemos sempre tentar”, finaliza André Hidalgo.

Confira o line-up completo abaixo.

06/07 – 20h

F. Kawallys (virtual)

Nalimo

Studio Ellias Kaleb

Shitsurei

Guma Joana

Yebo

Dario Mittmann

07/07 – 20h

Desafio Sou de Algodão

Jorge Feitosa

Mônica Anjos

Estúdio Traça

NotEqual

08/07 – 20h

Projeto Lab

Vittor Sinistra (virtual)

Alexei

Da Silva Santos Neves

Alexandre dos Anjos

Sillas Filgueira

Reptilia

Pedra

Felipe Fanaia

09/07 – 18h

Ken-gá

Vivão

Vou Assim

Rafael Caetano

Berimbau

Filipe Freire

Leandro Castro

Vicenta Perrotta

10/07 – 18h

David Lee

Priscilla Silva

Gefferson Vila Nova

Felipe Caprestano

PIM (Periferia Inventando Moda)

Woolmay Mayden

Rober Dognani

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