Antes da estreia de Matthieu Blazy, relembramos as últimas quatro décadas da Chanel
Às vésperas do debut de Matthieu Blazy na Chanel, relembramos o que marcou a era comandada por Karl Lagerfeld e por Virginie Viard.
No dia 6 de outubro, o estilista francês Matthieu Blazy apresenta sua primeira coleção como diretor de criação da Chanel. Será a última estreia de uma temporada de moda repleta delas – ao todo, foram 15. Esta, porém, é especial. Não só porque a maison é a segunda maior grife do mundo em número de vendas, ou por ser praticamente uma instituição cultural da França. É pelo ineditismo do fato e pela possibilidade de transformação.
Desde sua fundação, em 1910, a marca teve apenas duas caras, ou dois estilos: o da sua fundadora, Gabrielle Chanel, e o de Karl Lagerfeld. A primeira comandou o negócio por 61 anos até sua morte, em 1971. O segundo assumiu a chefia criativa em 1983 e lá ficou até fevereiro de 2019 (37 anos no total), data de seu falecimento. Ele foi sucedido por Virginie Viard, que no fundo apenas deu continuidade à visão de seu mentor e amigo.
Ou seja, o début de Matthieu revelará (assim esperamos) uma Chanel jamais vista antes. Desafio não muito diferente do enfrentado por Lagerfeld.
Leia mais: As 10 principais coleções de Jonathan Anderson na Loewe
A era Lagerfeld na Chanel

Karl Lagerfeld em 2014. Foto: Getty Images
O alemão assumiu a direção criativa da Chanel em 1983, aos 49 anos. Na época, a marca seguia ativa, mas já não desfrutava do mesmo prestígio e relevância. Foi ele, então, o único a desenhar para a grife fora Coco em si, quem reergueu a linha de moda da empresa e a tornou um sucesso comercial. “Todo mundo me disse: ‘não mexa com a etiqueta, ela está morta e nunca vai voltar’. Mas encarei isso como um desafio”, declarou o estilista diversas vezes ao longo de sua carreira.
Ao ser contratado, recebeu total liberdade para fazer o que quisesse na Chanel, como lembrou o CEO Alain Wertheimer no comunicado do falecimento do designer: “Graças a sua criatividade, generosidade e intuição excepcional, Karl Lagerfeld estava a frente de seu tempo, o que contribuiu para o sucesso da Chanel ao redor do mundo. Hoje, não perdemos apenas um amigo, mas também uma mente extraordinária a quem dei carta branca para reinventar nossa identidade no início dos anos 1980.”
Nascido em Hamburgo em 1933, Karl Lagerfeld passou pelas marcas Jean Patou, Chloé e Fendi (onde também trabalhou até sua morte), mas foi na Chanel que seu trabalho se mostrou mais prolífico – e pop. Em seu primeiro desfile, o de inverno 1983, deixou clara as suas intenções: respeitar o legado de Gabrielle Chanel, mas atualizá-lo. “Quando assumi, ninguém falava sobre a etiqueta. Eu reinventei as referências e isso é uma coisa boa, não?”, declarou em entrevista à New York Magazine, em 2018. Ele reinterpretou o clássico tailleur de tweed, encurtando seu comprimento e ajustando sua silhueta.

Linda Evangelista no desfile de inverno 1985 da Chanel. Foto: Getty Images
Leia mais: 14 desfiles da Dior para conhecer a história da maison
Em 1983, Karl reimaginou a primeira bolsa criada por Gabrielle, a 2.55, com corrente trançada com couro e o fecho do clássico logo CC. No modelo concebido pela fundadora, a alça era feita apenas com elos metálicos e tinha a palavra mademoiselle no detalhe da fechadura. Ao longo da primeira década em que esteve à frente da Chanel, ele também modernizou os cordões de pérolas que fizeram história no pescoço da couturier. No inverno 1985, a modelo Linda Evangelista desfilou com um maiô preto coberta por colares que misturavam pedras e correntes, choker de camélia, brincos redondos e cinto metálico. O foco nos acessórios ajudou a alavancar as vendas e a rejuvenescer a imagem da casa.
Foi no começo dos anos 1990 que Karl Lagerfeld adotou o Grand Palais, em Paris, como palco para suas apresentações. Ele foi um dos pioneiros na espetacularização dos desfiles, transformando cada apresentação em um acontecimento midiático. Era mestre em costurar roupa e contexto ao tal espírito do tempo.

O inverno 1991 da Chanel, inspirado no universo do hip-hop. Foto: Getty Images
No inverno 1991, ele criou uma coleção inspirada no universo do hip-hop em um momento em que as grandes labels de luxo não conversavam diretamente com as ruas. Nela, colocou bonés matelassados (um clássico Chanel), correntes pesadas e pingentes dourados em contraponto aos terninhos de tweed (outro emblema de Gabrielle). Na era das supermodelos, o diretor criativo uniu Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Linda Evangelista e Christy Turlington na alta-costura do verão 1992. Não dá para esquecer o vestido preto combinado às correntes douradas usado por Christy. Já no verão 1996 de prêt-à-porter, apresentou microbiquínis redondos que moram no imaginário fashion. A combinação com body chain imitando a alça da bolsa 2.55 e a bermuda de surfe é referenciada até hoje.

Os microbiquínis do verão 1996 da Chanel. Foto: Getty Images
Leia mais: relembramos as várias fases da Mugler
Karl acreditava que precisava criar, além de roupas, imagens memoráveis – e isso ficou ainda mais evidente a partir dos anos 2000. No verão 2008, o estilista montou um carrossel gigante com bolsas Chanel fazendo as vezes dos cavalos de brinquedo. Dois anos depois (para a coleção de verão 2010), convidou Lily Allen para cantar ao vivo em uma passarela que lembrava uma fazenda.
Em meio à ascensão das blogueiras de moda e ao aumento de cliques de streetstyle na porta dos desfiles, o estilista montou um verdadeiro supermercado no Grand Palais com mais de 500 produtos fictícios nas prateleiras. Era a temporada de inverno 2014, e Karl quis comentar a comercialização de estilo, como algo que se compra, não que se tem. Na estação seguinte, a de verão 2015, quando o mundo via a quarta onda do feminismo se fortalecer, ele encenou um protesto. A apresentação foi polêmica, recebeu críticas, mas não dá para dizer que não refletia o contexto sociopolítico de então.

O supermercado de estilos do inverno 2014 da Chanel. Foto: Getty Images
Com o passar do tempo, os cenários ficavam cada vez mais absurdos – eles eram tão aguardados quanto as roupas. Karl desenhava cerca de 20 coleções por ano (entre a Chanel, Fendi e sua marca própria), mas sentia que em cada uma delas precisava inventar um mundo novo, inédito. Para ele, a moda precisava ser também memória visual. Entre as cenografias mais memoráveis da Chanel estão o imenso iceberg do inverno 2010, diante do qual as modelos desfilaram; o terminal de aeroporto completo, com direito a balcão de check-in, no verão 2016; o foguete que literalmente decolou, no inverno 2017; e a praia de areia e ondas erguida dentro do Grand Palais, no verão 2019.
Na alta-costura, a lógica era a mesma. Na temporada de inverno 2000, as modelos andavam em cima da água na Piscine Keller, em Paris, com looks de cintura baixa e cores fluorescentes. No verão 2012, a passarela era o corredor de um avião, com os espectadores sentados nas poltronas. A coleção era repleta de terninhos em tons pastel inspirados na silhueta dos anos 1960. Ao final, Karl saía da cabine do piloto para receber os aplausos. Em 2013, às vésperas da promulgação da lei que legalizaria o casamento entre pessoas do mesmo sexo na França, Karl Lagerfeld encerrou o desfile de alta-costura de verão com duas modelos se beijando.

As noivas da alta-costura de verão 2013. Foto: Getty Images
Leia mais: Os 10 momentos mais marcantes da Versace
Em 2015, foi a vez do Cassino Chanel, palco para roupas estruturadas e decoradas com plumas. Quando a indústria começou a falar com mais intenção sobre sustentabilidade, o estilista levantou uma casa ecológica para mostrar seu verão 2016. Para o inverno 2017, uma réplica em tamanho real da Torre Eiffel foi construída no Grand Palais – só metade dela coube dentro do espaço. Os vestidos eram inspirados no shape de um dos maiores cartões postais de Paris. A lista de marcos da couture vai longe.
Em 2002, em um dos movimentos mais interessantes de sua carreira, Karl Lagerfeld criou o Métiers d’Art, sua carta de amor aos ateliês que fazem a Chanel ser a Chanel. A coleção é desfilada uma vez ao ano. “Com o tempo, a maison adquiriu negócios especializados em trabalhos artesanais que fornecem serviços às marcas. Por isso, decidi homenageá-los em uma coleção limitada”, explicou o alemão em entrevista ao The Cut, em 2018. Talvez você não conheça seus nomes, mas aqui vão alguns exemplos: o Lesage cuida dos bordados, o Lemarié das plumas, o Desrues dos botões e por aí vai. São 38, no total.

A passarela do cruise 2017, em Havana, Cuba. Foto: Getty Images
O Métiers d’Art serve ainda como uma oportunidade para se apresentar fora da capital francesa. Já passou por Xangai (2010), Dallas (2014) e Hamburgo (2018), cidade natal de Karl Lagerfeld, entre outras. A temporada de cruise – criada por Gabrielle Chanel em 1919 com o propósito de vestir as mulheres que viajavam à Biarritz – segue a mesma lógica itinerante: desfilou em Los Angeles (2008), Miami (2009), Veneza (2010), Singapura (2014), Seul (2016) e Havana (2017), para citar apenas algumas das edições mais marcantes.
No dia 5 de março de 2019, durante a temporada de prêt-à-porter de inverno 2019, a Chanel se despediu do estilista. Karl morreu duas semanas antes, no dia 19 de fevereiro, e essa foi a última coleção desenhada por ele. Com um cenário montado para imitar os alpes suíços, com direito a um chalé no meio da passarela, houveram vários tributos para o diretor criativo que transformou a história da marca e da moda ao longo de quase quatro décadas.
Os anos de Virginie Viard

Virginie Viard recebe os aplausos após o desfile de inverno 2024 da Chanel. Foto: Getty Images
Virginie Viard entrou para a Chanel como estagiária da área de bordados de alta-costura, em 1987, apenas quatro anos após Karl Lagerfeld assumir o posto mais alto da casa. Francesa de Lyon, foi seu braço direito, passando por vários departamentos de estilo até finalmente assumir a direção de todo o ateliê de design após a morte de seu mentor, em 2019. Foi Virginie quem recebeu os aplausos no fim do desfile de haute couture, em janeiro daquele ano, quando Lagerfeld não estava mais apto a fazê-lo.
A escolha para sucedê-lo era óbvia, sem muitos riscos, e o anúncio veio imediatamente após sua morte. “A maior homenagem que podemos prestar hoje é continuar a seguir o caminho que ele traçou – e, para citar o próprio Karl – continuando a abraçar o presente e a inventar o futuro”, escreveu Bruno Pavlovsky, presidente na Chanel, no comunicado de 2019. Durante um período de cinco anos (2019-2024), a estilista continuou o legado deixado pelo seu colega de trabalho, chefe e amigo. Não ousou tanto em escolhas de estilo, mas fez com que o prêt-à-porter crescesse 23% em meia década. Ela apostava em uma abordagem mais real das coleções, aproximando-as da clientela da Chanel.

Metiers D'Art, da Chanel, de 2020. Foto: Getty Images
Leia mais: Os 12 melhores desfiles de Jean Paul Gaultier
No desfile de estreia, o cruise 2020, ela fez alusão ao traje clássico do falecido professor ao criar um vestido preto de golas altas brancas. Em seu primeiro Métiers d’Art, no mesmo ano, remontou a famosa escadaria espelhada da Rue Cambon, onde funciona até hoje o ateliê da etiqueta. Já no inverno 2024, fez um tributo a Deauville, local onde Gabrielle Chanel passou a criar roupas esportivas e misturar códigos indumentários do guarda-roupa masculino ao look feminino.
Com delicadeza, Virginie Viard se mostrou respeitosa ao legado de seu antecessor, mas, diferente dele, nunca se importou com hypes passageiros ou métricas de engajamento. Ela criou roupas para quem amava a label e, principalmente, para mulheres que são apaixonadas por moda. E esse foi um feito e tanto.
Sua postura coerente, no entanto, não conquistou unanimidade: nas redes, sua saída foi recebida com entusiasmo. Com perfil extremamente discreto, Virginie foi substituída por Matthieu Blazy em um dos movimentos mais ousados da recente dança das cadeiras que balançou a indústria. Ao estilista belga recém-saído da Bottega Veneta foi dada a missão de transformar a maison, seus desfiles e suas vendas. Sua estreia na temporada de verão 2026 deve indicar os primeiros contornos à era pós Lagerfeld-Viard.

Chanel, inverno 2023 alta-costura. Foto: Getty Images
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes



