Depois da caçada, de Luca Guadagnino, discute gênero, raça e classe

Filme com Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield e Chloë Sevigny parte de uma acusação de violência sexual.


Julia Roberts em Depois da caçada
Julia Roberts em cena do longa Foto: © 2025 Amazon Content Services LLC. All Rights Reserved



Luca Guadagnino continua ocupadíssimo. Depois de lançar Rivais e Queer no ano passado, ele já tem um novo filme. Depois da caçada, protagonizado por Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (09.10), após ser exibido fora de competição no Festival de Veneza.

O cineasta italiano pretendia tirar merecidas férias, mas não resistiu ao ler o roteiro de estreia de Nora Garrett. Na trama, Julia é Alma, uma professora de filosofia que está quase chegando à posição almejada na Universidade de Yale (EUA). Até ficar dividida entre sua aluna mais querida, Maggie (Ayo), e seu melhor amigo, Hank (Andrew), também professor, depois que a estudante o acusa de violência sexual. Ele jura que é inocente; ela, que é uma vítima.

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Chloë Sevigny repete a parceria com o diretor, depois da série We are who we are (2020) e do filme Até os ossos (2022), no papel da Dra. Kim Sayers, colega de universidade de Alma e Hank, para quem a cultura do cancelamento foi longe demais e a geração jovem é sensível em excesso.

“Fiquei muito impactado pela qualidade da escrita, a precisão da descrição daquele universo e as belas complexidades desses personagens, além dos diálogos que me lembram alguns clássicos do cinema que amo”, disse Guadagnino em entrevista à imprensa internacional, com a participação da ELLE. “E logo em seguida, conheci Julia. Depois desse encontro, esse filme tornou-se inevitável, porque nós queríamos fazer juntos.”

Julia devolve os elogios ao cineasta, dizendo que se sentiu apoiada ao interpretar essa personagem tão complicada e diferente de quem ela é. “Quando ele percebia o pânico em meus olhos, me acalmava. E resto do elenco transformou esse cenário em algo dos sonhos”, diz.

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Julia Roberts e Andrew Garfield em cena do filme Foto: © 2025 Amazon Content Services LLC. All Rights Reserved

A atriz conta que, como aceita poucos trabalhos hoje em dia, sempre há uma luta interna em acreditar em si mesma quando finalmente resolve interpretar uma personagem. “Cada vez que volto, os medos retornam com mais força, porque agora escolho os projetos desafiadores. Preciso trabalhar duro e acreditar que tenho isso dentro de mim, e em mim mesma.”

Ayo mencionou a liberdade que sentiu de explorar sentimentos complicados. “Maggie é, para mim, alguém muito longe da minha realidade. Ao conversar com Luca, percebi que tinha muito mais julgamentos do que pensava. Mas foi muito intrigante tentar encontrar essa pessoa sem juízo de valor e com honestidade.”

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Chloë Sevigny e Julia Roberts no longa Foto: © 2025 Amazon Content Services LLC. All Rights Reserved


Algoz x vítima

Depois da caçada aborda muitas perguntas com as quais temos de lidar hoje em dia. Como agir quando um homem que você considera conhecer bem é acusado de assédio ou violência sexual? Como, sendo mulher, se posicionar sem ser atacada? Qual a forma correta de exercer sua sororidade? 

O filme tenta tornar a vida de todos difícil. Começa com o que parece ser uma provocação: os créditos iniciais, da tipografia à trilha de jazz, copiam aqueles dos longas de Woody Allen, ele próprio considerado por uns, algoz, e por outros, vítima do movimento Me Too.

Logo na sequência, há um jantar no apartamento de Alma e seu compreensivo marido Frederik (Michael Stuhlbarg). A reunião dá bem a ideia de um mundo elitista e exclusivo, em que citações de grandes filósofos são moeda em jogos de poder intelectuais, em que os convidados competem uns com os outros. “Nós não estamos nem aí para a filosofia ou sobre o que estão falando. O que interessa são as máscaras que eles usam, e a maneira como falam, como se fosse um cabo de guerra de poder”, diz Guadagnino.

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Julia Roberts e Luca Guadagnino nos bastidores das filmagens Foto: Yannis Drakoulidis © 2025 Amazon Content Services LLC

Hank é um homem branco, hétero, cis, mas que teve de lutar para chegar onde está hoje, já que vem da classe trabalhadora. Maggie é uma jovem mulher negra e queer, cujos pais estão entre os maiores doadores de dinheiro da universidade onde estuda.

Ela é fascinada por Alma, a ponto de copiar suas roupas. “Alma quer muito que sua mensagem de alguém com poder seja transmitida. Por isso, sua silhueta é a coisa mais importante do figurino. Até o uso de looks monocromáticos remete a essa autoconfiança absoluta”, diz o diretor. “Já Maggie é como um espelho, ela quer ser como Alma ou estar com ela”, completa. As transformações das personagens ficam evidentes também nas peças que usam.

A afinidade do elenco

Indagada se gostaria de ser amiga de sua personagem, Ayo afirmou que não sabe se Maggie gostaria de ter a atriz em sua órbita. “Ela é muito criteriosa em relação a quem a cerca e por quê. Luca e eu conversamos muito sobre seu grupo de amigos, quem faria parte e por que não havia outras mulheres negras. Isso é proposital. Trabalhar com Luca é assim, há uma intenção por trás de tudo. Então acho que eu não faria parte desse grupo, o que é uma pena para mim, porque Maggie tem casas em vários países diferentes.”

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Ayo Edebiri, Julia Roberts e Luca Guadagnino nos ensaios de cena Foto: Amazon MGM Studios

Julia disse que adoraria sentar-se em um jantar ao lado de Alma, mas que não seria sua amiga. “Ela teria inveja de você”, completa Luca.

Esses personagens podem até gostar uns dos outros, mas também têm segundas intenções por trás de suas relações. Ninguém ali é inocente, todos têm muito a perder e a ganhar. Não dá para confiar em ninguém.

Em compensação, o elenco e o diretor parecem ter se dado às mil maravilhas. Julia e Ayo foram a um parque de diversões em um dia sem energia elétrica no estúdio onde filmaram, nos arredores de Londres. Luca disse que ele e Julia são ótimos cozinheiros.

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Luca Guadagnino e Julia Roberts nos bastidores © 2025 Amazon Content Services LLC. All Rights Reserved.



Zona cinzenta

Em meio a esse jogo de poder, Depois da caçada pretende aprofundar a discussão sobre sororidade, cancelamento e homens que se comportam mal. “Amo que esse filme tenha despertado tantas discussões entre nós, que o fizemos, mas também no público. Ele não trata apenas de gênero e de política. As pessoas têm percebido suas camadas”, diz Julia, elogiando as perguntas dos jornalistas e emendando uma alfinetada. “Onde vocês esconderam esse intelecto ao longo desses anos todos? Fico feliz de termos finalmente encontrado esse lugar juntos.” 

Ayo apoia a fala de sua colega de elenco e acrescenta: “Especialmente nas interseções de gênero, política, afiliação política, raça e classe social. Para mim, tendo feito o filme e agora discutindo seus temas, vem à tona a zona cinzenta. É preciso criar mais espaço para a nuance, para debates saudáveis para dar um passo para trás e examinar melhor as coisas. Acho que nós e vocês, jornalistas, estamos em segmentos que se beneficiam financeiramente dos extremos, da polarização. Vai ser uma estrada difícil e irritante às vezes. Mas nós devemos criar um espaço para a nuance”.

Nem sempre Depois da caçada alcança o que almeja, deslizando na superfície, sem ter muito o que dizer sobre os temas que levanta. Mas a atriz tem razão: abrir caminhos de debate saudável é importante, até para saber os limites do que é discutível ou não.

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