Saul Goodman e Kim Wexler: o amor salva?

Relacionamento de personagens Better call Saul mostra que afinidades que unem também podem ser altamente tóxicas.


origin 21



O amor nunca é melhor do que o amante. Quem é mau, ama com maldade, o violento ama com violência, o fraco ama com fraqueza, gente estúpida ama com estupidez, e o amor de um homem livre nunca é seguro. Não há dádiva para o ser amado. Só o amante possui a dádiva do amor. O ser amado é espoliado, neutralizado, congelado no fulgor do olho interior do amante.
Toni Morrison

A grandiosa escritora norte-americana Toni Morrison, Nobel de literatura em 1993 pelo clássico O olho mais azul, me colocou em estado de profunda reflexão desde que li essa sua citação sobre o amor, que é carregada de sabedoria.

Desta citação e da reflexão que me despertou e, que agora divido com quem me lê aqui, cheguei à conclusão dolorosa de que o amor não pode salvar ninguém. Mais do que isso, não podemos colocar tamanha responsabilidade em um sentimento.

O que fazemos com o que sentimos? Bem, isso é o tipo de coisa que nunca avaliamos. Mas não é muito difícil de concluir quando pensamos na praxe da busca afetiva que é sempre “encontrar a pessoa certa”.

Se pensarmos com bastante honestidade, no silêncio mais íntimo das nossas noites de insônia causadas pelo anseio desse encontro, dificilmente nos preocupamos com o estado emocional que vamos depositar nos afetos que pretendemos entregar. Pensar no que vai entregar é tão importante quanto pensar no que pretende receber. E, em geral, nossas expectativas sobre o amor são demasiadamente irreais. Isso está explícito no que já se tornou jargão social (e político!):

O amor salva.

Eu adoraria, até porque é muito mais fácil, embora tremendamente mais arriscado, fazer parte da turma que acredita que o amor é a solução/salvação para todo e qualquer problema.

Como a própria Toni Morrison deu a dica, infelizmente, não é.

Qualquer tipo de amor é qualificado pelas características de quem ama. Se as caraterísticas forem tóxicas, o amor, pode, sim, estar presente, mas, será potencialmente tóxico.

Se deixarmos as idealizações românticas de lado e encararmos esse doce sentimento com sensatez, veremos que o amor, muitas vezes, pode ser a própria ruína ou perdição de alguém. O romantismo nos leva a enxergar o amor como algo extraordinário, em uma escala monumental e quase inalcançável.

Mas o amor é “só” um sentimento que integra o rol dos afetos (sim, tudo que nos afeta).

E quando abordamos romantismo, nesse caso, não é sobre aquelas pequenas e deliciosas gentilezas que reafirmam os desejos e fortalecem as relações, como mandar flores, bilhetes carinhosos, jantares e massagens, por exemplo.

O romantismo ou o amor romântico que precisamos evitar é aquele que se forma a partir de projeções e idealizações que nos levam a enxergar como extraordinário aquilo que é ordinário, algo que é normal e faz parte de nós e da vida, o amor como um dos sentimentos que somos capazes de construir. Ou seja, é prudente trocar a ideia de amor pela prática do amor, sem projeções e idealizações, mas com todos os desafios e deleites que lhe são inerentes.

Sentimentos são ordinários, normais, embora sua intensidade faça com que pensemos o contrário. Pessoas amam, odeiam, sentem medo, dúvida, alegria, melancolia, euforia, luto, dor, saudade etc..

É humano. E pode pender para o bem ou para o mal, depende de como interagimos e nos relacionamos internamente com as situações e ocorrências externas que nos atravessam enquanto vivenciamos as dinâmicas inevitáveis da vida.

Mas o fato é que, grosso modo, o amor nasce a partir do reconhecimento de características afins que atraem e podem manter pessoas unidas, o que popularmente chamamos de afinidades.

Podemos dizer que, de maneira geral, a primeira condição para que o amor aconteça é a identificação das compatibilidades. Diferentemente da paixão, que se processa a partir da projeção dos nossos ideais comportamentais em uma imagem/corpo que nos atrai e/ou agrada, o amor precisa de mais consistência, de mais profundidade e tempo.

É prudente trocar a ideia de amor pela prática do amor, sem projeções e idealizações, mas com todos os desafios e deleites que lhe são inerentes.

Só que costumamos pensar que afinidade só pode existir mediante as qualidades que temos e que encontramos em outra pessoa. Mas cada vez mais penso que, talvez, seja mais eficiente escolher parcerias pelo reconhecimento dos desafios que elas nos apresentam do que pelas promessas de qualidades que nos fascinam.

Costumamos escolher pessoas para nos relacionarmos pelas qualidades que elas apresentam, mas isso é muito fácil e nem sempre sustenta as relações.

Não são incomuns uniões que se desfazem porque “apesar” da generosidade (ou qualquer outra qualidade) do parceiro, seu ciúme é impossível de suportar.

Então, as qualidades que amamos não são o bastante, em muitos casos, para manter nosso amor de pé. Mas, se olhamos com os olhos da realidade e assumimos como desafio administrar o egoísmo (ou outro defeito qualquer) das parcerias, talvez nossos desgastes e finalizações sejam menos frequentes.

Mas o fato é que nem toda afinidade se dá pelas qualidades entre as parcerias. Às vezes, os defeitos são iguais o bastante para criar vínculos potentes entre pessoas, sobretudo quando não há uma vontade de mudança ou aperfeiçoamento do comportamento como objetivo de vida.

Falhas de caráter ou tendências para autodestruição, por exemplo, são elementos comportamentais que podem criar afinidades entre pessoas e serão uma receita certeira de como caminhar em direção a um abismo.

Quem não se lembra do caso do ex-guitarrista do Sex Pistols, Sid Vicious, e sua namorada groupie Nancy Spungen, que culminou em uma tragédia que chocou a sociedade norte-americana do final da década de 70?

Nem toda afinidade se dá pelas qualidades entre as parcerias. Às vezes, os defeitos são iguais o bastante para criar vínculos potentes entre pessoas.

Não dá para apostar que o amor não está presente em relações destrutivas e até abusivas. Mas, como tudo na vida, o amor, esse sentimento que tanto fantasiamos e almejamos, precisa de qualidade e propósito de expansão entre as partes envolvidas. E deve nascer das afinidades positivas como altruísmo, generosidade, paciência, carinho, delicadeza, refinamento, compaixão, etc. Mas as vezes nasce de afinidades como desequilíbrios, carências, falta de caráter, autoindulgência, grosseria etc..

Em Better call Saul, spin-off da premiada e aclamada série Breaking Bad, a relação de Jimmy/Saul (Bob Odenkirk) e Kim Wexler (Rhea Seehorn) é um caso desses. A produção, que acaba de ser finalizada depois de seis temporadas, conta a trajetória pregressa de um dos personagens mais pitorescos de Breaking Bad, o advogado “de porta de cadeia” Saul Goodman. Desde o início, ele se mostra bem problemático, com sérias falhas de caráter. Uma delas criou o vínculo entre Kim e Jimmy/Saul.

Existem parcerias que são muito lindas de se ver, mas altamente tóxicas de se viver. E o pior: o envolvimento entre as partes é tão profundo que ninguém tem condições de dar um chacoalhão no parceiro e chamar pra realidade.

Às vezes eu penso que, por mais tentador e aparentemente confortável que seja, é melhor administrar os conflitos das relações entre opostos do que se unir a iguais cujas afinidades estão na toxicidade, nas falhas de caráter entre os envolvidos.

A moral da história dessa relação, na minha modesta opinião, é: que delícia formar parcerias (seja de amor ou de amizade) com pessoas que de tão afinadas conosco nos fazem ter a sensação de que estamos em casa. Mas é vital avaliar se essa afinidade é positiva ou negativa.

Parceria boa é a parceria que nos inspira a expandir positivamente. Tipo assim: “Eu era tão egocêntrico, mas desde que me relaciono com fulano(a) consigo ser mais generoso”. Ou ainda: “Eu era tão melancólico, mas desde que estou com ciclana(o) descobri meu lado mais alegre”.

É mais seguro que, ao invés de acreditarmos que o amor pode nos salvar, nós nos salvemos primeiro para não contaminar o amor que podemos oferecer, com nossos desequilíbrios, potencializados pelo encontro entre afinidades negativas que se respaldam mutuamente.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes