Será que monogamia é pra você?
Escolha entre relações monogâmicas ou não monogâmicas não é solução mágica. Precisamos falar abertamente sobre como elementos sócio-econômicos e culturais afetam e colonizam nossos relacionamentos
Me pediram outro dia para escrever sobre relacionamentos, e, por uma conjugação de encontros profissionais, me deparei com as discussões sobre monogamia e não-monogamia. Vou começar com algumas demarcações do que eu penso hoje sobre o tema. Não estudo isso diretamente, mas os textos feministas e a escuta psicanalítica passam muito por esses lugares, que estão de qualquer jeito muito presentes no dia-a-dia de todo mundo, diretamente ou não.
Um primeiro ponto, como eu o entendo. Não são as leis e restrições que surgem para proteger a monogamia, mas elas produzem a própria ideia de monogamia que temos, e o fazem para erguer e perpetuar um sistema econômico embrutecedor, pouco ou nada interessado em de fato ouvir ou investigar as muitas possibilidades em termos de relacionamento. Não foi também a ideia “romântica” de se relacionar com uma só pessoa que criou as bases fundamentais para essa monogamia colonial, mas fatores sobretudo econômicos, os mesmos que bancaram sua imposição desumanizante, a sua cristalização como coisa vitalícia por meio do casamento e sua naturalização mentirosa como fato biológico.
Aqui cabe, portanto, pensar melhor essa diferença. Sabe-se que mesmo no auge do colonialismo, a chamada monogamia, carimbada pelo casamento etc, jamais foi uma prática de fato. E que, além disso, não só era permitido como era também esperado que os homens tivessem outras mulheres (isso sem contar as profissionais), desde que mantivessem certa discrição e que procurassem não causar problemas para aquilo de que de fato se tratava em termos culturais e econômicos: garantir as heranças, sucessões e transmissões de poder, inclusive simbólicas. Há um certo entendimento de que as mulheres estavam incluídas nesse esquema como mercadorias em circulação, mas às vezes penso se não eram também posicionadas como parte dos meios de produção, duas coisas que estão conectadas.
A própria família “tradicional” jamais existiu como fato natural, ela responde ao chamado de sua criação como organização social capaz de reproduzir um certo esquema de direitos, deveres e de, com isso, sustentar certa ordem de poder. Nesse quadro, evidente, a religião ocupa lugar de destaque.
Vamos pensar na instituição do casamento. Em geral, ela funciona de uma forma que une o Estado e suas leis e uma bênção religiosa. Ambas, especialmente considerando aqui as tradições monoteístas, incluem uma série de direitos e deveres em geral vividos de forma extremamente desigual por homens e mulheres.
Um dos rituais mais conhecidos no ocidente é o do casamento cristão em que o padre convoca os noivos a aceitarem a união “até que a morte os separe”. Essa frase vem dos ritos compilados pela igreja anglicana pelos idos de 1500, frase que não é propriamente bíblica, mas foi criada a partir de versículos bíblicos. Um compromisso não entre dois, mas com Deus. E o que tem o Deus da tradição judaico-cristã a ver com o Estado? Se o Estado é laico, por que todas as discussões sobre casamento, e aqui falo já no século 20, estão carregadas com o fator religioso? E, voltando ao Brasil colônia, como pensar essa frase à luz do do direito de matar as esposas dado aos homens, bastando a suspeita de traição? Era um assassinato permitido por lei. Caso a vítima fosse de família mais rica que a do assassino, ele passaria alguns anos no exílio. Do contrário, seguiria intocado.
Isso era para as brancas, para os brancos. Isso era a cena do “privilégio” que sustentava o horror ainda maior, o horror inacreditável da escravidão, escravidão que por outro lado era base organizadora do projeto colonial. Homem-mulher, pobre-rico, branco-preto, as binariedades mortíferas, não necessariamente nessa ordem.
As heranças desse passado não são difíceis de enxergar. Elas estão aqui, presentes.
A história do divórcio no ocidente também vale mil pesquisas, mas só para pontuar o óbvio, ela não é a única. Na Antiguidade oriental, há registros de leis de divórcio entre os babilônios, por exemplo. Aliás, as organizações de casamentos e famílias são bastante variadas, com registros múltiplos de sociedades monogâmicas, não-monogâmicas e mistas nas mais variadas configurações. Mas, voltando à história recente da Europa e da América do Norte, é fácil ver como o divórcio, assim como o casamento, foi feito para os homens enquanto gestores de negócios. Primeiro, o divórcio foi artigo de luxo, restrito aos muito ricos, aos que podiam comprar inclusive certo perdão religioso. Quando a fila finalmente chegou às mulheres, por séculos elas tiveram de provar não só que tinham sido traídas. Para conquistar o divórcio era necessário ter sido traída e apanhar ou relatar casos de pedofilia e incesto com os filhos. Com provas e testemunhas. Mesmo depois de plenamente estabelecido, o divórcio marcava as mulheres como desvalorizadas no mercado, com ajuda expressiva do elemento religioso cristão entranhado na cultura.
Nos últimos anos, assistimos grupos religiosos de extrema direita tentarem se impor sobre as leis no Brasi, como em um Estado fundamentalista. Uma das bases desse movimento se organiza em torno da defesa da tal família tradicional, ideia que trata menos de pessoas e mais de um novo esforço de achatamento autoritário.
Também chama a atenção nesse mesmo período a quantidade de defensores ferrenhos da “família tradicional brasileira” presos ou indiciados por estupro, pedofilia, violência doméstica e assassinato. Em comum em seus discursos, a homofobia, a transfobia, a misoginia, a tara por armas, o repúdio à educação sexual e o frisson em torno do Frankenstein paranoico batizado de ideologia de gênero.
Essas conexões não permitem generalizações burras nem tirar conclusões de cara, mas, devido à sua reverberação e implicações políticas recentemente renovadas, devem ser analisadas com seriedade.
Percebam que até agora não apareceu nenhuma evidência de que isso que chamamos de monogamia tenha de fato a ver com uma escolha amorosa, seja qual ela for. Por outro lado, parece algo muito ligado a fatores como dinheiro, religião, política, e a uma gestão violenta, cruel e mercantil dos afetos.
Dito isso, acho que cabe uma consideração, vale pensarmos num ponto.
Escolher estar com somente uma pessoa pelo tempo que seja ou escolher criar uma série de relacionamentos que se organizam num mesmo período são opções que em si não têm nada de certo ou natural. Uma coisa não é em si necessariamente melhor do que a outra. Não é a monogamia que esconde uma suposta natureza não-monogâmica. Advogar pela “troca” da monogamia pela não-monogamia, do ponto de vista de cada pessoa em sua história, me parece, além de um equívoco bobo, uma espécie de miopia que reforça o que pretende combater. Me explico.
De um lado temos a estrutura do patriarcado, seu lugar de destaque na montagem capital-colonialista e sua capacidade de criar infernos. Apesar das muitas mudanças, para essa estrutura foi e ainda é interessante que a ideia de família nuclear se mantenha inalterada (quanto mais confinada, melhor, quanto mais sob sentimento de “ataque”, mais encastelada), segurando boa parte da base ideológica de sustentação do mundo como o conhecemos. Isso é fato.
Porém assumir que lá onde os conservadores querem a monogamia (monogamia hetero, diga-se), ou seja, no lugar de padrão natural e biológico, deve aparecer a margarida da não-monogamia, é um giro em falso. Lá onde querem qualquer coisa de padrão nesse sentido há uma grande interrogação. Essa que nos dá medo porque nada garante e pela qual deveríamos lutar com unhas e dentes.
Escolher estar com mais pessoas ou em mais relações não é nem mesmo garantia de que se está construindo algo contrário ao sistema social-econômico vigente, embora vá contra seu atual padrão. Isso porque o sistema capitalista tem a característica de pressionar nas extremidades enquanto, ao mesmo tempo, trabalha com a plasticidade, criando interfaces mais compatíveis com novas exigências sociais, mas sem mexer de fato na estrutura. O não-monogâmico machista e elitista é uma dessas encarnações recentes.
É absolutamente necessário defender amplamente e sem restrições o direito das pessoas de viverem em relacionamentos ou comunidades poliamorosas, trisais, relações concomitantes ou o que mais os seres humanos forem capazes de criar e desejar. Não cabem proibições legais nem constrangimento público quando está em jogo o que adultos possam inventar de comum acordo nesse campo. Ponto.
Já essa ideia de uma certa superioridade, de um “assim é que é”, não se sustenta por nenhum lado. Além disso, tal ideia não só é desnecessária como também incompatível com qualquer vivência de diversidade.
Na minha análise, essa abertura de caminhos deve partir do princípio de que a questão não pode se basear somente no número, mas na qualidade.
Os crimes de assassinato por ciúme, por não aceitação do fim de relacionamentos, são sim influenciados pela ideia de posse, mas a ideia de posse não está sustentada em uma escolha amorosa, ela está sustentada por uma redução das relações à lógica da troca no que ela trabalha pela aniquilação das complexidades humanas. E essa lógica vem se mostrando compatível com diversos formatos de relacionamento.
Quem acha que não deveria examinar detidamente os aplicativos de namoro, por exemplo, ou ouvir, especialmente das mulheres, sobre suas experiências com certos machos desconstruídos, poliamorosos inclusive. Aquilo que poderia ser diverso, rico e fecundo, muitas vezes se reduz a pequenos haréns ou dates em série com, para usar uma expressão que ouvi de uma delas, “roteiro de atitudes e controle de aparência”. O que, obviamente, não se limita às experiências não-monogâmicas nem as limita a isso, mas fala antes da capacidade de fagocitação do capital, de como funciona afinal a ideia de concentração, tão importante para essa discussão.
Há muita gente que descobriu ou redescobriu o prazer, não só o sexual-fodástico mas o de viver, em relacionamentos não-monogâmicos. E isso deve ser validado socialmente de diversas formas. Digo mais, acredito mesmo que a aceitação e a consolidação social da não-monogamia promovem saúde mental, não como remédio para todos os males nem necessariamente em si, mas, entre outras coisas, por tirar a monogamia de seu trono histórico e condenado, apodrecido. Por criar novas perspectivas. De certa forma, a entrada em cena das muitas formas da não-monogamia nos deixa mais livres não só para vivê-las, mas inclusive para renovarmos a experiência monogâmica em nossos próprios termos.
Os arranjos são plásticos, e nossa luta deveria ser não pela defesa de cada modelo de relação, mas pela garantia radical da indefinição, uma indefinição que abre os braços à criação. Só que, para isso, voltamos à questão do poder.
Estudando relações abusivas percebemos que antes mesmo dos alertas como ciúmes violentos, aparecem outras coisas. Essas coisas são, não raro, um trabalho às vezes sutil de afastar os parceiros de seus amigos e pessoas mais próximas. Ou seja, manipular e reduzir as relações de afeto, amizade e solidariedade em geral. Não coincidentemente, essas são coisas atacadas diariamente no contexto geral da capitalização e do embrutecimento das existências.
Nas relações a gente troca como quem compra ou compartilha? Por que quase tudo o que se fala sobre relacionamentos se refere a esse mundo do autoritarismo binário? Qual é o valor da juventude, por que as mulheres relatam tanta solidão e preterimento após os 50 anos, enquanto entre homens até bem mais velhos brotam histórias de novos casamentos, namoradas e poliamores, não raro muito mais jovens? E as pessoas trans, por que vivem tanta solidão, tanta opressão? Quais as violências que você já praticou num relacionamento? Quais violências você já suportou para estar em um relacionamento? O que é família pra você? Como você pensa e vive o cuidado das crianças?
Como a pobreza e a riqueza interferem nas suas escolhas de parceiro amoroso? Por que o recorte racial faz cair por terra muito papinho desconstruído? Qual o papel do dinheiro e da segurança financeira nos seus relacionamentos, como isso se organiza, onde pega pra você? Qual o papel da religião nas suas escolhas afetivas? Como você faz amigos? O padrão de beleza “mídias sociais” influencia suas relações? Você acha que amor e intimidade só se fazem com quem a gente transa? Como você fica sabendo de realidades diferentes da sua? Como se aprende a conviver, como a gente se abre para nós mesmos e pros outros, como construir relações saudáveis e prazerosas, criativas, não entre campeões do desapego e o coral dos sabe-tudo, mas entre gente que tem fraquezas, que sofre, que está sujeita a inseguranças, vaidades, paixões, rompantes e dúvidas?
Sem entrar por esses caminhos, discutir se é um, dez ou dez milhões fica um negócio meio besta. Até porque podem ser dez milhões “todos iguais”, se é que vocês me entendem.
Para encerrar por hoje, porque isso tudo vai longe, importante notar que ali onde se diz eu sou monogâmico ou não-monogâmico se fala de algo vivido, de um ser que por ser vivo se transforma, por assim dizer, não de um definidor necessário, absoluto, imutável.
Há uma distância em jogo, sempre.
As identidades que nos exigem, não temos de aceitá-las e muitas vezes não devemos. A gente pode trocar os lugares das indefinições e do que precisa ser mais fixo para organizar a vida em sociedade. Sei lá, você é contra a fome ou se o mercado chiar você acha que quem tá faminto pode esperar até o bilionário lucrar mais? Você se mobiliza politicamente, num sentido amplo ( partido, movimento, sindicato, grupo de arte, centro acadêmico, associação de bairro, clube de estudo, grupo de teatro, grupo de dança, grupo de zap da sua categoria, roda de conversa, cozinha comunitária, festa de rua, centro comunitário, cooperativa, grupo de militância digital, coletivo etc)? Isso são questões que deveriam ser vividas socialmente com implicações concretas, porque silenciar diante delas ou ignorá-las tem consequências barbarizantes, degradantes para todos, mortais para muitos.
Antes de fazer o questionário padrão, procure saber se quem tá perto de você colabora para a dignidade ou para a miséria, se vem somar para a solidariedade ou cultuar a exploração, os muros, os tiros, o cofre, a segregação. Pergunte também a si mesmo, a gente precisa se perguntar.
O quem é quem é todo dia.
Vivian Whiteman é escritora e psicanalista. Editora especial da Elle Brasil, escreve nesse espaço sobre saúde mental e cultura. É membro do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos, que trabalha pela democratização da psicanálise no contexto dos movimentos sociais. Você pode acompanhá-la pelo Instagram @_vivianwhiteman.
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