Quem foi Ousmane Sembène
Escritor e cineasta, o genial diretor senegalês levou à sétima arte o encanto dos griots, os tradicionais contadores de histórias da África Ocidental.
Sempre afirmo que se tivemos um cinema decolonial, no sentido estrito do termo, foi pelas mãos de Glauber Rocha no Brasil e, na África, pelas mãos do diretor, escritor e produtor senegalês Ousmane Sembène, cujo centenário de nascimento foi comemorado no dia primeiro de janeiro deste ano que segue. Sembène nasceu na comunidade de Lebou, na região sul do Senegal, e se mudou para Dakar ainda na infância. Deixou a escola cedo, foi autodidata e, antes de se tornar um pioneiro do cinema africano e um dos mais influentes da história do cinema mundial, exerceu várias profissões, como pescador, mecânico, pedreiro e até militar, servindo o exército francês na Segunda Guerra Mundial.
Marxista dos mais atuantes, levou a crítica ao imperialismo e a colonização inevitavelmente presentes no continente africano ao status de arte, com uma filmografia potente de 12 filmes autorais, altivos e totalmente representativos do ponto de vista da identidade cultural. Também foi exímio romancista e nos deixou um legado de 10 livros publicados. Tudo isso ao longo de cinco décadas. Mudou-se para a França em 1946 e, em 1950, enquanto trabalhava como estivador em Marselha, se encantou com o vasto universo da literatura, ao ter contato com a biblioteca da Confédération Générale du Travail, sindicato comunista ao qual já era afiliado. Seu primeiro livro sairia em 1956, intitulado The Black Decker, contando as próprias dificuldades que teve para publicar, sendo um autor autodidata e da classe trabalhadora.
Em 1960, Sembène volta para o continente africano, após mais de dez anos na Europa, e inicia uma longa visitação dos países que tentavam se redescobrir após emergirem do pesadelo da dominação colonial. Foi aí que se deu conta de que, pela quantidade de pessoas sem acesso à educação formal, o povo protagonista de sua literatura não poderia ler seus escritos. A partir daí, lançou mão do cinema como militância política, exercitando a bagagem que adquiriu após estudar em Moscou, e rodou seu primeiro filme, o curta-metragem reconhecido como primeiro filme feito na África e por um africano, Borom Sarret (O carroceiro), em 1962. Esse filme faz uma crítica eloquente sobre como a independência do Senegal fracassou ao fazer apenas a troca de poder entre dois tipos de elite. Como a maioria dos países africanos de língua francesa, o Senegal se tornou independente em 1960. Nas duas décadas seguintes, seria governado pelo Partido Socialista, liderado pelo poeta Léopold Sédar Senghor, que buscava manter estreitos laços políticos e culturais com a França, não representando, assim, a emancipação efetiva do Senegal.
Sembène se deu conta de que, pela quantidade de pessoas sem acesso à educação formal, o povo protagonista de sua literatura não poderia ler seus escritos. A partir daí, lançou mão do cinema como militância política.
Conheci Sembène tardiamente, através do seu longa-metragem mais conhecido, mas não menos impactante do que as outras obras, La Noire de…, ou Black Girl, de 1966, que foi considerado o primeiro de um diretor africano. Foi amor à primeira cena. A narrativa sobre uma moça negra que sai de Dakar/Senegal para trabalhar como babá em Antibes, na França, a convite de um casal de brancos, iludida pelas promessas de proporcionar a tão sonhada ascensão socioeconômica, e que acaba de maneira trágica, é tão atual que nos deprime. Nunca antes eu havia conhecido um homem negro capaz de descrever as tormentas do universo da mulher negra com tamanha honestidade e precisão, em uma película de altíssima qualidade cinematográfica e sem nenhuma pieguice ou clichê militante. Aliás, as mulheres negras tiveram um grande destaque no cinema de Sembène. Em La Noire de…, Sembène situa a experiência traumática da colonização no sofrimento do corpo feminino negro que, após ser destituído simbolicamente da sua humanidade, se vê na fatídica consumação física dessa desumanização. Isso mostra que o diretor senegalês não só compreendia com sensibilidade a condição específica da mulher negra, como estava atento e ativo na descrição dessa condição generificada de violência racista. Isso o aproxima muito da atuação política do líder pan-africanista e ex-primeiro-ministro de Burkina Faso, Thomas Sankara, que tinha na condição da mulher negra seu termômetro de atuação em prol dos direitos humanos.
A partir daí, quis conhecer toda a sua obra, que não é divulgada no Brasil (nem no mundo), tanto quanto a de cineastas negros norte-americanos, como Spike Lee ou Jordan Peel, ou os seus contemporâneos, os europeus Bergman ou Fellini, por exemplo. Mas você encontra no cinema de Sembène uma ruptura com a linguagem europeia e norte-americana, mesmo quando a abordagem esbarra na necessidade de representar a vida de uma senegalesa em terras francesas, e se percebe uma referência óbvia à Nouvelle Vague, que dominava o cinema europeu da década de 1960. E isso, essa ruptura, tanto narrativa quanto imagética, é altamente decolonial. Entre 1971 e 1976, Sembène gravou sua mais contundente e exuberante obra-prima: a trilogia formada pelos longa-metragens: Emitaï, Xala e Ceddo.
Mas foi com o filme Mandabi, primeiro longa-metragem gravado exclusivamente em língua africana, que ele enfrentaria a fúria do poder vigente, sendo proibido de fazer filmes por um longo período. Esse filme também marcou o início de seu reconhecimento internacional ao ganhar o Festival de Cinema de Veneza, mas não foi lançado no Senegal.
Se Sembène, que morreu em 2007, se sabia ou se considerava decolonial, não sei dizer, até porque ele era assumidamente anticolonial e pan-africanista. Mas que ele tinha exata consciência dessa marcação política que caracterizou seu cinema, é nítido em suas entrevistas e nas próprias obras, que brilhantemente apresentaram um diálogo social, político e cultural potente e uma linguagem única. Em de suas entrevistas, por exemplo, ele fala sobre a imposição imperialista de ter que fazer cinema adequado ao idioma europeu. Isso, para ele, não era uma prioridade, uma vez que também não era prioridade para os europeus atender aos idiomas outros, que não fossem o inglês, em sua produção cinematográfica.
De qualquer forma é vergonhoso que o Brasil, maior diáspora negra do mundo, beba tão pouco na profunda e necessária fonte que Sembène deixou. Sua genialidade e sua combatividade, aliada à sua ética acima de tudo, comprometida com suas origens e com a real emancipação do povo preto, deveria, no mínimo, estar em todas as salas escolares e nos mais populares streamings da atualidade.
Ousmane Sembène foi e continuará sendo nosso maior griot do cinema.
Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.
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