Fáceis?

Sobre fácil, extrema-direita fácil.


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É engraçado isso das palavras. O quanto a gente presta pouca atenção nelas, o quanto acha inofensivo quando passa a repetir uma delas porque a hashtag subiu ou o meme pegou. Achamos que as palavras são nossas, que mandamos nos rumos delas, e em certa medida temos mesmo controle e precisamos ter responsabilidade sobre aquilo que dizemos, mas elas muitas vezes dizem mais do que queremos dizer. Na verdade, diria que elas não podem dizer tudo, mas dizem bem o que dizemos, e isso às vezes contaria nossos interesses. Poderia dizer que as palavras também nos falam.

Vejam essa palavra “fáceis”, por exemplo. Uma palavra comum megafonada nos nossos ouvidos por mais um desses idiotas que por vez ou outra pega fôlego nas ondas de ignorância que nos assolam de tempos em tempos, não naturalmente, mas com diversas configurações de emergência, enfim, um desses babacas que aproveitam a tour e se elegem a um cargo público.
As palavras sozinhas não fazem muito estrago, mesmo uma que seja suficiente precisa de um certo contexto, de um conjunto que a faça brilhar ou se apagar. Fáceis saltou aos ouvidos porque vinha junto de ” elas” e “pobres”. Elas, mulheres. E pobres. Mulheres pobres ucranianas, no contexto de uma guerra que o tal deputado foi visitar a título de turismo de morte com espaço para parque sexual.

No contexto do papo entendemos que essas ucranianas pobres são para ele algo como um sapato de grife numa liquidação. Não são quaisquer pobres. São loiras e “deusas”. Mulheres que fora da guerra e da pobreza, ou seja, em poder de alguma autonomia e liberdade, “cuspiriam” na cara de tipos como esses. Mas lá, naquelas condições, elas se tornam fáceis.
Fáceis como em um objetivo ou tarefa não trabalhosos, fáceis como na expressão alvos fáceis. Que se atinge com facilidade, que não dá trabalho.

Mas se a gente mexer mais nisso piora. Porque vejam só. O que torna essas mulheres um alvo em primeiro lugar é o fato de serem, na visão deles, “deusas”. Deusas a serem abatidas, é verdade, mas não se esperaria outra coisas desses tipos. As deusas deles são loiras, como a agora ex-namorada do deputado, que, além de ter topado um relacionamento com alguém que se fantasiou de vagina para agredir mulheres em um evento, ainda teve de ouvi-lo proclamar suas intenções de turismo sexual. Loira, deusa, os pontos vão se ligando nessa fala que, infelizmente, não é uma exclusividade dessa estupidez em especial.
Então, temos uma linha de privilégios, loira, deusa e rica. Quando um deles cai e se transforma em fraqueza, esse machucado da pobreza, é hora de atacar. A palavra implícita é, evidentemente, branca. Branca é condição de ser deusa, loira (não basta o cabelo) e de ser um alvo em primeiro lugar.

Mulheres que não se encaixam no conjunto estariam então livres do radar do canalha e seus colegas. Um deles acusado de estupro. Outro, lembrado por comparar militantes a miojo e por sua complacência com o nazismo, da qual todo o grupo já deu sinais mais ou menos evidentes de compartilhar.

Mas infelizmente a parte anterior, essa que exclui as não-deusas loiras do alvo dos infelizes não é verdade. A cada retirada de um ideal do conjunto de palavras, o comportamento de rapina tende a piorar, é o que mostram estatísticas, pesquisas e, enfim, as histórias de mulheres ao redor do mundo. Elas falam, embora homens tentem sempre falar por elas, passar por cima delas, e de fato o façam. Há sempre um registro, uma disputa, uma reafirmação de poder envolvida.

A refugiada branca, loira e pobre ainda é chamada de deusa embora tratada como caça. A rica é a princesinha que esse tipo de otário quer ter em casa, o que não significa que não sofram consequências. Em situações nada incomuns elas se tornam não só fáceis de trair, o que aí é a praxe, mas também fáceis de bater, fáceis de humilhar, fáceis de silenciar, muitas vezes em nome do nome de família, do dinheiro, das garantias de sempre, do velho patriarcado que coloca mulheres e crianças no rol de posses. Não qualquer posse, uma importante, mas ainda assim posse.

Em outros espaços, com mulheres pobres não-brancas, aí o fáceis vai muito rapidamente para o desprezo e dele para a agressão, para o crime. As que por algum motivo cedem a uma transa por exemplo são vadias, logo viram bicho: vaca, galinha, piranha. As que não cedem idem, não há saída. Aí entram em cena maneiras de abater o alvo, com bebida, drogas, força bruta. Fáceis de agredir, fáceis de violentar. Fique muito marcado que isso não é determinado por esse ou aquele comportamento das moças, mas pelo exercício de poder. Esse ainda não é o último deslize da coisa toda. Quaisquer crimes cometidos nesse ponto, desde que por homens suficientemente ricos, são também fáceis de abafar, de esconder, de não ter nenhuma consequência.

Penso o quanto isso não se parece com o discurso na TV europeia sobre os refugiados em geral. Os “válidos”, os que merecem proteção e cujas mortes são lamentadas segundo as falas assustadoramente racistas que têm gerado muito, mas muito menos horror do que deveriam, são “brancos, de olhos azuis, europeus”. Há requintes de crueldade como “não são sírios desviando de alvos, são civilizados” ou até o inacreditável “dirigem os mesmos carros que nós”. Mas sobretudo brancos, são brancos e europeus.

Evidente que os ucranianos devem ser ajudados e com urgência. Essa não é nem nunca foi a questão. A questão é a ligação entre esses atributos e o descarte das vidas dos que não se qualificam como dignos de ajuda, dos que sobram como resto.

Essas palavras que vamos ouvindo e falando, e que em si não significam nada, elas vão sendo atravessadas, formam significados em suas relações. A estudante nigeriana que denunciou ao mundo ” negros devem andar”, frase que ouviu ao tentar embarcar em um trem para fugir da Ucrânia, sabe que refugiado é uma coisa para ela e outra para os da cor bem-vinda. Isso a impacta em uma relação de vida ou morte, que fica mais óbvia nessa situação mas que continua agindo fora dela.

A raça, sabemos, é uma invenção. A cor da pele existe, mas não vem colada a nada que suponha uma raça com os atributos que conhecemos hoje porque vêm sendo repetidos. Se os negros reivindicam hoje uma negritude, é porque a criaram contra o negro da raça inventado para fins econômicos na expansão colonial. O negro cria seu próprio jeito de viver como negro, uma resistência ao assujeitamento que tentavam lhes impor e que impuseram em grande medida, com enorme violência.

“Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo”, diz a psicanalista baiana Neusa Santos Souza em seu livro Tornar-se Negro, um livro que fala de emancipação, de criar mundo. Ela diz isso levando em conta pessoas negras que crescem num contexto de referenciais brancos para tudo: estética, comportamento, expectativas, modelos de sucesso etc.

Tanto em Neusa quanto em teóricos como Fanon ou Lélia Gonzalez, está posto que em contraponto à universalidade autodeclarada dos brancos e das virtudes supostas a ela, os negros recebem os falsos atributos do racismo. Sobre as mulheres negras, por exemplo, é colado o estereótipo da fogosa, das mulheres fáceis. Só que essa tal facilidade, evidentemente mentirosa, não pode ser compreendida sem os conceitos de escravidão, propriedade e estupro. É algo estarrecedor o quanto isso foi normalizado.

Percebam como propriedade está presente e referida a mulheres, de diferentes formas, na nossa maldita herança colonial. Temos inclusive mulheres tratando outras mulheres como propriedade, em um “privilégio” cedido pelos homens. Quem não enxerga traços disso, por exemplo, nas relações de trabalho doméstico, precisa olhar melhor.
Não é à toa que racistas, machistas, neonazistas e exploradores em geral se encontrem em tantos pontos de interesse, reagrupamentos e escolhas de palavras.

Hitler veio depois, foram os racistas dos Estados Unidos que com assustadora eficiência consolidaram não só um modelo complexo de escravidão, mas as leis raciais que inspiraram o ditador e genocida alemão.
Ele mesmo escreveu, era um admirador voraz dos EUA. Adaptaria a grandeza de Hollywood e a idolatria por heróis do esporte a suas peças de propaganda cultural, misturando com mitos e histórias alemãs para criar a imagem da aberração que batizou como raça ariana, algo tão baseado na realidade como o doce de leite caseiro da vovó feito com um mix ultraprocessado em uma fábrica multinacional.

Em um livro muito interessante chamado O modelo americano de Hitler – Os Estados Unidos e a criação da lei racial nazista, o advogado e professor da Universidade de Yale James Q. Whitman faz um estudo super detalhado e aterrador de como as Leis de Nuremberg, que deram as bases formais da perseguição aos judeus que desembocaria no Holocausto, foram inspiradas nas leis raciais estadunidenses de cidadania e contra a “miscigenação”. Uma das proibições era o casamento inter-racial. Essa proibição oficial, ou seja, pela lei, só foi abolida nos civilizados Estados Unidos, pasmem, em 1967.

No Brasil, isso que muitos pesquisadores apontam como crescimento do racismo, da misoginia e mesmo de focos neonazi, não pode obviamente ser dissociado da ascensão ao poder de um defensor de tortura com discurso abertamente racista e misógino. O mesmo que usa simbologias neonazi em sua comunicação oficial e depois se faz de desentendido quando convém.

Os neonazismos e neofascismos do mundo são diferentes entre si. Não se referem somente nem prioritariamente a judeus, mas a pessoas “inferiores”, essas que acreditam em suas ideias podres serem fáceis de descartar. Vidas que não importam. Essas ideias são, não somente, mas em grande parte, desdobramentos da estrutura racista. E estão circulando por aí em mídias ditas democráticas sob nosso nariz. Se há uma mulher negra sendo deixada para trás pelo trem, é dever de todas as que já subiram fazer tudo ao seu alcance para que ela também suba, inclusive desautorizar e derrubar quem deu a ordem. Mas isso numa guerra é muito difícil de exigir de quem sente medo e está em perigo de vida, ou seja, essa ordem jamais poderia ser dada, ela é racista, desumana. E deve ser questionada seriamente por quem pode fazê-lo. O mundo está cheio de trens deixando gente para trás. Nem tudo é guerra, mas a luta é diária.

Hoje é 8 de Março e há algo na fala de Neusa sobre tornar-se negro que pode servir bem às mulheres, esse nome que poderia ser entendido mais como encontro e coletivo do que como plural de mulher, essa trolha que nos mandam carregar quase nunca em nosso benefício. Que cada uma de nós seja considerada em sua trajetória, dignidade e direito de existir, que possamos ter a solidariedade como inegociável, nos dizer na medida em que pudermos, que possamos ter um discurso sobre nós mesmas.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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