Caça às bruxas: quem foram as mulheres queimadas em São Paulo pela Inquisição
Conheça as histórias de Mima, Ursulina e Maria da Conceição, que foram acusadas de feitiçaria e condenadas à morte na fogueira no Brasil dos séculos 17 e 18.
Imagine a cena: mulheres acusadas de bruxaria condenadas à fogueira e sendo queimadas vivas em pleno Centro de São Paulo. Não é fruto da imaginação. Isso já aconteceu, nos séculos 17 e 18. No Brasil colonial houve, literalmente, um período de caça às bruxas. Com base nos princípios do Tribunal do Santo Ofício, órgão máximo da Inquisição católica, mulheres acusadas de bruxaria eram julgadas e condenadas pelos padres e dirigentes locais e, muitas vezes, acabavam sendo queimadas vivas.
“Desde que a serpente conversou com Eva no paraíso, a mulher foi considerada pela Igreja católica a causa de todos os males que atingiram a humanidade. Por sua constituição fraca, ela seria a vítima preferida das ciladas do Demo”, diz a historiadora, professora e escritora Mary Del Priore.
“A mulher também era associada à feitiçaria, pois quando ainda eram escassos os médicos, eram elas, com seu conhecimento em fitoterapia, que realizavam curas em sua comunidade. Parteira e carpideira, operavam entre a vida e a morte”, completa Mary, autora de Histórias das mulheres no Brasil (editora Contexto), entre outras obras. A bruxaria passou a ser crime, conta ela, a partir de meados do século 15, com a publicação do Malleus Maleficarum, ou “Martelo das Feiticeiras”, manual de combate e guia dos inquisidores com orientações sobre como identificá-las e puni-las.
Mima, a francesa cobiçada
Apesar da carência documental, há relatos históricos de mulheres condenadas por bruxaria em terras brasileiras, num autêntico ritual medieval com direito a execuções em público e supostas bruxas ardendo em meio às chamas. O caso mais famoso envolve Mima Renard, jovem imigrante francesa que se mudou para o Brasil no final do século 17 com o marido, René. Em busca de oportunidades no Novo Mundo, o casal foi morar na Vila de São Paulo, cujos limites iam pouco além do atual Centro Histórico da capital paulista, na região do “triângulo” formado pelas atuais ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento.
Mima era conhecida por sua beleza, despertando o desejo de outros homens, muitos deles casados. A cobiça era tão grande que, na brutalidade em que vivia a população do sertão paulista, René foi atacado e morto por um pretendente de sua mulher. Sem condições de sustento, a jovem viúva não enxergou outro caminho para a sobrevivência que não fosse a prostituição.
Os homens continuavam atrás de Mima e – surpresa – a “culpa” da empolgação masculina foi atribuída à francesa, que virou alvo de boatos dizendo que ela praticava feitiçaria para atrair o marido alheio.
A gota d´água ocorreu após uma briga envolvendo dois homens, ambos casados, por causa da bela viúva. A boataria virou acusação e a francesa foi denunciada por feitiçaria e bruxaria ao padre da vila. Resultado: Mima foi julgada, condenada e executada na fogueira em público, em 1692.
“Foi um caso muito chocante e pouco conhecido”, diz o escritor de ficção Henrique Bezerra. Impressionado com a história que descobriu por acaso na internet, Bezerra, que assina com o pseudônimo de Rick Bzr, resolveu escrever “1692 – baseado em uma história real”. O conto, de 28 páginas, publicado em e-book e disponível para compra na Amazon, resgata a história de Mima Renard, misturando ficção e fatos reais ocorridos na época dos acontecimentos.
Ursulina, o marido e a amante
O segundo caso notório ocorreu em meados do século 18. O casal Ursulina e Sebastiano de Jesus morava em São Paulo e detinha um certo status social na cidade. Como não tinham filhos, Sebastiano acusou a mulher de feitiçaria para deixá-lo estéril. Nessa época, ele estava tendo um caso extraconjugal, e sua amante, chamada Cesaria, foi uma das pessoas que acusaram Ursulina de bruxaria, no tribunal inquisitório. Como não eram exigidas muitas provas para delatar alguém que atentasse contra o clero, Ursulina de Jesus foi condenada por heresia e bruxaria, sendo queimada na fogueira em 1754.
“Para muitos estudiosos do assunto, a feitiçaria e as práticas mágicas foram uma das formas de ajuste do indivíduo ao meio que o circundava nos primeiros séculos da colonização. Os ‘feitiços’ apenas refletiam as tensões sociais do período e serviram, muitas vezes, para denunciar desafetos ou opositores”, explica Mary Del Priore. “E a delação era bem recebida por inquisidores, que aproveitavam para perseguir famílias cristãs-novas de ricos comerciantes de quem tomavam os bens”, completa a historiadora.
Maria da Conceição, a curandeira
Algumas décadas após o episódio de Ursulina, vivia em São Paulo uma mulher conhecida pelo seu conhecimento e manejo de ervas medicinais chamada Maria da Conceição. Ela frequentemente receitava chás e ervas para os doentes da cidade. Um pároco local chamado padre Luis (não sabemos o seu sobrenome) implicou com as ações da curandeira e abriu um processo contra ela por heresia e bruxaria. Não deu outra. Ela foi queimada viva em 1798, numa fogueira acesa próxima ao Largo de São Bento, onde ficava o convento dos beneditinos.
Felizmente os tempos são outros, mas Mima, Ursulina, Maria da Conceição e muitas outras mulheres acusadas de bruxaria pela Inquisição são lembradas todos os anos, no dia 31 de outubro, quando também é celebrado o Halloween. “Nesse dia honramos as bruxas queimadas na fogueira”, diz Marcia Sanção, que dirige o Tempo das Bruxas, um espaço que funciona como uma espécie de universidade de bruxaria, em São Paulo. Ali são realizados encontros e ministrados cursos a pessoas interessadas no tema.
Bruxas modernas
As bruxas modernas – sim, elas existem –, querem livrar a categoria dos estereótipos e mostrarem que a bruxaria, ao contrário do que foi pregado durante séculos no imaginário popular, é a ciência do amor, do culto à natureza e à fraternidade. Bruxas fazem, sim, os seus feitiços, mas para espalhar a bondade e o amor, conforme explica Marcia.
“Trabalhamos sempre pela harmonia e para abrir o caminho das pessoas, sempre recheado de muita positividade. Usamos nossos conhecimentos para promover a abundância em todos os sentidos, compartilhando boas energias e amorosidade”, explica ela. “Infelizmente ainda há muito preconceito. Até as histórias infantis contribuem para esse conceito completamente equivocado da bruxa maldosa.”
A opinião é compartilhada com Tânia Gori, fundadora da Casa de Bruxa, um espaço em São Paulo que também se dedica aos ensinamentos e compartilhamento de tradições e rituais praticados pelas bruxas. “Essa desmistificação é muito importante. A bruxa é apenas aquela pessoa que busca na natureza o seu equilíbrio e bem-estar, compartilhando com as pessoas os conceitos de sustentabilidade e equilíbrio de emoções”, diz Tânia.
Se a imagem da bruxa malvada e feia faz parte de um imaginário popular que começou na Idade Média por causa da Inquisição, os símbolos que conhecemos, como o caldeirão, o chapéu pontiagudo e a vassoura, são explicados pela bruxaria moderna. A vassoura é uma herança dos antigos povos celtas, que habitavam a Europa na Antiguidade, sendo utilizada como símbolo nos rituais de purificação e celebração das colheitas. Como as mulheres dançavam com as vassouras nas mãos durante esses rituais, a impressão é que elas estavam voando.
O chapéu pontudo é uma alusão às pirâmides e serve para captar boas vibrações. “A ponta é como uma pirâmide que traz a energia do cosmo para quem está usando o chapéu”, explica Marcia. Já o caldeirão está relacionado ao utensílio que era muito comum nas cozinhas da Idade Média. “Eu costumo brincar que, se a bruxaria nascesse hoje, em vez do caldeirão a gente usaria uma panela de porcelanato”, diz Tânia.
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