A poética de Oscar Niemeyer

Gênio maior da arquitetura brasileira, o carioca que viveu 104 anos ensinou ao mundo a beleza das linhas curvas, presentes nos mais de 500 projetos que assinou ao longo de sua carreira.


Palácio do Alvorada _Oscar Niemeyer
Palácio da Alvorada, em Brasília, em 1961. Foto: Getty Images



Foi nos traços sinuosos de Oscar Niemeyer que o Brasil se descobriu moderno. As paisagens tropicais, gravadas na memória  coletiva como sinônimo do país mundo afora, abriram espaço para referências urbanas, feitas de arcos, vãos livres, rampas, pilotis, espelhos d’água… Brasília foi seu cartão de visitas mais celebrado, mas talvez nenhum outro arquiteto tenha enfileirado tamanha quantidade de projetos icônicos. E surpreendentes e poéticos… 

Em suas mãos, o concreto ganhou curvas, leveza e elegância em mais de 500 obras, distribuídas da França à Algéria, da Itália à Malásia, dos Estados Unidos à Holanda, inúmeros espalhados por sua terra brasilis.

“Sua arquitetura é a criação de um momento único que surpreende, emociona e interrompe o dia a dia massificado. Nela, está presente o princípio unitário da síntese que se contém numa forma simples, bela e suficiente, mas inesperada. Uma forma geométrica clara, livremente buscada, na qual se aglutina a carga simbólica do projeto”, escreveram Glauco Campello e Lauro Cavalcanti, curadores de uma grande exposição sobre a trajetória do mestre, em 2011, em Macau.

Centro cutural de Le Havre oscar niemeyer

Centro Cultural Le Havre, também conhecido como Le Volcan, projetado por Niemeyer, na França. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

Nascido em 1907, no Rio de Janeiro, aos 21 anos Niemeyer entrou na Escola Nacional de Belas Artes. Na década de 1930, ela seria dirigida por Lucio Costa, com quem Niemeyer começaria a trabalhar assim que se formou engenheiro arquiteto. 

“Não queria, como a maioria dos meus colegas, me adaptar a essa arquitetura comercial que vemos por aí. E apesar das minhas dificuldades financeiras, preferi trabalhar, gratuitamente, no escritório de Lucio Costa e Carlos Leão, onde esperava encontrar as respostas para minhas dúvidas de estudante de arquitetura. Era um favor que eles me faziam. E minha decisão, prova de que não era um espírito vazio e imediatista. Ao contrário, tinha como objetivo ser um bom arquiteto”, lembrou em sua autobiografia As Curvas do Tempo – Memórias

No livro, revela ainda que com os dois chefes aprendeu a respeitar a herança colonial das edificações brasileiras e a admirar as sóbrias construções portuguesas que se estabeleceram por aqui – referências que deram solidez e fundamento à sua carreira para que alçasse o incrível voo que viria adiante.

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No escritório de Costa, participou de seu primeiro desafio: integrar a equipe que trabalhou na construção do Ministério da Educação e Saúde, quando conheceu Le Corbusier, que veio ao Brasil como consultor do projeto. O prédio, que ainda hoje se destaca na paisagem carioca, se tornou emblemático porque apresentava uma perspectiva nova para a arquitetura brasileira, até então ancorada em uma estética tradicional, sem novidades.

Foi o trampolim para ser convidado por Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, para projetar o conjunto da Pampulha, em 1942 – primeiro trabalho em que solta suas linhas livremente, experimentando o equilíbrio entre desenho e estrutura. 

A igreja de São Francisco, na Pampulha, Belo Horizonte. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

Com seus arcos de tamanhos diferentes, a Igreja de São Francisco ainda abriga painéis de Cândido Portinari e, ao redor, jardins de Burle Marx. Tão revolucionária que acabou censurada pela própria Igreja que, durante 14 anos, se recusou a consagrá-la, por ter estranhado seu formato inusitado.

A Pampulha mostrou a que Niemeyer vinha. Mas foi com sua própria casa que surpreendeu. Erguida na década de 1950, em São Conrado, no Rio de Janeiro, a Casa das Canoas, onde morou durante dez anos antes de se mudar para Brasília, inovou em relação às construções de vidro que haviam se tornado famosas no exterior (pense na Farnsworth House, de Mies Van der Rohe; na Falling Water House, de Frank Lloyd Wright; ou na Glass House, de Philip Johnson).

Em sua proposta, o arquiteto colocou um ponto final em dois dilemas típicos desse tipo de projeto: o excesso de insolação foi aliviado pela laje curva em balanço, que trouxe sombra, conforto e uma elegância sem fim. Já a falta de privacidade dos quartos foi solucionada levando a área íntima para o subsolo, com acesso por uma escada escavada em uma rocha. 

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Casa das Canoas, que foi residência de Niemeyer no Rio de Janeiro. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

“Minha preocupação foi projetar essa residência com inteira liberdade, adaptando-a aos desníveis do terreno, sem o modificar, fazendo-a em curvas, de forma a permitir que a vegetação nelas penetrasse, sem a separação ostensiva da linha reta”, detalhou.

O arquiteto já havia experimentado marquises, mas em escala maior, anos antes, no Ibirapuera, em seu projeto em comemoração ao quarto centenário de São Paulo. No parque, a cobertura conecta cinco prédios: o Museu AfroBrasil, o MAM, a OCA, a Bienal e o Auditório, construído mais tarde. 

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Copan: curvas em meio aos prédios retos no centro de São Paulo. Foto: Getty Images

A assinatura de Niemeyer ainda marca outros pontos da cidade. No centro da cidade, inundado por arranha-céus retos, plantou a sinuosidade do Copan, também na década de 1950. Bem mais tarde, já entre os anos 1980 e 1990, vieram o Sambódromo e o Memorial da América Latina. No meio da praça deste último está a primeira escultura do arquiteto. A mão espalmada, de 7 metros de altura, com uma chaga aberta no centro.

 Oscar Niemeyer e o encontro com a natureza

Em meados dos anos 1950, Kubitschek, já presidente, convocou Niemeyer com o objetivo de cumprir sua promessa de campanha: erguer uma nova capital no coração do país. 

Enquanto Oscar assume os projetos dos prédios, Lucio Costa vence o concurso para o plano urbanístico. O equilíbrio mais do que perfeito entre a arquitetura de um, o urbanismo de outro e o conjunto de obras de arte de diferentes artistas convidados transformou Brasília em um conjunto impressionante. 

Traços de vários de seus prédios, como as colunas do Alvorada, os pilares da catedral ou as abóbadas invertidas do Congresso se tornaram símbolos nacionais. Sua arquitetura onírica, em que expandia enormemente o que vinha propondo aos poucos nos anos anteriores, reverberou mundo afora. Brasília virou notícia. E o Brasil cresceu junto. Ainda que sempre maltratado pelos problemas econômicos.

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O Congresso Nacional, em Brasília. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

Filiado ao partido comunista desde jovem, Niemeyer não acreditava na arquitetura como uma aliada na busca por justiça social. “Beleza é importante, mas não resolve nada. O que resolve é a luta política!”, disse em entrevista à jornalista Regina Zappa, para o livro A Doce Revolução de Oscar Niemeyer. Uma posição pela qual foi diversas vezes criticado. 

Nos anos do pós-guerra, chegou a ceder a casa onde mantinha seu escritório na Lapa carioca para a sede do partido, justificando: “O trabalho deles é mais importante que o meu”.

Com a chegada da ditadura, Niemeyer começou a enfrentar dificuldades para trabalhar. Em 1964, o governo militar suspendeu a publicação da revista Módulo, editada por ele. Um ano depois, com mais duzentos professores, pediu demissão da Universidade de Brasília, em protesto pela invasão da instituição e pela política educacional imposta pelas autoridades.

Mondadori Oscar Niemeyer

Prédio da Editora Mondadori, em Milão. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

Perseguido pelo regime, conseguiu permissão do governo francês para atuar. Nos anos de exílio, estabeleceu o escritório na capital francesa e acabou erguendo ícone atrás de ícone: a sede do partido comunista em Paris, o prédio da editora Mondadori, em Milão, a Universidade de Constantine, na Argélia. 

Sede do Partido Comunista Francês, Oscar Niemeyer

Sede do Partido Comunista Francês, em Paris. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

De volta, desfruta da abertura política consolidando a Passarela do Samba e os Cieps, no Rio. “Eles (os centros) vieram corrigir o equívoco que sempre existiu entre nós: manter nas construções próximas a favelas uma arquitetura mais modesta, como que acompanhando a pobreza que as caracteriza. Lembro os mais reacionários de dizerem que eram caros demais, sem perceber que as crianças nas favelas entravam neles orgulhosas, como se só isso constituísse o começo de uma vida melhor”.

Universidade Constantine Oscar Niemeyer

A Universidade de Constantine, na Argélia. Foto: Michel Moch | Cortesia Fundação Oscar Niemeyer

O avanço da idade não abalou a potência criativa e a energia para o trabalho de Niemeyer. Em 1988, recebeu o Prêmio Pritzker de Arquitetura. Em 1996, beirando os 90 anos, inventou o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, uma nave delicadamente pousada às margens da Baía de Guanabara. 

No aniversário de 98 anos, resmungou durante uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo: “Não gosto de falar a idade, não. É chato”. Ainda trabalhava de domingo a domingo, das 9h às 20h, e cogitava demolir parte da marquise do Ibirapuera para abrir uma praça entre a Oca e o Auditório. Ou seja: mente fervilhando.

Oscar Niemeyer

Oscar Niemeyer: De curvas, é feito todo o universo. Foto: Fundação Oscar Niemeyer

Muitos outros projetos ainda saíram de suas mãos depois disso até sua morte em dezembro (mesmo mês de seu nascimento) de 2012, aos 104 anos. A essa altura, tinha acumulado uma obra gigantesca e inspiradora, que reverencia o país em que viveu. 

A conjunção entre a natureza exuberante, desenhada pelo mar, as montanhas e a mata, amparou lindamente seus traços. Afinal foi dela que Niemeyer emprestou as curvas e a poesia, o que gostava de deixar claro, como no poema que um dia rabiscou: “Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas, é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein”.

Para saber mais:

Site oficial Fundação Oscar Niemeyer

Livros

As Curvas do Tempo – Memórias. Oscar Niemeye
Oscar Niemeyer Houses. Alan Hess e Alan Weintraub
A Doce Revolução de Oscar Niemeyer. Lauro Cavalcanti, Farès el-Dahdah, Regina Zappa e Cesar Barreto

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