Stalking é crime. Saiba como se proteger contra isso

As mulheres são as maiores vítimas dessa perseguição obsessiva, que aumentou juntamente com o crescimento das redes sociais. Entenda como procurar ajuda e denunciar o perseguidor caso seja ameaçada.


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“Vamos bater um papo, sentar pra tomar uma cerveja? Gostaria que soubesse que o sentimento que tenho por você tem me ajudado pra caramba. A gente se completa tanto, você tem uma essência carinhosa e gentil.” A proposta, feita para a influenciadora digital Renata Meirelles via mensagem direta no Instagram, pode até parecer algo comum entre casais ou amigos íntimos, mas seu remetente é alguém que ela não conhece. Além dessa, outras centenas de mensagens, inclusive de cunho sexual e agressivo, atormentaram a carioca de 36 anos durante oito meses, até maio deste ano. “Na primeira vez que esse rapaz falou comigo, em setembro do ano passado, ele disse que tinha ido a uma taróloga e, de acordo com a descrição dela, a pessoa com quem ele ficaria seria eu. Achei que era só uma cantada barata, mas ele não parou, a situação ficou estranha e eu o bloqueei. Depois disso, ele criou mais de 40 perfis, todos com nomes diferentes, para conseguir falar comigo”, relata ela. Em janeiro, a perseguição deixou de acontecer apenas no ambiente virtual: o rapaz descobriu o endereço de Renata e apareceu duas vezes em frente ao prédio dela. Ao abrir seu Instagram, deparou-se com as mensagens dele, enviadas minutos antes, avisando que chegaria lá em breve. Com medo, decidiu ligar para a polícia e fez um boletim de ocorrência, registrado como crime de perturbação da tranquilidade alheia. “Ele foi levado à delegacia e notificado, e aí sumiu por uns quatro dias. Voltou em seguida, pedindo uma chance para conversar. Às vezes ele tinha uma lucidez, sabia que não me conhecia, mas às vezes, não”, conta.

Sem se dar por vencido, o perseguidor de Renata tentou novamente um encontro e avisou, via mensagem, como sempre fazia, que iria para a casa dela em um determinado horário, levando uma garrafa de vinho. Mas, para seu azar, fez isso no mês de abril, quando já havia sido sancionada a lei 14.132, conhecida como Lei do Stalking, que diz que perseguir alguém de forma reiterada e por qualquer meio, com ameaças à integridade física ou psicológica, é crime, com pena de seis meses a dois anos de prisão e multa. Ela prevê ainda um aumento de 50% da pena, caso aconteça contra alguns grupos sociais, como as mulheres. Assim, Renata conseguiu uma medida protetiva, que proibia qualquer tipo de aproximação ou contato por parte do rapaz. Como ele descumpriu essa medida no mês seguinte, foi preso em flagrante. “Precisei ir para à delegacia e foi algo que acabou com o meu dia. Pensando em tudo o que aconteceu, a impressão que dá é que não é real, parece algo de filme. Eu não fiquei com medo, mas perdi minha liberdade. Agora, evito postar em tempo real, sair sozinha ou passear com meu cachorro à noite.”

De autoria da senadora Leila Barros (Cidadania-DF), a lei começou a ser pensada em 2019, após ela ter assistido a uma reportagem em que mulheres eram vítimas de perseguição e não encontravam amparo legal no Código Penal. Antes, essa prática era enquadrada como contravenção penal, categorizada como “perturbação da tranquilidade alheia” e sua punição era a prisão de 15 a 60 dias, mais multa. “Um crime que vem se tornando cada vez mais comum, devido ao excesso de informações nas redes sociais, estava sendo punido por uma legislação muito antiga. Agora, com a lei mais severa, o objetivo é que, consequentemente, os impactos desse crime na vida das vítimas sejam atenuados”, afirma Leila. Segundo a senadora, os dados iniciais do primeiro mês de vigência da lei apontam que, só no estado de São Paulo, foram registrados 686 boletins de ocorrência. “O avanço da tecnologia e da conectividade fez com que a internet se transformasse também em um campo propício à perseguição. Com certeza, os meios de investigação e repressão do Estado terão que se modernizar, desenvolver novas ferramentas e aperfeiçoar suas rotinas para combater o cyberstalking”, complementa.

Da tela do cinema para o celular

Renata Meirelles tem razão quando diz que a situação parece “algo de filme”. A ficção já se aproveitou muito do assunto. Uma das produções mais recentes é a série You, de 2018, em cartaz na Netflix, que retrata a obsessão de um rapaz, Joe Goldberg, pela mulher por quem está apaixonado. Para isso, ele usa as redes sociais como forma de descobrir tudo sobre a vida dela e faz o que for preciso para conquistá-la. Um dos longas mais marcantes do final dos anos 1980, Atração Fatal, traz Michael Douglas como o advogado que tem uma relação extraconjugal com a executiva interpretada por Glenn Close. Ao dar fim ao romance, passa a ser perseguido constantemente por ela, e sua vida vira um inferno. Nos últimos anos, uma infinidade de títulos vem abordando o assunto, sempre com ares de suspense, mistério e terror. “Todo mundo, em algum ponto, deforma a realidade baseada no afeto, e as pessoas ganham uma dimensão de importância muito maior do que realmente têm. Isso é a natureza do amor. Mas quem persegue e entra num estado de psicose, começa a ver uma situação irreal como verdadeira, e age baseado nessa loucura. Não tem discernimento, não faz uma crítica ao que está acontecendo”, explica o psiquiatra Nikolas Heine, do Hospital Nove de Julho, em São Paulo. “No meu consultório, esses casos aumentaram muito, e sempre no ambiente digital. “É como se só as midias sociais determinassem quem você é, além de nos tomar muito tempo. Elas não deixam com que a gente tenha tempo e espaço para lidar com as situações”, pontua Nikolas.

O conceito da palavra stalking – perseguir, em inglês – ganhou essa conotação nos Estados Unidos logo após o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer, aos 22 anos, em 1989, na Califórnia. Ela foi perseguida durante três anos por um fã, Robert John Bardo, que enviava presentes e cartas com longas e incessantes declarações de amor. Ao descobrir onde Rebecca morava, ele abordou a atriz dizendo que era o seu maior fã e, aos prantos, a xingou e disse coisas sem sentido. Ela tentou acalmá-lo e pediu para que fosse embora, o que ele concordou. Porém, momentos depois, Bardo voltou e matou Rebecca com um tiro no peito. Por causa disso, foram criadas leis antistalking no estado americano e, desde então, a prática é crime naquele país, onde os cantores John Lennon e Christina Grimmie também foram perseguidos e mortos por fãs.

“A pessoa que tem o ídolo como referência não entende que existe um distanciamento. E hoje, para quem tem algum tipo de distúrbio ou psicose, é ainda mais difícil entender essa distância, seja de quem for, já que todo mundo que está ali no Instagram é próximo. A brincadeira dessas mídias de imagem é que todos têm seu lado exibicionista, e existem um milhão de pessoas voyeurs, que passam horas vendo e vivendo a vida do outro”, afirma a psicóloga Ana Volpe. E, se há mais de 30 anos a perseguição era mais comum tendo como alvo os astros da música ou do cinema, hoje, com o uso massivo das redes sociais, qualquer um está sujeito a ser stalkeado.

“O perseguidor busca pertencimento, ele quer ser visto e deposita toda a pulsão e libido dele naquele objeto, no outro, investindo naquela pessoa que, muitas vezes, nem sabe que ele existe. E ele quer isso de volta, como se dissesse: ‘ela é minha e precisa me dar o que eu quero'”, diz a psicóloga. O perfil de um stalker, explica, é de uma pessoa com a autoestima muito baixa, incapaz de lidar com frustrações e de discriminar estímulos, o que significa não entender que o que ela vê numa rede social é apenas uma parte bem pequena da vida do outro. “Algo muito latente na nossa sociedade é que nunca somos frustrados ou lidamos com a sensação de vazio, já que tudo está ao alcance: um aplicativo de comida, de streaming, de compras, de imagem. A vida precisa ter prazer e ser divertida”. E há como se prevenir de um stalker? A psicóloga acredita que não. “É uma loteria. Estamos vivendo um novo paradigma de relacionamentos, e acho que essa é a grande dança nas redes sociais: entender como e quanto você vai se expor. Elas não são boas nem ruins, a questão é a maneira como você as usa”, finaliza Ana.

Como a lei pode proteger a vítima?

Há quase dez anos, a vendedora Mariana Toledo*, de 37 anos, vivenciou momentos de terror por causa de um relacionamento amoroso. Meses após começar a namorar um rapaz recém-separado, descobriu que ele também tinha, ao mesmo tempo, um relacionamento com outra mulher, por meio de uma amiga em comum de ambas. “Essa moça criou um perfil fake e fez uma postagem no Facebook com uma foto dele, me marcando e me xingando, dizendo que eu ficava com ele quando ele era casado. A partir daí, minha vida virou do avesso: ele terminou comigo sem ao menos me deixar explicar o que tinha acontecido. No dia seguinte, o meu celular tocou o dia todo, com ligações de números que eu não conhecia. Durante uma semana, eu atendia e a pessoa não falava nada. Depois, passei a receber mensagens com ameaças de morte à minha mãe, com a descrição exata da roupa que ela estava usando e do local onde morávamos. Nas mensagens, a pessoa também dizia que iria rasgar a barriga da minha irmã, grávida de sete meses”, conta. Mariana passou a ter medo de sair sozinha e precisou tirar uma licença do trabalho. Mensagens com xingamentos chegavam a todo instante, até que ela teve uma ideia para chegar ao autor das mensagens, já que, naquela época, não conseguia rastrear as ligações. “Percebi que a nossa amiga em comum estava fazendo um leva e traz de informações, e como ela sabia que eu tinha um amigo policial, eu disse, usando termos muito específicos, que iria fazer um boletim de ocorrência. Após isso, o telefone tocou mais alguns dias e depois acabou. Foi uma situação muito amedrontadora para mim”, revela.

As ameaças recebidas por Mariana foram muitas, mas a lei não determina um número mínimo de contatos do stalkeador para que seja caracterizado um crime. Basta apenas não ser um ato isolado. “Mais de um já configura delito e, a partir disso, pode ser por qualquer meio: presencial, mensagem por telefone, internet, ligação ou envio de presentes. Se a pessoa faz algo que ameaça a integridade física, restringe a capacidade de locomoção ou invade a vida privada, é crime. E essa lei veio para adequar o nosso Código Penal de 1940, já que a internet foi mudando as nossas relações”, explicam as advogadas Ana Borela e Michelle Caminha, do Rio de Janeiro. Para fazer uma denúncia, basta que a pessoa vá a uma delegacia, registre um boletim de ocorrência e deixe claro que quer que o perseguidor seja processado. Para elas, no entanto, a pena ainda é muito leve, porque o objetivo, como ressaltou anteriormente a senadora Leila, é evitar que algo mais grave aconteça. “Por ser um crime de menor potencial ofensivo, é de competência de um Juizado Especial Criminal. Se por um lado isso significa que o procedimento acontece de forma mais rápida, por outro, nosso direito penal tem essa característica de tentar persuadir, colocando uma série de possibilidades de acordo para que a pena mais grave não seja aplicada. E o stalking, além de constranger e mudar a vida da vítima, pode acabar numa lesão corporal, numa violência doméstica ou em feminicídio”, explicam elas.

Sinal vermelho contra a violência

É praticamente impossível não atrelar o stalking à violência de gênero. Segundo pesquisas da entidade estadunidense Stalking Resource Center, 76% das vítimas de feminicídio foram perseguidas por seus parceiros e 54% delas relataram à polícia estarem sendo stalkeadas antes de serem assassinadas por seus perseguidores. A nutricionista Lígia Prestes vivenciou a situação de ser perseguida por um ex-namorado, recebendo mais de 100 e-mails e mensagens a perder de vista. Quando não pedia uma reconciliação, ele escrevia xingamentos e ofensas. “Nosso relacionamento era muito abusivo, eu era obrigada a colocar a confirmação de leitura do Whatsapp e, de hora em hora, precisava falar com ele. Terminamos há dois anos e meio e, desde então, comecei a fazer terapia. Quando o namoro acabou, ele ficou atrás de mim querendo voltar, mas ao mesmo tempo me chamava de vagabunda, dizia que eu tinha traído ele, era algo horroroso. Ele também me ligava de números aleatórios, até que decidi conversar com a minha ex-cunhada e dizer que ia colocá-lo na cadeia, porque não aguentava mais. Ele só parou quando fiz um boletim de ocorrência e ele foi notificado”, relembra. Até hoje, Lígia mantém suas redes sociais privadas e pouco usa o Instagram.

Primeira presidente mulher da Associação dos Magistrados Brasileiros em 70 anos, a juíza Renata Gil é uma das idealizadoras do Pacote Basta, documento que dispõe de medidas de combate à violência contra a mulher, incluindo o stalking. A Campanha Sinal Vermelho Contra a Violência Doméstica, em que mulheres podem, com um X vermelho na mão, denunciar seu agressor de forma silenciosa e discreta em farmácias que aderiram ao projeto, tornou-se um dos projetos mais bem-sucedidos nesse sentido. “Num país patriarcal e num parlamento com mais homens do que mulheres, essa conquista fica para a história. Nós trabalhamos para deixar um legado importante”, orgulha-se. Mesmo com tamanho avanço, Renata afirma que ainda é necessário um trabalho educativo e de conscientização para que haja, de forma gradativa, uma mudança sociocultural. “Se os homens continuam batendo e matando as mulheres e não há uma punição efetiva, não sentem nenhum freio moral. E ainda temos uma geração formada com um pensamento patriarcal, que acredita que a mulher é sua propriedade. A mudança vai acontecer por meio de punições e instrumentos de proteção efetivos, para que a mulher se sinta segura para denunciar e não seja assassinada. Mas ainda há uma carência de recursos públicos e equipamentos para o combate. É por isso que lutamos, e essa luta não pode parar.”

*Nome trocado a pedido da entrevistada.

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