3 lições que aprendi com o Clube da Escrita Para Mulheres

Mais do que um encontro para compartilhar escritas e leituras, o projeto criado em 2015 virou uma rede de suporte mútuo e luta coletiva.


Ilustração: Gustavo Balducci



Quando criei o Clube da Escrita Para Mulheres em 2015, estava num momento solitário da minha jornada como escritora. Autora independente, vinda do sertão do Ceará e no meu primeiro ano em São Paulo, sentia que o machismo do mercado editorial, dos eventos literários e do mundo da literatura brasileira me sufocavam. Tinha o hábito de acompanhar as listas de lançamentos mensais das grandes editoras e contar quantos livros publicados eram escritos por homens e quantos eram escritos por mulheres, e me frustrava – e como me revoltava – ao perceber que as pouquíssimas mulheres publicadas eram, na maioria das vezes, autoras de outros países. Eu sentia a necessidade de encontrar outras escritoras brasileiras que também enxergassem essa realidade e, mais do que isso, queria compartilhar o que escrevia, ler o que outras estavam criando e construir uma rede de suporte mútuo que tornasse a luta por espaço no mercado editorial mais coletiva e menos uma angústia que precisava ser vivida apenas na individualidade. Foi por isso que criei o Clube: porque o problema do machismo na literatura não era uma questão singular, muito menos apenas minha.

O Clube sempre foi uma iniciativa com a intenção de abordar de forma política a criação literária e o processo de publicação de livros, zines, ebooks, cordéis, entre outros. A proposta sempre foi muito simples: encontros quinzenais em que mulheres que escrevem ou querem começar a escrever se encontram para fazer exercícios de escrita e conversar não apenas sobre os temas dos textos, mas também sobre edição, autopublicação, divulgação do próprio trabalho e, acima de tudo, solidificar uma rede de apoio em que todas se tornam leitoras e também divulgadoras do que as outras autoras estão compartilhando com o mundo. Tudo gratuito. O Clube da Escrita Para Mulheres continua crescendo e dando frutos até hoje – e foram muitas as lições aprendidas de 2015 até aqui. Como criadora e coordenadora do projeto, enfrentei muitas dificuldades para manter o Clube vivo: paguei aluguel porque não tinha espaço para realizar os encontros, cruzei caminho com pessoas que não compreendiam a proposta horizontal do projeto, mediei encontros em sebos, bares, parques. E sempre estive pronta para defender a existência desse espaço; um espaço onde mulheres escrevem com liberdade, sem julgamentos, sem que alguém assuma o papel de autoridade e em que nenhuma de nós fica para trás.

Atualmente estamos ocupando um espaço muito importante na Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista, e novas participantes continuam chegando. O Clube é uma célula viva. Com ele, no processo de criá-lo e mediá-lo, aprendi verdades valiosas. E quero compartilhar três delas com vocês que me leem:

  1. 1. Mesmo diferentes, mulheres que escrevem têm muito mais em comum do que imaginam

É um clássico do Clube: antes de começarmos os exercícios de escrita e leituras dos textos, fazemos uma rodada de apresentações; coisa básica, como nome e qual é a relação daquela mulher com a escrita. Ainda nos primeiros meses do projeto desisti de contar quantas vezes ouvi o mesmo discurso: mulheres que escrevem desde cedo, apaixonadas por livros, que sempre cultivaram diários, que sempre criaram poemas, contos, crônicas, romances, mas que também sempre os esconderam. Gavetas lotadas de textos carregados de vergonha e medo. Insegurança. Incapacidade de se declararem escritoras. Independentemente das suas origens, regiões, características físicas e de personalidade, todas nós enfrentamos alguns desses desafios. Quando uma nova participante chega ao Clube e se apresenta, é possível até sentir o que as veteranas estão dizendo internamente: “eu sei como é isso, já estive aí”.

Com o Clube da Escrita Para Mulheres, vi na prática e escutei entre lágrimas e vozes trêmulas fatores que nos unem como mulheres. Realidades em comum num mundo ainda dominado pelos homens, ainda comandado por sudestinos, ainda cheio de barreiras para que mulheres publiquem, sejam lidas e levadas a sério. Por mais que uma seja negra e outra branca, por mais que uma seja bissexual e a escritora ao lado seja heterossexual, ou ainda que uma venha do Norte do país, por mais que muitas morem em bairros ditos nobres e outras enfrentem o transporte público, vindo das periferias diversas, para chegar até os encontros do Clube, compartilhamos incômodos que tentam nos silenciar, mas acabam nos fazendo encontrar outras como nós. Porque estamos em busca desse sentimento poderoso que é estar em grupo e saber que nossas questões profundas são compartilhadas por outras. Porque quando nos encontramos, tomamos coragem para ler nossas criações em voz alta e identificamos nos textos umas das outras centelhas que nos fazem sentir vivas, inspiradas, encorajadas, nós sabemos que somos parte de algo grande. E que importa. Mesmo com todas as nossas diferenças, que são reais, temos um universo em comum.

  1. 2. Nós não vamos vencer o machismo (e outras barreiras sociais) do mundo literário se lutarmos sozinhas

Já peitei muitas situações com a agilidade dos meus dedos martelando o teclado do computador e muitas vezes me senti falando para as paredes. Testemunhei incontáveis eventos literários sem qualquer escritora convidada, ou grandes iniciativas formadas apenas por pessoas brancas, e ainda o esforço contínuo para que livros escritos por autoras lésbicas e bissexuais, com personagens lésbicas e bissexuais, permanecessem escondidos. Comprei muitas brigas pelas redes sociais, dei muitas entrevistas, mas somente quando vi no Clube da Escrita Para Mulheres outras escritoras dispostas a falar, enfrentar e lutar para realizar mudanças, pude me libertar do peso que envergava minha coluna. Lutar ao lado de outras mulheres é poderoso. Juntas, criamos uma realidade que não pode ser impedida ou ignorada. Muitas vozes falam muito mais alto. Não é apenas sobre mim, nem somente sobre você. É sobre nós.

3. A conquista individual não simboliza o fim da luta

Isso vale para todas as áreas em que mulheres ainda batalham por reconhecimento. Muitas de nós “chegamos lá”, conseguimos conquistar aquele espaço tão desejado, assinamos contratos com editoras, somos convidadas com frequência para eventos (ainda que tantas vezes tenhamos que falar sobre os mesmos temas, entre eles o clichê “como é ser mulher na literatura”), e por mais que seja mágico e recompensador ver seu trabalho criativo recebendo atenção, sendo lido e até premiado, logo aprendi que essa experiência se torna ainda mais intensa, potente e transformadora quando posso usar minha plataforma para direcionar um pouco de luz para o trabalho de outras escritoras. Seja indicando seus livros como leituras indispensáveis ou recomendando seus nomes para eventos, antologias e outros trabalhos, até mesmo um post numa rede social pode fazer toda diferença para autoras que estão começando, ou que, apesar de escreverem há muito tempo, ainda enfrentam muitos obstáculos.

Entendo que é também parte do meu papel tratar a carreira literária como uma oportunidade de dar as mãos a outras mulheres. O Clube me ensinou isso e reforça essa certeza todos os dias. Se eu desejo uma realidade em que serei tratada com respeito e não mais reduzida aos clichês empurrados contra mulheres que escrevem, não posso esquecer que a mudança não vem das exceções. Não quero ser uma exceção, um exemplo de uma mulher que “chegou lá” apesar do machismo, do racismo, da bifobia e lesbofobia, do preconceito contra nordestinas; quero ser uma entre muitas, quero que meu trabalho abra portas, construa escadas, amplie os espaços. E é lindo constatar que as participantes do Clube da Escrita Para Mulheres também pensam assim.

Este texto, afinal, é uma carta de amor ao Clube da Escrita Para Mulheres. Uma forma, sim, de apresentá-lo para mais pessoas e, com isso, atrair mais mulheres para os encontros, mas também uma oportunidade de imortalizar meu amor por esse projeto que hoje coordeno com uma grande amiga e escritora talentosíssima chamada Anna Clara De Vitto.

Desde 2015, o Clube transforma minha vida, a torna mais rica, mais poética, mais cheia de coragem e propósito. E eu acredito nos propósitos que escolhemos abraçar, acredito na força das causas que nos inflamam e nos movem. Para mim, a cada vez que uma nova participante faz sua caminhada, saindo do lugar de medo e vergonha e chegando ao lugar de coragem para publicar, seja de forma independente ou por editora, sinto que todos esses anos insistindo nesse projeto valeram e valem os desafios. Felizmente não tenho que enfrentá-los sozinha. E escrevi este texto para dizer que você, sim, você mesma que ainda esconde o que escreve, também não está só. Nós, as integrantes do Clube da Escrita Para Mulheres, te enxergamos, te acolhemos e encorajamos.

Vamos juntas!

– O Clube da Escrita Para Mulheres acontece atualmente uma vez por mês na Hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade. É gratuito e não necessita de inscrição. Para acompanhar a agenda de encontros, siga o @clubedaescrita no Instagram.

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado Redemoinho em dia quente, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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